Carlos Drummond de Andrade – O Medo

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo…
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes…
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 02/06/2016

Linda Pastan – Estou aprendendo a abandonar este mundo

Estou aprendendo a abandonar este mundo
antes que ele possa me abandonar.
Já renunciei à lua
e à neve, fechando minhas persianas
contra as reivindicações do branco.
E o mundo levou
meu pai, meus amigos.
Abandonei as linhas melódicas das colinas,
mudando para uma paisagem plana, dissonante.
E toda noite abandono meu corpo,
membro por membro, seguindo
através dos ossos, em direção ao coração.
Mas a manhã chega trazendo as pequenas
tréguas do café e o canto dos pássaros.
Uma árvore do lado de fora da janela,
que era apenas sombra momentos atrás
recolhe de volta seus galhos, ramo
por ramo frondoso.
E enquanto retomo meu corpo,
o sol pousa seu caloroso focinho em meu colo
como se quisesse se redimir.

Trad.: Nelson Santander

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I am learning to abandon the world

I am learning to abandon the world
before it can abandon me.
Already I have given up the moon
and snow, closing my shades
against the claims of white.
And the world has taken
my father, my friends.
I have given up melodic lines of hills,
moving to a flat, tuneless landscape.
And every night I give my body up
limb by limb, working upwards
across bone, towards the heart.
But morning comes with small
reprieves of coffee and birdsong.
A tree outside the window
which was simply shadow moments ago
takes back its branches twig
by leafy twig.
And as I take my body back
the sun lays its warm muzzle on my lap
as if to make amends.

Rainer Maria Rilke – Morgue

Estão prontos, ali, como a esperar
que um gesto só, ainda que tardio,
possa reconciliar com tanto frio
os corpos e um ao outro harmonizar;

como se algo faltasse para o fim.
Que nome no seu bolso já vazio
há por achar? Alguém procura, enfim,
enxugar dos seus lábios o fastio:

em vão; eles só ficam mais polidos.
A barba está mais dura, todavia
ficou mais limpa ao toque do vigia,

para não repugnar o circunstante.
Os olhos, sob a pálpebra, invertidos,
olham só para dentro, doravante.

Trad.: Augusto de Campos

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 01/06/2016

Morgue

Da liegen sie bereit, als ob es gälte,
nachträglich eine Handlung zu erfinden,
die mit einander und mit dieser Kälte
sie zu versöhnen weiß und zu verbinden;

denn das ist alles noch wie ohne Schluß.
Was für ein Name hätte in den Taschen
sich finden sollen? An dem Überdruß
um ihren Mund hat man herumgewaschen:

er ging nicht ab; er wurde nur ganz rein.
Die Bärte stehen, noch ein wenig härter,
doch ordentlicher im Geschmack der Wärter,

nur um die Gaffenden nicht anzuwidern.
Die Augen haben hinter ihren Lidern
sich umgewandt und schauen jetzt hinein.

Dan Gerber – Cinema Paradiso

No final de novembro
palavras apareceram na ponta da minha caneta
como a resposta a uma pergunta que
eu ainda não havia feito.
Uma tornou-se um condor; outra,
uma nuvem,
enquanto uma terceira palavra, espinhosidade,
ganhou vida no sonho de um cardo.
O que é mais real,
a neve ou a bola de neve,
a palavra ou as letras que a
compõe?
Eu empacotei a neve, uma galáxia de minúsculas
estrelas brancas entre as palmas das mãos.
É assim que surge um buraco negro?
Não, um buraco negro é um eixo
repleto de luz.
Com o tempo,
que nem vem nem vai,
o próprio universo pode
se tornar um buraco negro;
nesse caso ainda estaremos todos juntos,
na escuridão,
esperando o início do espetáculo.

Trad.: Nelson Santander
Cinema Paradiso

On a morning in November
words appeared at the end of my pen
like the answer to a question
I hadn’t yet asked.
One became a condor, another
a cloud,
while a third word, spinosity,
came to life in the dream of a thistle.
Which is more real,
the snow or the snowball,
the word or the letters of which
it’s composed?
I packed the snow, a galaxy of tiny
white stars between my palms.
Is this how a black hole begins?
No, a black hole is an axis
chock-full of light.
In time,
which neither comes nor goes on,
the universe itself may
become a black hole,
in which case we’ll all still be together,
in the dark,
waiting for the show to begin.

Ruy Proença – Tiranias

antigamente
diziam: cuidado,
as paredes têm ouvidos

então
falávamos baixo
nos policiávamos

hoje
as coisas mudaram:
os ouvidos têm paredes

de nada
adianta
gritar

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 29/05/2016

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Billy Collins – O desfile

Que emocionante foi marchar
ao longo das grandes avenidas
debaixo do clarão das trombetas
e sob todas as bandeiras tremulantes —
a bandeira da ambição, a bandeira do amor.

Tantos de nós fluindo ao longo do caminho —
toda a humanidade, na verdade —
movendo-se em perfeita sintonia,
mas cada qual perdido no quarto de um sonho particular.

Como é estimulante a paisagem do mundo,
as fileiras de árvores à beira da estrada,
a enorme cortina do céu.

Quão interminável parecia até que nos desviássemos
da grande estrada
para um pasto de grama alta,
em direção aos vertiginosos penhascos da mortalidade.

Geração após geração,
continuamos avançando
até pularmos da borda para o espaço.

E eu não deveria ter que lembra-lo
de que neste lugar pouco tempo é dado
para descansar em um banco à beira do caminho,
para parar e curvar-se para as flores silvestres,
ou para estudar um pássaro em um galho —

não quando os jovens
estão sempre nos empurrando por trás,
não quando os velhos continuam nos puxando para frente,
puxando nossos braços com toda sua débil força.

Trad.: Nelson Santander

The Parade

How exhilarating it was to march
along the great boulevards
in the sunflash of trumpets
and under all the waving flags—
the flag of ambition, the flag of love.

So many of us streaming along—
all of humanity, really—
moving in perfect step,
yet each lost in the room of a private dream.

How stimulating the scenery of the world,
the rows of roadside trees,
the huge curtain of the sky.

How endless it seemed until we veered
off the broad turnpike
into a pasture of high grass,
headed toward the dizzying cliffs of mortality.

Generation after generation,
we keep shouldering forward
until we step off the lip into space.

And I should not have to remind you
that little time is given here
to rest on a wayside bench,
to stop and bend to the wildflowers,
or to study a bird on a branch—

not when the young
are always shoving from behind,
not when the old keep tugging us forward,
pulling on our arms with all their feeble strength.

Darcy Ribeiro – A Indesejada

Aí estão eles, os da terceira idade.
Gregários, vivem aos bandos.
Sentados, jogando cartas, andando devagar.
Conversando pretéritos assuntos.
Olhando tristes os outros viverem.

Antigamente, todos seriam avós, vovozinhos.
Hoje, são sogros, os chatos dos sogros.
Uns são viúvos, outros largados, poucos.
Muitos deles, os mais, ainda casados.
As mulheres duram demais.

Órfãos de seus filhos, ocupadíssimos.
Não reclamam, resmungam disfarçados.
Estão todos aflitos, na espera
Da indesejada, que tarda.
Tarda, é certo, mas virá. Inexorável.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 01/05/2016

Carolyn Creedon – Mulher, minada

Na seção de cosméticos da Lord & Taylor
eles a levarão para um lugar bem exposto,
claro como o dia, e a fotografarão com uma câmera ultravioleta,
mostrando-lhe o que você fez com sua pele apenas
por viver, seu rosto subitamente exposto, como aquilo que
realmente está acontecendo sob uma tora levantada, a verdadeira você
que você é, capturada e fixada como uma mariposa,
como uma ladra, como uma mulher sobre uma mesa

e a senhora no impecável jaleco branco sacudirá
habilmente o instantâneo na sua frente, disposto
como um mapa de países conquistados, codificado por cores,
os lugares roxos e marrons que você abandonou
sem cuidados aos vinte e poucos anos, para as noitadas e
espreguiçadeiras e homens junto a piscinas, todos os homens
que você tocou, aqueles que a marcaram, cujos sinais
você carrega, e agora você pode ver a arqueologia
das lágrimas, seus rastros de ácido branco, e a senhora
dirá, severamente, Veja o que você fez

e você verá o estrago que fez, e você
verá as vezes em que foi descuidadamente para a cama
com alguém sem o hidratante adequado, quando você
amamentou aquele homem como a um bebê, e quando você se movia
com outro como uma menina sobre uma cadeira de balanço até cair
e perde-lo, e quando finalmente escolheu um outro, como a melhor de todas as
flores, e o manteve, chorou com ele, fez-lhe sanduíches,
fez-lhe um bebê, e você envergará o seu rosto
com seu âmbar merecido, sua ametista, seu entalhe
de diamante lanhado, e dirá: Eu sou lapidada assim.

Trad.: Nelson Santander

Woman, Mined

In the cosmetics department of Lord & Taylor
they’ll take you right there, right out in the open,
plain as day, and snap you with an ultraviolet camera,
show you what you’ve done to your skin just
by living, your face exposed suddenly like what’s
really going on under a lifted-up log, the real you
you are, caught and pinned like a moth,
like a shoplifter, like a woman on a table

and the lady in the crisp white smock will expertly
flick the snapshot in front of you, laid out
like a color-coded map of conquered countries,
the purples and browns places you gave up
without a care in your twenties, to late nights
and poolside deck chairs and men, all the men
you touched, the ones who marked you, whose traces
you bear, and now you can see the archaeology
of tears, their white-acid trails, and the lady
will say, sternly, Look what you did

and you will see the mess of it you made, and you
will see the times when you carelessly went to bed
with someone without the proper moisturizer, when you
suckled that man like a baby, and when you moved
with another like a girl on a rocker until you fell off
and lost him, and finally picked another, like the best-of-all
flower, and kept him, cried on him, made him sandwiches,
made him a baby, and you’ll wear your face
with its amber earned, its amethyst, its intaglio tear-
etched diamond, and say, I am cut that way.

Darcy Ribeiro – Amor

Quero um amor alucinado, depravado, tarado.
Amor inteiro, de corpo-a-corpo, enlaçados.
Amor sem reserva, que a tudo se entrega, lancinante.

Quero você assim, abrasada, pedindo gozo,
Eriçada, ronronando feito gata, tesuda.
Seus seios túmidos, me furando o peito.

Quero você, pentelho contra pentelho, roçantes.
Carne encravada na carne. Bocas coladas,
Babadas, meladas, sangrando sufocadas.

Quero amar você tão bichalmente que urremos.
Eu, penetrando rasgando. Você me comendo furiosa.
Nós dois fundidos, unidos, soldados.

Você e eu, nós dois, sós, neste mundo dos outros.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 01/05/2016

Donizete Galvão – Ruminações

Nunca saí dessa roceira Minas
que nos dá aflição e dor como herança.
Lamaçal de bosta de vaca
no curral bem em frente da casa.
Cheiro de leite azedo nos latões
e de óleo queimado para expulsar bernes.
Jardins de dália e corações magoados,
chás de consolda e escaldados de quirera.
A avó socando o arroz no pilão,
preparando decoada para o sabão
ou com rodilhas para o feixe de lenha.
Compras sem um item supérfluo
anotadas nas cadernetas de armazém.
Terras tomadas por sapé e sorocaba
e vendidas para pagar promissórias.
Vidas acanhadas atrás de janelas
na cidade que não definha nem prospera.
Rancores cultivados durante anos,
as mesquinharias de parentes.
Amor ressabiado, apenas sugerido,
abraços sem calor, corpos com arestas.
Podem dar-me asas, cheques de viagem,
mandar-me para velejar em Bizâncio.
Recolho, rumino e regurgito
a as aspereza daqueles dias.
Rejeito sua rica hospedagem.
Sou um estranho em suas festas.
Nunca saí desse círculo de ferro.
Nunca saí dessa Minas que não termina.