Joyce Sutphen – Vivendo no corpo

Corpo é uma coisa de que você precisa para permanecer
neste planeta e só dispõe de um.
E não importa qual você tenha obtido, ele não
será satisfatório. Não será bonito
o suficiente, não será rápido o suficiente,
não durará por vários dias seguidos, mas
o arrastará para um pântano sonolento e
exigirá maçãs e cafés e bolos de chocolate.

Corpo é uma coisa que você precisa carregar
de um dia para o outro. Sempre as
mesmas sobrancelhas sobre os mesmos olhos na mesma
pele quando você olha no espelho, e o
mesmo joelho rangendo quando você se levanta do
chão e o mesmo pulso sob a pulseira.
As mudanças que você pode fazer são pequenas e
dispendiosas — melhor deixar como está.

Corpo é uma coisa que, eventualmente, você tem
que abandonar. Você sabe disso porque já viu
outros fazerem o mesmo, outros que já foram como você,
vivendo no interior de seus montes de carne e
ossos, sorrindo para você, amando-o,
apoiando-se na porta, conversando com você
por horas até que um dia eles se vão.
Sem deixar o novo endereço de correspondência.

Trad.: Nelson Santander

Living in the Body

Body is something you need in order to stay
on this planet and you only get one.
And no matter which one you get, it will not
be satisfactory. It will not be beautiful
enough, it will not be fast enough, it will
not keep on for days at a time, but will
pull you down into a sleepy swamp and
demand apples and coffee and chocolate cake.

Body is a thing you have to carry
from one day into the next. Always the
same eyebrows over the same eyes in the same
skin when you look in the mirror, and the
same creaky knee when you get up from the
floor and the same wrist under the watchband.
The changes you can make are small and
costly—better to leave it as it is.

Body is a thing that you have to leave
eventually. You know that because you have
seen others do it, others who were once like you,
living inside their pile of bones and
flesh, smiling at you, loving you,
leaning in the doorway, talking to you
for hours and then one day they
are gone. No forwarding address.

Manuel António Pina – Sétimo Dia

Ao Manuel Hermínio

Voltamos, um a um, da tua morte
para a nossa vida como quem regressa a casa
de uma longa viagem. Para trás ficaram recordações, países,
e agora é como se te tivéssemos sonhado.
A voz que, diante da escuridão, suspendemos
quando se desmoronou o mundo para o fundo de ti
erguemo-la de novo para os afazeres diurnos
e para as horas comuns.
Ainda ontem estávamos sozinhos diante do Horror
e já somos reais outra vez.
A própria dor adormeceu no nosso colo
como um animal de companhia.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 05/03/2018

Malena Mörling – Do trem

Pouco antes do sol desaparecer
atrás de uma fileira de armazéns
e antes que ele voltasse à tona
para lavar nossas roupas
das sombras, eu notei algo —
Era apenas um pedaço de papel,
mas estava pendurado em uma das paredes expostas
de um dos prédios parcialmente demolidos
que passavam flutuando.
Notei também o contorno
de uma velha escada
e o desgastado papel de parede verde florido
subindo pelo menos três lances
até onde o papel pendia logo
abaixo da alta curva estriada
do céu à luz do sol quase
horizontal do crepúsculo.
E pensei como quem
um dia viveu naquele espaço
deve ter escrito algo nele.
Algo importante.
E o pregou na parede.
E mais tarde à esquerda.
E o modo como todos nós vamos
partir de onde estamos agora.
E então imaginei que até
pudesse ser um poema que
só o vento estava lendo.
E pensei como no final
tudo o que resta é o espaço.
Porque não podemos destruí-lo.
E talvez uns poucos poemas
em certos lugares insuspeitos
que estão lá porque estão.

Trad.: Nelson Santander

From the Train

Just before the sun vanished
behind a row of warehouses
and before it came flooding
back to rinse the shadows
off our clothes I noticed something—
It was only a scrap of paper,
but it hung on the exposed wall
of one of the partially demolished buildings
that floated past.
I also noticed the outline
of an old stairway
and worn florid green wallpaper
going up at least three flights
to where the paper hung
below the high streaked curve
of the sky in the almost horizontal
sunlight of the evening.
And I thought how whoever
once lived in that space
must have written something on it.
Something important.
And nailed it up on the wall.
And later on left.
The way we all will leave
where we are now.
And then I imagined
it was even a poem
only the wind was reading.
And I thought how in the end
all that will be left is space.
Because we can’t destroy it.
And perhaps a few poems
in certain unsuspected
places that are there because they are.

Joaquín Benito de Lucas – Elegia

Quando agora retorno
à minha cidade, não posso conter
a emoção de saber que não sou esperado.
Não me espera meu pai, que desceu rio abaixo
muito lentamente entre os juncos, sob pontes enevoadas.

Não me espera meu irmão,
que me esperava sempre ao lado de um balcão
qualquer, em uma rua qualquer
brindando ao meu último
livro ou por sua desgraça
ou por outro motivo interessante.
Tampouco me espera
o outro irmão, o que acabou de partir,
deixando-me a sina
de seus sapatos e suas vestes,
que lustro e passo a ferro
e visto e volto a vestir
sem saber o que me sobra ou o que me falta.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO (com ligeiras alterações na tradução): poema publicado no blog originalmente em 02/03/2018


Joaquín Benito de Lucas – Elegía

Cuando regreso ahora
a mi ciudad, no puedo contener
la emoción de saber que no me esperan.
No me espera mi padre, que se marchó río abajo
muy despacio entre juncos, bajo puentes de niebla. 

No me espera mi hermano,
que me esperaba siempre al pie de un mostrador
cualquiera, en cualquier calle
brindando por mi último
libro o por su desgracia
o por otro motivo interesante.
Ni tampoco me espera
el otro hermano que recién se ha ido,
dejándome la sombra
de sus zapatos y sus trajes,
que cepillo y que plancho
y me pruebo y me pruebo
sin saber qué me sobra o qué me falta.

James Tate – Uma batida na porta

Eles me perguntam se eu já pensei
sobre o fim do mundo,
e eu respondo, “Entrem, entrem,
deixe-me dar-lhes algo para comer, por favor.”
Depois de algumas mordidas, eles querem falar
sobre a vida após a morte. “Ui!,” eu digo,
“vocês já viram aquela Greapleaf skeletonizer?”1
Depois eles começam a falar sobre redenção
e dos poucos escolhidos para sentar ao lado Dele.
“Fazendo o quê?” eu pergunto. “Só sentados?”
Estou cercado por zumbis carbonizados.
“Vamos comer uma torta de limão
que comprei ontem na 3 Dog Bakery.”
Mas eles querem falar sobre a minha alma.
Estou ficando sonolento e vejo borboletas
por toda parte. “Os cavalheiros
gostariam de tirar uma soneca, eu sei que eu gostaria.”
Eles se levantam e se afastam de mim,
saindo pela porta, caminhando em direção aos meus vizinhos,
uma nuvem negra sobre suas cabeças,
sem enxergar nada que não tenha um fim.

Trad.: Nelson Santander

1. A Grapeleaf skeletonizer (Harrisina americana) – esqueletizadora de folha de uva, em tradução livre – é uma mariposa da família Zygaenidae muito difundida na metade oriental dos EUA. Essa espécie leva esse nome pela capacidade que suas larvas têm de desfolhar videiras inteiras em hortas caseiras.

A Knock On The Door

They ask me if I’ve ever thought
about the end of the world,
and I say, “Come in, come in,
let me give you some lunch, for God’s sake.”
After a few bites it’s the afterlife
they want to talk about. “Ouch,” I say,
“did you see that grape leaf skeletonizer?”
Then they’re talking about redemption
and the chosen few sitting right by His side.
“Doing what?” I ask. “Just sitting?”
I am surrounded by burned-up zombies.
“Let’s have some lemon chiffon pie
I bought yesterday at the 3 Dog Bakery.”
But they want to talk about my soul.
I’m getting drowsy and see butterflies
everywhere. “Would you gentlemen
like to take a nap, I know I would.”
They stand and back away from me,
out the door, walking toward my neighbors,
a black cloud over their heads
and they see nothing without end.

Juan Luis Panero – Epitáfio diante de um Espelho

Dura há de ser a vida para ti,
que tuas crenças sacrificastes a uma estranha honradez,
para ti, cuja única certeza é tua memória
e, portanto, teu sepulcro mais infausto.
Dura há de ser a vida, quando os anos passarem
e por fim destruírem a ilusória pátria da tua adolescência,
quando vires, como hoje, este fantasma
que tempos atrás te consolou com sua beleza.
Quando o amor, como um vestido esfarrapado,
não pode proteger tua tristeza
e um motivo de zombaria, piedade ou assombro,
para os olhos mais puros, apenas seja.
Duro há de ser para o teu corpo ver morrer o desejo,
a juventude, tudo o que foste,
e buscar sem paixão o teu repouso
na surda ternura do que é frágil,
na cinza destruição que outrora amaste.
“É a lei da vida”, dizem velhos estéreis,
“e nada além de Deus pode mudá-la”, repetem,
à luz da noite, lentas sombras inúteis.
Dura há de ser a vida, tu que amaste o mundo,
que com um olhar ou uma suave carícia sonhaste em possuí-lo,
quando a absurda farsa que tão bem conheces
já não estiver adornada com o efêmero e o belo.
Dura há de ser a vida até o instante
em que velares tua memória neste espelho:
teus frios lábios já não terão refúgio
e em tuas mãos vazias abraçarás a morte.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO (com ligeiras correções na tradução): poema publicado no blog originalmente em 23/02/2018

Juan Luis Panero – Epitafio Frente a un Espejo

Dura ha de ser la vida para ti,
que a una extraña honradez sacrificaste tus creencias,
para ti, cuya única certidumbre es tu recuerdo
y por ello, tu más aciaga tumba.
Dura ha de ser la vida, cuando los años pasen
y destruyan al fin la ilusa patria de tu adolescencia,
cuando veas, igual que hoy, este fantasma
que tiempo atrás te consoló con su belleza.
Cuando el amor como un vestido ajado
no pueda proteger tu tristeza
y motivo de burla, de piedad o de asombro,
a los ojos más puros sólo sea.
Duro ha de ser para tu cuerpo ver morir el deseo,
la juventud, todo aquello que fuiste,
y buscar sin pasión tu reposo
en la sorda ternura de lo débil,
en la gris destrucción que alguna vez amaste.
«Es la ley de la vida», dicen viejos estériles,
«y nada sino Dios puede cambiarlo», repiten,
a la luz de la noche, lentas sombras inútiles.
Dura ha de ser la vida, tú que amaste el mundo,
que con una mirada o una suave caricia soñaste poseerlo,
cuando la absurda farsa que tú tanto conoces
no esté más adornada con lo efímero y bello.
Dura ha de ser la vida hasta el instante
en que veles tu memoria en este espejo:
tus labios fríos no tendrán ya refugio
y en tus manos vacías abrazarás la muerte.

Jack Gilbert – Um sumário para a defesa

Tristeza por toda parte. Massacres por toda parte. Se bebês
não estão passando fome em algum lugar, estão passando
fome em outro. Com moscas em suas narinas.
Mas apreciamos nossas vidas porque é isso que Deus quer.
Do contrário, as manhãs antes da alvorada de verão não
seriam tão belas. O tigre de Bengala não seria
tão milagrosamente bem moldado. As mulheres pobres
na fonte estão rindo juntas entre
o sofrimento que conheceram e o horror
em seu futuro, rindo e sorrindo enquanto alguém
na aldeia está muito doente. Há risos
todos os dias nas terríveis ruas de Calcutá,
e mulheres riem nas jaulas de Bombaim.
Se negamos nossa felicidade e resistimos à nossa satisfação
nós diminuímos a importância de sua privação.
Devemos arriscar o deleite. Podemos prescindir da vontade,
mas não do contentamento. Não da satisfação. Devemos conservar
a obstinação de aceitar nossa alegria na implacável
fornalha deste mundo. Fazer da injustiça a única
medida de nossa atenção é louvar o Diabo.
Se a locomotiva do Senhor nos atropelar,
devemos dar graças pela magnitude do fim.
Devemos reconhecer que haverá música, apesar de tudo.
Estamos uma vez mais na proa de uma pequena embarcação
ancorada tarde da noite em um minúsculo porto
observando a ilha adormecida: a orla marítima
tem três cafés fechados e uma luz nua acesa.
Ouvir o som fraco dos remos no silêncio enquanto um bote
sai lentamente e depois retorna vale realmente
todos os anos de tristeza que estão por vir.

Trad.: Nelson Santander

A Brief For The Defense
Sorrow everywhere. Slaughter everywhere. If babies
are not starving someplace, they are starving
somewhere else. With flies in their nostrils.
But we enjoy our lives because that’s what God wants.
Otherwise the mornings before summer dawn would not
be made so fine. The Bengal tiger would not
be fashioned so miraculously well. The poor women
at the fountain are laughing together between
the suffering they have known and the awfulness
in their future, smiling and laughing while somebody
in the village is very sick. There is laughter
every day in the terrible streets of Calcutta,
and the women laugh in the cages of Bombay.
If we deny our happiness, resist our satisfaction,
we lessen the importance of their deprivation.
We must risk delight. We can do without pleasure,
but not delight. Not enjoyment. We must have
the stubbornness to accept our gladness in the ruthless
furnace of this world. To make injustice the only
measure of our attention is to praise the Devil.
If the locomotive of the Lord runs us down,
we should give thanks that the end had magnitude.
We must admit there will be music despite everything.
We stand at the prow again of a small ship
anchored late at night in the tiny port
looking over to the sleeping island: the waterfront
is three shuttered cafés and one naked light burning.
To hear the faint sound of oars in the silence as a rowboat
comes slowly out and then goes back is truly worth
all the years of sorrow that are to come.

Juan Vicente Piqueras – Nomes Apagados

A mente não é um lápis para tomar notas,
É uma borracha.

Marko Vesovič

Meu pai foi pouco a pouco esquecendo a linguagem.
E começou pelos nomes. O que
seu cérebro primeiro esqueceu não foram os advérbios
e pronomes, nem os adjetivos,
como seria plausível acreditar,
nem os resíduos das preposições,
mas os substantivos.

A maçã deixou de ser uma maçã,
o copo passou a ser isso,
e aqueles que se aproximavam deixaram de ter nomes.

A morte começou seu trabalho minucioso
roubando-lhe os nomes,
apagando-os, colocando
em seu lugar um isto ou um aquilo,
um me dá, um balbucio, um aceno de mão.

O que se perde por último são os verbos,
os verbos que se movem como peixes
no sangue até que o mundo se acabe,
até que o corpo já não possa com sua alma.

Os adjetivos são afetuosos,
vestem de amor aquilo que avistam
e por isso sobrevivem.

Mas os nomes se esfumam.
E a substância dos substantivos
É nonada, névoa, colunas de fumaça.

A maçã deixa de ser maçã.
Eu deixo de ter um nome.
A palavra dor não significa nada.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 23/02/2018

Nombres Borrados

La mente no es un lápiz para tomar apuntes,
es una goma de borrar.

Marko Vesovič

Mi padre fue perdiendo poco a poco el lenguaje.
Y empezó por los nombres. Lo primero
que olvidó su cerebro no fueron los adverbios
ni los pronombres no los adjetivos,
como uno estaría tentado de creer,
ni las motas de polvo de las preposiciones,
sino los sustantivos.

La manzana dejó de ser manzana,
el vaso pasó a ser eso,
y quienes se acercaban dejaban de llamarse.

La muerte comenzó su labor minuciosa
robándole los nombres,
borrándolos, poniendo
en su lugar un esto o unaquello,
un dame, un balbuceo, un gesto de la mano.

Lo último que se pierde son los verbos,
los verbos que se mueven en la sangre
como peces hasta que acaba el mundo,
hasta que ya no puede el cuerpo con su alma.

Los adjetivos son afectuosos,
visten de amor lo que miran
y por eso perviven.

Pero los nombres se esfuman.
Y la sustancia de los sustantivos
es agua de borrajas, niebla, torres de humo.

La manzana deja de ser manzana.
Yo dejo de llamarme.
La palabra dolor no significa nada.

Nikita Gill – 93 por cento de poeira estelar

93 por cento de poeira estelar
(depois de Carl Sagan, que me deu esperança quando criança)

Temos cálcio em nossos ossos,
ferro em nossas veias,
carbono em nossas almas,
e nitrogênio em nossos cérebros.

93 por cento de poeira estelar,
com almas feitas de chamas,
somos todos apenas estrelas
que têm nomes de pessoas.

Trad.: Nelson Santander

93 Percent Stardust
(after Carl Sagan, who gave me hope as a child)

We have calcium in our bones,
iron in our veins,
carbon in our souls,
and nitrogen in our brains.

93 percent stardust,
with souls made of flames,
we are all just stars
that have people names.

Diego Moraes – Já se passaram dez anos

Já se passaram dez anos
Acabou a bateria do relógio que você me presenteou no natal que
seu tio ficou bêbado de vinho Dom Bosco e disse na frente dos filhos
e da esposa que era gay e viveria com um travesti búlgaro
em Londres
Já se passaram dez anos
Os poemas que escrevi quando gozava nos teus peitos de atriz da
nouvelle vague incorporada de pomba-gira amarelaram como sífilis
na fruteira
Já se passaram dez anos
A dona Gerusa que te vendia maconha morreu de AIDS na
penitenciária e o cachorro sem nome que adotamos morreu
atropelado por um táxi
Já se passaram dez anos
Hebe morreu. Michael Jackson Morreu. Roberto Piva morreu.
James Gandolfini morreu. Manoel de Barros morreu.
Já se passaram dez anos
Mas o cheiro da sua boceta ainda está impregnado no quarto, no
guarda-roupa, na cozinha, na varanda, nas estrelas.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 22/02/2018