Richard Eberhart – A marmota

Em junho, entre os campos dourados,
Avistei uma marmota morta.
Morta ela estava; meu juízo se abalou,
E a mente projetou a nossa fragilidade nua.
Lá embaixo, humilde no vigoroso verão,
Sua forma iniciou sua mudança sem sentido,
E fez oscilar meus sentidos para o sombrio
Vendo a natureza feroz que nela havia.
Inspecionando de perto o poder de seus vermes
E o caldeirão fervilhante do seu ser,
Meio com nojo, meio possuído por um estranho amor,
Mexi nela com um enérgico bastão.
A febre irrompeu, tornou-se uma chama
E o vigor circunscreveu os céus,
Imensa energia ao sol,
E, através de minha moldura, um tremor sem sol.
O pau que usei não fez nem bem nem mal.
Permaneci então em silêncio durante o dia
Observando o objeto, como antes;
E mantive minha reverência pela experiência,
Tentando manter o controle, ficar quieto,
Para apaziguar a paixão do sangue;
Até que me pus de joelhos
Orando por alegria perante a decadência.
Fui então embora; e retornei
No outono, de olhar severo, para ver
A seiva esvaída da marmota,
Embora a magra carcaça informe remanescesse.
O ano, porém, tinha perdido seu significado,
E em correntes intelectuais
Eu perdera a atração e a aversão em igual medida,
Encarcerado entre os muros da sensatez.
Outro verão tomou os campos novamente,
Massivo e abrasador, cheio de vida,
Mas quando por acaso encontrei o local
Nele havia apenas um pouco de pelo,
E ossos branqueando ao sol,
Belos como uma arquitetura.
Observei-os como um geômetra,
E de uma bétula fiz um bastão.
Já se passaram três anos agora.
Não há nenhum sinal da marmota.
Fiquei parado ali, no turbulento verão,
Minha mão cobrindo um coração ressequido,
E pensei na China e na Grécia,
Em Alexandre e sua tenda,
Em Montaigne em sua torre,
Em Santa Tereza em seu lamento selvagem.

Trad.: Nelson Santander

The Groundhog

In June, amid the golden fields,
I saw a groundhog lying dead.
Dead lay he; my senses shook,
And mind outshot our naked frailty.
There lowly in the vigorous summer
His form began its senseless change,
And made my senses waver dim
Seeing nature ferocious in him.
Inspecting close his maggots’ might
And seething cauldron of his being,
Half with loathing, half with a strange love,
I poked him with an angry stick.
The fever arose, became a flame
And Vigour circumscribed the skies,
Immense energy in the sun,
And through my frame a sunless trembling.
My stick had done nor good nor harm.
Then stood I silent in the day
Watching the object, as before;
And kept my reverence for knowledge
Trying for control, to be still,
To quell the passion of the blood;
Until I had bent down on my knees
Praying for joy in the sight of decay.
And so I left; and I returned
In Autumn strict of eye, to see
The sap gone out of the groundhog,
But the bony sodden hulk remained.
But the year had lost its meaning,
And in intellectual chains
I lost both love and loathing,
Mured up in the wall of wisdom.
Another summer took the fields again
Massive and burning, full of life,
But when I chanced upon the spot
There was only a little hair left,
And bones bleaching in the sunlight
Beautiful as architecture;
I watched them like a geometer,
And cut a walking stick from a brich.
It has been three years, now.
There is no sign of the groundhog.
I stood there in the whirling summer,
My hand capped a withered heart,
And thought of China and of Greece,
Of Alexander in his tent;
Of Montaigne in his tower,
Of Saint Theresa in her wild lament.

Jane Hirshfield – Dentro desta árvore

Dentro desta árvore
outra árvore
habita o mesmo tronco;
dentro desta pedra
outra pedra descansa,
com muitos tons de cinza
iguais,
com superfície
e peso idênticos.
E dentro do meu corpo,
outro corpo,
cuja história, à espera,
canta; não há outro corpo,
ela canta,
não há outro mundo.

Trad.: Nelson Santander

Within this tree

Within this tree
another tree
inhabits the same body;
within this stone
another stone rests,
its many shades of grey
the same,
its identical
surface and weight.
And within my body,
another body,
whose history, waiting,
sings; there is no other body,
it sings,
there is no other world.

Gonçalo M. Tavares – Sobre o mundo

O telescópio não alcança sequer a tua alma;
Imprecisão exata de um instrumento instintivo.
Mas repara: não há instrumentos instintivos ou máquinas
espontâneas.
Dois terços do amor estão na mulher, qualquer
que seja o casal. As evidências abrem falência
em todas as áreas; com o machado homens robustos inventam
ciências viris. Indispensáveis, de facto:
ciências meigas já existem em número
excessivo. Monumentos que ocupam
quilômetros quadrados são explicados por uma equação de
dois centímetros. Repara: a engenharia é a invenção que engordou
as equações matemáticas. Atirou-as para o Mundo.
Vê as águas, a sabedoria discreta: ninguém
constrói uma torre de observação no centro
do mar. As águas não se bebem
por inteiro, e nem toda a água é doméstica. O mar não tem
diminutivos. Uma onda não o é.
Nem o peixe.
Ciências que estudem seriamente o riso
não existem; os cientistas
colocam fórmulas em tabelas: têm gráficos complexos
que explicam a simplicidade
do Mundo. Felizmente, fomos salvos
pelo coração.
Certos órgãos ficaram reféns dos profetas
antigos, e as noites passam-se melhor assim.
Indecisões desconcertantes permitem reinventar a
monotonia: Trago-te uma monotonia surpreendente, alguém diz.
Animais mitológicos bebem água no nada,
e mesmo assim crescem; têm células resistentes.
Outros animais mais longos e espessos, mamíferos
de grande porte por exemplo, evaporam a 36°, reaparecendo
não carnívora. O mundo muda,
Não pense que não. Nem os mamíferos são eternos.
No aeródromo, por exemplo, o poema atravanca o caminho
de descolagem
do avião de um
País pouco habituado a máquinas que subam mais
alto que um banco de cozinha. O mundo
não é injusto, mas também não é teu mordomo;
Avança e é só.

Alberto Szpunberg – De “Sol de noche”

XIV

Embora já saibas que nada volta, volta para casa,
aceita a pequena mentira como um lapso
antes que o inverno te surpreenda
sob uma árvore de ramos despojados:
aqui termina o bosque,
o que cresceu em teus sonhos
antes mesmo de tuas mãos roçarem os troncos:
a pradaria que se estende perante teus olhos
como um mar envolto em luminosa névoa
não tem por que ser o desamparo
que se abraça a teus ossos:
tudo não passou de uma brincadeira de criança,
em que as regras eram
inocentes trapaças consentidas.

Trad.: Nelson Santander

De “Sol de noche”

XIV

Aunque ya sabes que nunca se vuelve, vuelve a casa,
acepta la pequeña mentira como un guiño
antes de que el invierno te sorprenda
bajo un árbol de ramas despojadas:
acá se acaba el bosque,
el que creció en tus sueños
aun antes de que tus manos rozaran la corteza:
la llanura que se extiende ante tus ojos
como un mar envuelto en luminosa niebla
no tiene por qué ser el desamparo
que se abraza a tus huesos:
todo ha sido un juego de niños,
donde las reglas eran
inocentes trampas consentidas.

Ana Martins Marques – [Pense em quantos anos foram necessários para chegarmos a este ano]

Pense em quantos anos foram necessários para chegarmos a este ano
quantas cidades para chegarmos a esta cidade
e quantas mães, todas mortas, até tua mãe
quantas línguas até que a língua fosse esta
e quantos verões até precisamente este verão
este em que nos encontramos neste sítio
exato
à beira de um mar rigorosamente igual
a única coisa que não muda porque muda sempre
quantas tardes e praias vazias foram necessárias para chegarmos ao vazio
desta praia nesta tarde
quantas palavras até esta palavra, esta

Marie Howe – Meus amigos mortos

Comecei,
quando estou cansada e não consigo decidir a resposta que devo dar a uma pergunta desconcertante,

a pedir a opinião dos meus amigos mortos
e frequentemente a resposta é imediata e clara.

Devo aceitar o emprego? Mudar-me para a cidade? Devo tentar conceber um filho
em minha meia idade?

Em uníssono, eles balançam suas cabeças e sorriem – o que quer que conduza
à felicidade, eles sempre respondem,

a mais vida e menos preocupação. Eu olho para a urna onde estavam as cinzas de Billy –
é verde ali, uma urna verde,

e pergunto-lhe se devo retornar a complicada ligação, e ele diz: sim.
Billy já passou pelo apavorante portal,

o que quer que ele diga, eu farei.

Trad.: Nelson Santander

My Dead Friends

I have begun,
when I’m weary and can’t decide an answer to a bewildering question

to ask my dead friends for their opinion
and the answer is often immediate and clear.

Should I take the job? Move to the city? Should I try to conceive a child
in my middle age?

They stand in unison shaking their heads and smiling — whatever leads
to joy, they always answer,

to more life and less worry. I look into the vase where Billy’s ashes were –
it’s green in there, a green vase,

and I ask Billy if I should return the difficult phone call, and he says, yes.
Billy’s already gone through the frightening door,

whatever he says, I’ll do.

Emily Dickinson – Poema 1.222

O Enigma decifrado
Despreza-se com pressa —
A Surpresa de Ontem
Já não nos interessa —

Trad.: Augusto de Campos

Poem 1.222

The Riddle we can guess
We speedily despise —
Not anything is stale so long
As Yesterday’s surprise —

Robert Bly – Pessoas como nós

Pessoas como nós

     para James Wright

Há mais como nós. Em toda parte
Há pessoas confusas, que não conseguem lembrar
O nome do próprio cão quando acordam, e pessoas
Que amam a Deus mas não se lembram onde

Ele estava quando foram dormir. Não
Tem problema. O mundo se purifica desta forma.
Um número errado lhe ocorre no meio
Da noite, você o disca, e ele toca bem a tempo

De salvar uma casa. E o cara do segundo andar
Vai a um endereço errado, onde mora o insone,
E ele está solitário, e eles conversam, e o ladrão
Volta para a faculdade. Mesmo na pós-graduação,

Você pode entrar na sala errada,
E ouvir grandes poemas afetuosamente declamados
Pelo professor errado. E você encontra sua alma,
E a grandiosidade tem um defensor, e mesmo na morte
               [você está seguro.

People Like Us

     for James Wright

There are more like us. All over the world
There are confused people, who can’t remember
The name of their dog when they wake up, and people
Who love God but can’t remember where

He was when they went to sleep. It’s
All right. The world cleanses itself this way.
A wrong number occurs to you in the middle
Of the night, you dial it, it rings just in time

To save the house. And the second-story man
Gets the wrong address, where the insomniac lives,
And he’s lonely, and they talk, and the thief
Goes back to college. Even in graduate school,

You can wander into the wrong classroom,
And hear great poems lovingly spoken
By the wrong professor. And you find your soul,
And greatness has a defender, and even in death you’re safe.

Juan Vicente Piqueras – Taças de sede

Se duvidas de tua sede, se não te atreves
a questiona-la ou a dar-lhe um nome,
se só sabes que buscas uma água
que a sacie e não achas senão poços,
e neles ecos que te chamam, bebe.

Se ao beber a sede desaparece
é que era só sede. Segue buscando.

Mas se cresce em ti quando a sacias,
se não queres parar de ter sede
mas seguir bebendo dia e noite
taças de sede, não há dúvida:
podes chama-la amor, seguir sofrendo,
e saber que não há ninguém que te guia.

Trad.: Nelson Santander

Vasos de Sed

Si dudas de tu sed, si no te atreves
a preguntarle o a ponerle un nombre,
si sólo sabes que buscas un agua
que la sacie y no hallas sino pozos,
y en ellos ecos que te llaman, bebe.

Si la sed al beber desaparece
es que era sólo sed. Sigue buscando.

Pero si crece en ti cuando la sacias,
si quieres no dejar de tener sed
sino seguir bebiendo día y noche
vasos de sed, no hay duda:
puedes llamarla amor, seguir sufriendo,
y saber que no existe quien te guía.

Jorge Valdés Díaz-Vélez – Canção de fevereiro

Canção de fevereiro

no peito do céu, palpitando
Jaime Gil de Biedma

Leve e triste, a tarde se retira
contigo até o crepúsculo e as horas
começam a doer nas dobras distantes
do lençol. Subitamente
a noite regressou e é difícil
não pensar em teus efêmeros lábios
ou nas altas regiões do teu corpo
glorificando em telas de algodão.
Agora que não estás, olho para trás
para o raio que divide tuas pestanas
e o arrepio de tuas costas
moldando-me os braços, o sorriso
do teu sexo na vertigem dos lábios,
o instante fluvial de tua alegria.
Ao longe respira o mar, eleva
a superfície suave seu encerramento
sob um relento de líquidos cristais.
A noite sem tua pele cresce mais profundamente
pelas ruas onde asperges a chuva.
Em silêncio te recordo, garota,
com as últimas brasas que se apagam
contra o peito do céu, palpitando.

Trad.: Nelson Santander

Canción de febrero

sobre el pecho del cielo, palpitando
Jaime Gil de Biedma

Leve y triste la tarde se retira
contigo hacia el crepúsculo y las horas
empiezan a doler en los distantes
repliegues de la sábana. De pronto
la noche ha regresado y es difícil
no pensar en tu boca momentánea
o en las altas comarcas de tu cuerpo
en lienzos de algodón en alabanza.
Ahora que no estás, vuelvo a mirar
el rayo que dividen tus pestañas
y el estremecimiento de tu espalda
moldeándome los brazos, la sonrisa
de tu sexo en los vértigos del labio,
el instante fluvial de tu alegría.
A lo lejos respira el mar, asciende
la blanda superficie su clausura
bajo un raso de líquidos cristales.
La noche sin tu piel crece más honda
por las calles donde asperjas la lluvia.
En silencio te recuerdo, muchacha,
con las últimas brasas que se apagan
contra el pecho del cielo, palpitando.