Nuno Júdice – O Eterno Retorno

Agora, ao ouvir uma peça de música
Barroca, como se isso servisse para alterar
A cor do céu ou a cor dos sentimentos,
Apercebo-me de que a música é, só,
O que ficou de ti. O resto – amor,
Corpo, palavras, desejo, um riso – ficou
Não sei onde, nem exatamente sei
quando: sei só que um dia ao acordar,
a noite tudo levou com a sua exata
ciência.

Não me lembro, porém, de que gostasses
de música barroca mais do que de outra;
ou de que esse tivesse sido entre nós,
um tema de conversa. Teatro, isso é que
sim: e talvez ambos, e talvez ambos cada um por seu lado
representasse uma comédia provada que,
sem o sabermos, iria acabar no drama
comum. Decepção. Tédio. Nada de transcendente…
Palavra sobre outras
palavras no fim de tudo.

Agora que esta música te trouxe de volta,
Porém, algo deixou aqui de estar certo. A tua
Ausência nesta presença incômoda? Os teus olhos
Que me fixam sem que eu os encontre? Ou
Amor, que me parecia esquecido e vago
Como qualquer alusão superficial? Porém,
O disco chega ao fim. E quando em vez
da tua voz, um silêncio me entra pela alma,
tenho saudades dessa música que não
voltarei a ouvir.

Amalia Bautista – Nu de Mulher

Para ti nunca passei de um bloco
de mármore. Esculpiste nele o meu corpo,
um corpo de mulher branco e formoso,
em que não viste nada a não ser pedra
e o orgulho, isso sim, do teu trabalho.
Nunca imaginaste que eu te amava
e que tremia quando, docemente,
me modelavas os seios e os ombros,
ou alisavas as coxas e o ventre.
Hoje, estou num jardim, onde suporto
os rigores do frio pelo Inverno,
e no Verão aqueço de tal modo
que nem sequer os pardalitos vêm
pousar nas minhas mãos pois estas queimam.
Mas, de tudo isto, o que mais me dói
é baixar a cabeça e ver a placa:
”Nu de mulher”, como há tantas outras.
Nem te lembraste de me dar um nome.

Trad.: Inês Dias

Luz del medio día

Amalia Bautista – Desnudo de Mujer

Para ti nunca fui más que un pedazo
de mármol. Esculpiste en él mi cuerpo,
un cuerpo de mujer blanco y hermoso,
en el que nunca viste más que piedra
y el orgullo, eso sí, de tu trabajo.
Jamás imaginaste que te amaba
y que me estremecía cuando, dulce,
moldeabas mis senos y mis hombros,
o alisabas mis muslos y mi vientre.
Hoy estoy en un parque, donde sufro
los rigores del frío en el invierno,
y en verano me abraso de tal modo
que ni siquiera los gorriones vienen
a posarse en mis manos porque queman.
Pero, de todo, lo que más me duele
es bajar la cabeza y ver la placa:
«Desnudo de mujer», como otras muchas.
Ni de ponerme un nombre te acordaste.

América, Aztecas – O rio passa, passa

O rio passa, passa
e nunca cessa.
O vento passa, passa
e nunca cessa.
A vida passa:
nunca regressa.

Versão: Herberto Helder

Ian Hamilton – Memorial

Quatro lápides desgastadas inclinam-se contra a parede
do seu hospício Vitoriano.
Além dos limites, você se ajoelha na grama alta
Decifrando nomes obliterados:
Velhos lunáticos que aqui morreram.

Trad.: Nelson Santander

Ian Hamilton – Memorial

Four weathered gravestones tilt against the wall
Of your Victorian asylum.
Out of bounds, you kneel in the long grass
Deciphering obliterated names:
Old lunatics who died here.

Joan Margarit – Tchaicovsky

Não te suicides nunca. Olha a escuridão:
nunca poderás saber quem te estende a mão.
Lembras-te do inverno de luz nos cristais
e a cumplicidade daquela música?
Ouço a Patética e me vejo
desejando que a morte de Joana
nos devolvesse a ordem e a felicidade
que acreditamos perder quando ela nasceu.
Amor meu, Joana, a ternura
que desejava matar como a aquelas crianças
que nas tragédias são uma ameaça
para o futuro dos assassinos.
Como as deteremos, nossas mãos?
Escuto a Patética derrotado,
como tu, pelo tempo e pelo amor.
Tenho seus olhos – quem os inventou, olhares? -,
os olhos que não os tinham estátua nenhuma
de Fídias. Estes olhos,
que já me perdoaram, de Joana.

Trad.: Nelson Santander

Joan Margarit – Tchaicovsky

No te suicides nunca. Mira la oscuridad:
jamás podrás saber quien te tiende la mano.
¿Recuerdas el invierno de luz en los cristales
y la complicidad de aquella música?
Escucho la Patética y me veo
deseando que la muerte de Joana
nos devolviera el orden y la felicidad
que creímos perder cuando nació.
Amor mío, Joana, la ternura
que deseava matar como a esos niños
que en las tragedias son una ameaza
para el futuro de los asesinos.
¿Cómo las detuvimos, nuestras manos?
Escucho la Patética vencido,
como tú, por el tiempo y el amor.
Tengo sus ojos – ¿quién os inventó, miradas? -,
los ojos que no tuvo estatua alguna
de Fidias. Estos ojos,
que ya me han perdonado, de Joana.

Manuel António Pina – Uma noite com Vladimir

Eu sou mais mortal do que o meu corpo,
e as minhas palavras
mais mortais do que eu.

E o teu silêncio, nenhum leitor,
que as minhas palavras avidamente ouvem,
mais mortal do que as minhas palavras.

Ouvir-me-emos
não é a morte o que as palavras procuram?
sob tanta terra?

José Carlos Soares – Camel Blue

No pequeno cemitério
comovente

ninguém, a não ser
o latido de algum
cão, o canto

de um galo
vermelho, a tosse
de um pequeno deus

desempregado. Também
pude reparar
como saía

de uma velha campa
abandonada
um exército de formigas

sob um intenso
céu azul
que nada respondia.

 

Rui Costa – A Minha Bisavó

A minha bisavó
é um quadro na parede.
Roída pela traça, ela
sucumbe à dentição do tempo
nos seus olhos escuros de
discreta bruxa.
Um dia a minha bisavó
nem quadro há-de ser.
Continuará, apesar disso, a beber
a água do copo onde lavou
as cerejas (fingindo-se distraída)
e a arrazoar antes da visita
extemporânea aos vizinhos:
“se gostarem da visita, ficamos
todos contentes, se não gostarem
é muito bem feita”.

A minha bisavó hoje não responde
Mas há um par de meias novas na
minha memória, um prato de
cerejas.

Rui Pires Cabral – Welcome Break

Estações de serviço
como ilhas de vidro
no mar alto dos campos.
O acaso governa
as estradas e os viajantes
que se cruzam despidos
da teia do seu passado.
Atravesso há horas
um país chuvoso:
anoiteceu
e não se vê ninguém
nas aldeias. Contra
o seu escuro mistério,
estas casas são reais?
Nelas nasceu gente
que depois quis partir
para dizer, como eu,
não sou daqui, sou
da hora que passa?

Eugénio de Andrade – Adeus

Já gastamos as palavras pela rua, meu amor
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastamos tudo menos o silêncio.
Gastamos os olhos com o sal das lágrimas,
gastamos as mãos à força de as apertarmos,
gastamos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
À vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastamos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.