Jane Kenyon – O pretendente

Repousamos de costas um para o outro. As cortinas
sobem e descem,
como o peito de alguém dormindo.
Os ventos movem as folhas do bordo;
elas expõem seus lados iluminados,
girando todas de uma vez
como um cardume de peixes.
Subitamente, compreendo que estou feliz.
Por meses esse sentimento
tem-se aproximado, parando
para curtas visitas, como um tímido pretendente.

Trad.: Nelson Santander

The Suitor

We lie back to back. Curtains
lift and fall,
like the chest of someone sleeping.
Wind moves the leaves of the box elder;
they show their light undersides,
turning all at once
like a school of fish.
Suddenly I understand that I am happy.
For months this feeling
has been coming closer, stopping
for short visits, like a timid suitor.

Paulo Henriques Britto – Mosaico

Os dias a amontoar-se
como se rumo a um sentido,
algo que se assemelhasse
a uma meta, ou um destino,  

mas formando (sem sabê-lo,
claro — o que sabem os dias?)
uma estrutura em relevo,
espécie de marchetaria,  

com padrão indecifrável
(por não seguir um projeto),
mas assim mesmo um resguardo,
um remédio contra o medo  

de nada haver — nem padrão,
nem projeto, nem destino
no mundo, nada senão
o amontoar-se dos dias

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 04/01/2017

Roderick Ford – Giuseppe

Meu tio Giuseppe me contou
que na Sicília, durante a 2ª Guerra Mundial,
no pátio atrás do aquário,
onde a buganvília crescia tão bem,
a única sereia cativa do mundo
foi esquartejada no solo seco e empoeirado
por um médico e um peixeiro, dentre outros.
Ela, aquilo, nunca aprendera a falar
porque era simplória, ou assim diziam.
Mas o padre que segurou uma de suas mãos
enquanto sua garganta era cortada
disse que ela era apenas um peixe, e peixes não podem falar.
Mas ela gritou como uma mulher aterrorizada.
E quando eles arrancaram uma ova amarela madura
por um de seus flancos, o médico disse
que aquilo era a prova de que ela era apenas um peixe
e que, de qualquer forma, um ovo não é um bebê,
mas recusou quando alguns lhe foram oferecidos.
Então eles colocaram a cabeça e as mãos
em uma caixa para o enterro
e alguém tentou tirar o seu anel de casamento,
mas os outros o impediram,
e o anel ficou onde estava.
O resto, eles cozinharam e usaram para alimentar as tropas.
Disseram que um grande peixe fora encontrado na praia.
A fome perdoa muitas coisas,
disse meu tio, o cuidador do aquário,
mas não conseguia me olhar nos olhos,
pelo que agradeço a Deus.

Trad.: Nelson Santander

Giuseppe

My Uncle Giuseppe told me
that in Sicily in World War Two,
in the courtyard behind the aquarium,
where the bougainvillea grows so well,
the only captive mermaid in the world
was butchered on the dry and dusty ground
by a doctor, a fishmonger, and certain others.
She, it, had never learned to speak
because she was simple, or so they’d said.
But the priest who held one of her hands
while her throat was cut,
said she was only a fish, and fish can’t speak.
But she screamed like a woman in terrible fear.
And when they took a ripe golden roe
from her side, the doctor said
this was proof she was just a fish
and anyway an egg is not a child,
but refused when some was offered to him.
Then they put her head and her hands
in a box for burial
and someone tried to take her wedding ring,
but the others stopped him,
and the ring stayed put.
The rest they cooked and fed to the troops.
They said a large fish had been found on the beach.
Starvation forgives men many things,
my uncle, the aquarium keeper, said,
but couldn’t look me in the eye,
for which I thank God.

Paulo Henriques Britto – De “Biographia Literária”

V

Céu azul. Cores vivas. Você rindo
de alguma coisa ou alguém que está à esquerda
do fotógrafo. É talvez domingo.
É claro que essa sensação de perda

não está na foto, não – não está na imagem
extremamente, absurdamente nítida.
E se fosse menor a claridade,
ou se estivesse sem foco, ou tremida,

ou se fosse em sépia, ou preto e branco,
talvez a foto não doesse tanto?
Você, às gargalhadas. O motivo

você não lembra. A foto é muito boa.
Naquele tempo você ria à toa,
você lembra. Você ainda era vivo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 03/01/2017

R. S. Thomas – O campo brilhante

Eu vi o sol avançar até
iluminar um pequeno campo
por um momento, segui meu caminho
e o esqueci. Mas aquela era uma
pérola de grande valor, o único campo com
um tesouro dentro dele. Agora percebo
que devo dar tudo o que tenho
para possuí-lo. A vida não está em lançar-se

para um futuro que se afasta, nem ansiar por
um passado imaginado. Mas, como fez Moisés
em direção ao milagre da sarça em chamas,
em desviar-se para um brilho que parecia
tão transitório quanto sua juventude outrora,
mas que é a eternidade que o aguarda.

Trad.: Nelson Santander

The Bright Field

I have seen the sun break through
to illuminate a small field
for a while, and gone my way
and forgotten it. But that was the
pearl of great price, the one field that had
treasure in it. I realise now
that I must give all that I have
to possess it. Life is not hurrying

on to a receding future, nor hankering after
an imagined past. It is the turning
aside like Moses to the miracle
of the lit bush, to a brightness
that seemed as transitory as your youth
once, but is the eternity that awaits you.

Paulo Henriques Britto – De “Seis Sonetos Soturnos”

I

A qualquer hora, o que se chama vida
pode mudar da água pro vinho. Ou vice-
-versa. Cada palavra proferida —
uma sentença grave, uma tolice —
pode retornar feito um bumerangue
capaz de destruir o que encontrar.
E nada que se funde em carne e sangue
escapa dessas bólides de ar:
o amor e demais estados de graça,
reputações, ações, fazendas, gado,
longos corredores, salas de espera —
tudo à mercê do que afinal não passa
de ar comprimido, aos poucos exalado,
que logo se dissipa na atmosfera.

………………

V

As coisas sempre podem piorar.
Não há limite para o abismo estreito
que se abre justamente no lugar
onde a relação entre causa e efeito
parece indicar que a crosta é mais dura
e é mais remoto o risco da ruptura.

E no entanto, aberta a fenda, uma vez
desmascarada a aparência enganosa
de integridade e estrita solidez,
a mente busca uma saída honrosa
e com algo assim por fim se contenta:
Agora sei onde a corda arrebenta.

Refeita, pois, do golpe, e sem temer mais nada,
expõe um novo flanco à próxima porrada.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 02/01/2017

Craig Santos Perez — Amor em tempos de mudanças climáticas

Amor em tempos de mudanças climáticas

reciclando o “Sonnet XVII”1 de Pablo Neruda

Não te amo como se fosses metais raros da terra,
diamantes de sangue ou reservas de petróleo bruto que provocam
a guerra. Eu te amo como amamos as espécies mais
vulneráveis: urgentemente, entre o habitat e a sua perda.

Eu te amo como se ama a última semente a salvo
dentro de um cofre, gestando a herança de nossas origens,
e, graças ao teu corpo, o sabor que amadurece
dos teus frutos ainda vive docemente em minha língua.

Eu te amo sem saber como ou quando este mundo
vai acabar. Eu te amo organicamente, sem pesticidas.
Eu te amo assim porque nós somente sobreviveremos

no composto rico em nitrogênio do nosso abraço,
tão perto que tuas emissões de carbono são minhas,
tão perto que teu mar se eleva com o meu calor.

Trad.: Nelson Santander

Nota:

O Soneto XVII, de Neruda, é o que segue, na tradução de Carlos Nejar:

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascendeu da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

senão assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que tua mão sobre meu peito e minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

Love in a Time of Climate Change

recycling Pablo Neruda’s “Sonnet XVII”

I don’t love you as if you were rare earth metals,
conflict diamonds, or reserves of crude oil that cause
war. I love you as one loves the most vulnerable
species: urgently, between the habitat and its loss.

I love you as one loves the last seed saved
within a vault, gestating the heritage of our roots,
and thanks to your body, the taste that ripens
from its fruit still lives sweetly on my tongue.

I love you without knowing how or when this world
will end. I love you organically, without pesticides.
I love you like this because we’ll only survive

in the nitrogen rich compost of our embrace,
so close that your emissions of carbon are mine,
so close that your sea rises with my heat.

Paulo Henriques Britto – Madrigal

Desista: não vai dar certo.
O mundo é o mesmo de sempre,
desejo é uma coisa cega.
Desista, enquanto é tempo.

As mãos não sabem o que pegam,
os pés vão aonde não sabem.
As cartas estão marcadas:
vai dar desgraça na certa.

O mundo é sempre a esmo,
desejo é uma porta aberta.
Desista, que a vida é incerta.
Ou insista. Dá no mesmo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 31/12/2016

Lucille Clifton – o poema do bebê perdido

na vez em que deixei cair seu quase corpo
para encontrar as águas sob a cidade
e nelas fluir com o esgoto para o mar
o que sabia eu sobre águas correndo de volta
o que sabia eu sobre afogamento
ou sobre ser afogada

você teria nascido no inverno
no ano do gás desligado
e sem carro teríamos feito a singular
caminhada pela genesee hill sob o vento do canadá
para vê-lo escorregar como gelo para as mãos de estranhos
você teria caído nu como a neve no inverno
se você estivesse aqui eu poderia contar-lhe sobre estas
e algumas outras coisas

se eu for menos que uma montanha
para seus irmãos e irmãs definitivos
que os rios transbordem sobre minha cabeça
que as águas me levem por uma vazante
dos mares que os homens pretos me chamem de estranha
sempre para a sua causa nunca nomeada

Trad.: Nelson Santander
the lost baby poem

the time i dropped your almost body down
down to meet the waters under the city
and run one with the sewage to the sea
what did i know about waters rushing back
what did i know about drowning
or being drowned

you would have been born into winter
in the year of the disconnected gas
and no car we would have made the thin
walk over genesee hill into the canada wind
to watch you slip like ice into strangers’ hands
you would have fallen naked as snow into winter
if you were here i could tell you these
and some other things

if i am ever less than a mountain
for your definite brothers and sisters
let the rivers pour over my head
let the sea take me for a spiller
of seas let black men call me stranger
always for your never named sake

Gwendolyn Brooks – a mãe

Abortos não te deixam esquecer.
Você se lembra das crianças que gerou mas não teve,
Da polpinha molhada com pouco ou nenhum cabelo,
Cantores e trabalhadores que nunca viram a luz do dia.
Você nunca irá negligenciá-los ou bater
Neles, ou mandar eles se calarem ou lhes comprar um confeito.
Você nunca vai arrancar da boca o dedo que chupam
Ou espantar os fantasmas que aparecem.
Você nunca vai abandoná-los, controlando seu suspiro luxurioso,
Nem vai voltar para comê-los, com devoradores olhos de mãe.

Eu ouvi nas vozes do vento as vozes das minhas indefinidas crianças mortas.
Eu me contraí. Eu acalmei
Meus entes indefinidos, nos peitos em que eles nunca mamaram.
Eu disse, Queridos, se eu pequei, se eu tivesse decidido
Sua sorte
E suas vidas de ter um alcance incompleto
Se eu lhes roubei seus nascimentos e seus nomes,
Suas lágrimas de bebê e suas brincadeiras,
Seus amores estranhos ou fofos, seus tumultos, seus casamentos, suas dores, e mortes
Se eu envenenei o começo dos seus fôlegos,
Acreditem em mim que mesmo na minha assertividade eu não fui assertiva.
Mas mesmo assim porque deveria eu choramingar,
Choramingar que o crime não foi meu? —
Porque de todo jeito vocês estão mortos.
Ou melhor, pelo contrário,
Vocês nunca foram feitos.
Mas isso também, suponho,
É uma culpa: ai, o que é pra eu dizer, como dizer a verdade?
Vocês nasceram, tiveram corpo, morreram.
A diferença é que vocês nunca riram ou fizeram planos ou choraram.

Acreditem, eu amei todos vocês.
Acreditem, eu conhecia todos vocês, ainda que pouco, e amei, amei vocês
Todos.

Trad.: Adelaide Ivánova

Nota: eu mesmo pretendia traduzir este poema. Até que me deparei com esta insuperável tradução feita pela fotógrafa, escritora, tradutora e poeta pernambucana Adelaide Ivánova, publicada na versão para a internet do Jornal Literário da Companhia Editora de Pernambuco (aqui: Um poema de Gwendolyn Brooks e o debate humanizado sobre o aborto). Como nos EUA este poema às vezes é invocado por membros de movimentos Pró-vida como uma espécie de manifesto anti-aborto (por exemplo: Christianity Today e Why I am a black Pro-Life Pastor), é importante ler também o comentário sobre o poema que Ivánova faz ao final de sua tradução:

“Gwendolyn Brooks (1917–2000) foi uma poeta e professora estadunidense, a primeira afro-americana a receber o Prêmio Pulitzer de Poesia, que venceu em 1950, com o livro Annie Allen. No delicado poema que você lê nesta página, Brooks humaniza o debate sobre aborto sem condená-lo moralmente, e nos lembra de um aspecto fundamental: abortos são feitos por vontade ou necessidade, e ambas são legítimas, mas nunca é uma decisão que se toma levianamente. Num ano como 2020, em que crianças de dez anos foram expostas e coagidas por servidores públicos cuja função é de protegê-la, não de humilhá-la; num ano em que milhões de pessoas de todos os gêneros saíram às ruas na Polônia e da Argentina para lutar pelo direito ao aborto legal, é da maior importância um poema que nos lembre que mulheres são muito mais que corpos — são seres humanos com subjetividades complexas e, sobretudo, seres humanos com direito ao exercício pleno de sua autonomia.”

the mother

Abortions will not let you forget.
You remember the children you got that you did not get,
The damp small pulps with a little or with no hair,
The singers and workers that never handled the air.
You will never neglect or beat
Them, or silence or buy with a sweet.
You will never wind up the sucking-thumb
Or scuttle off ghosts that come.
You will never leave them, controlling your luscious sigh,
Return for a snack of them, with gobbling mother-eye.

I have heard in the voices of the wind the voices of my dim killed children.
I have contracted. I have eased
My dim dears at the breasts they could never suck.
I have said, Sweets, if I sinned, if I seized
Your luck
And your lives from your unfinished reach,
If I stole your births and your names,
Your straight baby tears and your games,
Your stilted or lovely loves, your tumults, your marriages, aches, and your deaths,
If I poisoned the beginnings of your breaths,
Believe that even in my deliberateness I was not deliberate.
Though why should I whine,
Whine that the crime was other than mine?—
Since anyhow you are dead.
Or rather, or instead,
You were never made.
But that too, I am afraid,
Is faulty: oh, what shall I say, how is the truth to be said?
You were born, you had body, you died.
It is just that you never giggled or planned or cried.

Believe me, I loved you all.
Believe me, I knew you, though faintly, and I loved, I loved you
All.