Lêdo Ivo – Achamento e duração dos mortos

És o cemitério.
Os mortos não jazem
debaixo da terra.

Não estão ocultos
num lençol de relva
mas sob tua pele.

Tuas veias são
ruas onde os mortos
passeiam fagueiros,

e em férias percorrem,
turistas do eterno,
os museus do éter.

E nas terras velhas
de tua memória
almas veraneiam.

Meu filho, viver
é comerciar
no balcão dos mortos.

É achar no chão
o botão caído
de um casaco antigo.

Os defuntos vivem
fora dos seus ossos,
ocultos nas lágrimas

dos vivos que choram
ou mesmo no orvalho
do ramo de flor.

Mortos continuam
vivos, quando amados.
Viver é guardá-los

do verme que os come,
da erva que os encobre,
do nada infinito.

Fechado o ataúde,
seguras as alças,
o morto se evade.

Em verdade um morto
nunca é enterrado.
Volta com os vivos

de seu próprio enterro,
deixando na cova
o pó de novembro.

Por isso acordamos
nas noites escuras
cercados de mortos.

O pai morto dá
conselhos miúdos
ao seu filho aflito.

E a mãe morta vem
embalar, na noite,
o filho barbado.

(O menino eterno
que qualquer mãe morta
carrega consigo.)

Nesse minifúndio
que é a tua memória
figuras peremptas

te falam no vento:
tua parentela
desfila, andarenga.

Sê fiel, meu filho,
à tua prosápia.
Pratica teus mortos

(como o marinheiro
respira a onda nua
na entrada da barra).

Enquanto viveres
cubra-te a caliça
de todos os mortos.

Ouve o que te digo:
está morto o vivo
que esquece os seus mortos

e os sepulta em si,
empareda-os, vivos,
numa íntima cova.

Uma vida eterna
sucede, na terra,
de pai para filho.

Mais do que no sangue,
na vaga semblança
ou no sobrenome,

o pai continua
compincha da vida
no filho varão.

No filho legal
que torna domingo
o dia longínquo

e dá vida à morte.
Sendo filho, é o pai
quando era menino.

Carlos Drummond de Andrade – Nudez

Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.

Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estanho,
estanho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.

Nem era dor aquilo que doía;
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)
Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei, e toda sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.

Amador de serpentes, minha vida
passarei, sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende,
ou se contrai e atrai, além da pobre
área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
tais meus pecados, quanto mais fugi
do que enfim capturei, não mais visando
aos alvos imortais.

Ó descobrimento retardado
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve.

David Mourão-Ferreira – E por vezes

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

Eugénio de Andrade – Último Poema

É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.

Ana Martins Marques – [Você se dá conta]

Você se dá conta
de repente
de que muitos dos poemas que ama
foram na verdade escritos
por seus tradutores:
senhores míopes
enfiados em escritórios improvisados
em quartinhos dos fundos
enquanto os netos jogam bola na sala
jovens mães de família
implorando por umas horas de silêncio
traduzindo versos longos
enquanto ouvem ao fundo bater
como um mar
a máquina de lavar
professoras aposentadas
que se metem a verter ao português os versos
de um velho poeta chileno
funcionários públicos que passam suas horas livres
trocando palavras umas pelas outras
como numa casa de câmbio
doutorandos mal remunerados
autores de outros poemas
que você não ama
debruçados sobre palavras
que você nunca vai ler
e lançando sobre o papel
novas palavras
que se tornarão depois
suas palavras preferidas.

*

Você entrava nesses poemas
como num mar estrangeiro
como daquela vez que entrou no mar
de um outro continente
um mar feminino
sob um sol feminino
e teve a impressão de ter abandonado
partes de si mesma
da sua vida da sua língua do seu nome
junto com as roupas amontoadas
na areia.

*

São muitas
você sabe
as palavras
e esperam
como toras de madeira empilhadas
capim crescido
mercadorias que aguardam
transporte
pequenos barcos a remo sem remo
máquinas que não se sabe
para que servem
cartas extraviadas
no voo
as manchas de café nas páginas
de um livro
todas as coisas encontradas no estômago
da morsa que morreu em 1961 no zoológico de Berlim
esperam
que você as escute
e as deixe dizer
o que dizem
no entanto você não pode
– um rastilho de pólvora
e você não tem isqueiro –
precisa de outro que as acenda
só pode se aquecer numa fogueira
emprestada
– é mais ou menos isso
mas com outras palavras.

Nelson Santander – [secos são os homens sem sonhos]

secos
são os homens sem sonhos
desertos rios de margens estreitas
trilham apenas os caminhos que a terra dita
nunca refletem de volta
o brilho gratuito do mundo

o acaso
delimita suas fronteiras

os homens sem sonhos

eles são
     as velas apagadas
     os caminhos silenciosos brancos de neve
     a matéria da corda dos enforcados
     o silêncio nascido da ignorância
     a crosta e a superfície
     o fácil e o óbvio

apenas olham
e a maçã continua maçã
aliás seu olhar as coisas petrifica

modernas medusas
mitológicos zeros
esquecidos até mesmo pelos espelhos

mas o mundo ainda é o mesmo que sempre foi

ainda existem aqueles que olham as estrelas
e pensam – eu existo
outros há que escrevem poemas

          (semideuses para quem a alma humana
                    não representa segredo)

mas as maravilhas
as verdadeiras maravilhas

     (o dentro de uma gota de névoa
     as possibilidades infindas do oceano
     a morte no exato de sua hora
     a fagulha química que engendra a paixão
     e o suor brotando feito sangue – puro sangue –
                                      no dorso de um cavalo no galope
     e a menor partícula, essência das essências
     e o nada entre os mundos
     entre as estrelas
     os sonhos de Ariadne)

essas não são visíveis a olhos nus

     cegos são os homens sem sonhos
     mortos estão e julgam que dormem

o sono
     é o dos
          justos

 

                                                          14/05/1994

Eugénio de Andrade – Elegia

Às vezes era bom que tu viesses.
Falavas de tudo com modos naturais:
em ti havia
a harmonia
dos frutos e dos animais.

Maio trouxe cravos como outrora,
cravos morenos, como tu dizias,
mas cada hora
passa e não se demora
na tristeza das nossas alegrias.

Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é maravilha,
um corpo já não é a plenitude,
tu quebraste ritmo, o ardor,
ao partires um a um
os ramos todos da tua juventude.

Não estamos sós:
setembro traz ainda
um fruto em cada mão.
Mas os homens, as aves e os ventos
já não bebem em ti a direção.

Ferreira Gullar – Poema sujo

                                       turvo turvo
                                       a turva
                                       mão do sopro
                                       contra o muro
                                       escuro
                                       menos menos
                                       menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo
                                       escuro
                                       mais que escuro:
                                       claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma
                                       e tudo
                                       (ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
                                       azul
                                       era o gato
                                       azul
                                       era o galo
                                       azul
                                       o cavalo
                                       azul
                                       teu cu

tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como uma boca do
corpo (não como a tua boca de palavras) como uma entrada para
                                                       eu não sabia tu
                                                       não sabias
                                                       fazer girar a vida
                                                       com seu montão de estrelas e oceano
                                                       entrando-nos em ti


                                       bela bela
                                       mais que bela
                                       mas como era o nome dela?
                                       Não era Helena nem Vera
                                       nem Nara nem Gabriela
                                       nem Tereza nem Maria
                                       Seu nome seu nome era…
                                       Perdeu-se na carne fria
perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
                                       constelações de alfabeto
                                       noites escritas a giz
                                       pastilhas de aniversário
                                       domingos de futebol
                                       enterros corsos comícios
                                       roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está
                                       perdido comigo
                                       teu nome
                                       em alguma gaveta

Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís do Maranhão à
mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos e pais dentro de um
enigma?
                                                                mas que importa um nome

debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre cadeiras e mesa
entre uma cristaleira e um armário diante de garfos e facas e pratos de
louças que se quebraram já
                                       um prato de louça ordinária não dura tanto
                                       e as facas se perdem e os garfos
                                       se perdem pela vida caem
                                       pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos
e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de
                                                                                 erva-cidreira
e as grossas orelhas de hortelã
                                       quanta coisa se perde
                                       nesta vida
                                       Como se perdeu o que eles falavam ali
                                       mastigando
                     misturando feijão com
                     farinha e nacos de
                                                   carne assada
e diziam coisas tão reais como a toalha bordada
ou a tosse da tia no quarto
e o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa janela

                                       tão reais que
                                       se apagaram para sempre
                                                                              Ou não?

Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem
que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás
e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama,
                                       ou dentro de um ônibus
                                       ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico
acima do arco-íris
                                       perfeitamente fora
                                       do rigor cronológico
                                       sonhando

Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas
balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas
cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do
jantar,
                                       voais comigo
                                       sobre continentes e mares
E também rastejais comigo
                                       pelos túneis das noites clandestinas
                                       sob o céu constelado do país
                                       entre fulgor e lepra
debaixo de lençóis de lama e de terror
                                       vos esgueirais comigo, mesas velhas,
armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,
                                       dobrais comigo as esquinas do susto
                                       e esperais esperais
que o dia venha
                                       E depois de tanto
                                       que importa um nome?
Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do mundo:
                                       te chamo aurora
                                       te chamo água
te descubro nas pedras coloridas nas artistas de cinema
                                       nas aparições do sonho
                                       — E esta mulher a tossir dentro de casa!
Como se não bastasse o pouco dinheiro, a lâmpada fraca,
o perfume ordinário, o amor escasso, as goteiras no inverno.
E as formigas brotando aos milhões negras como golfadas de
dentro da parede (como se aquilo fosse a essência da casa)
E todos buscavam
                                        num sorriso num gesto
                                        nas conversas da esquina
                                        no coito em pé na calçada escura do Quartel
                                        no adultério
                                        no roubo
                                        a decifração do enigma
                                        — Que faço entre coisas?
                                        — De que me defendo?

Num cofo no quintal na terra preta cresciam plantas e rosas
                                        (como pode o perfume
                                        nascer assim?)
Da lama à beira das calçadas, da água dos esgotos cresciam
pés de tomate
Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins
                                        mais verdes que a esperança
                                        (ou o fogo
                                        de teus olhos)
Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade
                                                                           sob as sombras da guerra:
                    a gestapo a wehrmacht a raf a feb a blitzkrieg catalinas torpedeamentos a quinta-coluna os fascistas os nazistas os comunistas o repórter esso a discussão na quitanda o querosene o sabão de andiroba o mercado negro o racionamento o blackout as montanhas de metais velhos o italiano assassinado na Praça João Lisboa o cheiro de pólvora os canhões alemães troando nas noites de tempestade por cima da nossa casa. Stalingrado resiste.
Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que passava rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada de Ferro, por seu Neco que fazia charutos ordinários, pelo sargento Gonzaga que tomava tiquira com mel de abelha e trepava com a janela aberta,
                                        pelo meu carneiro manso
                                        por minha cidade azul
                                        pelo Brasil salve salve,
                    Stalingrado resiste.
                    A cada nova manhã
                    nas janelas nas esquinas na manchete dos jornais


Mas a poesia não existia ainda.
                              Plantas. Bichos. Cheiros. Roupas.
                              Olhos. Braços. Seios. Bocas.
                              Vidraça verde, jasmim.
                              Bicicleta no domingo.
                              Papagaios de papel.
                              Retreta na praça.
                              Luto.
                              Homem morto no mercado
                              sangue humano nos legumes.
                              Mundo sem voz, coisa opaca.

Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto clangor, lira singela?
Nem tuba nem lira grega. Soube depois: fala humana, voz de
gente, barulho escuro do corpo, intercortado de relâmpagos
                                     Do corpo. Mas que é o corpo?
                                     Meu corpo feito de carne e de osso.
                                     Esse osso que não vejo, maxilares, costelas,
                                     flexível armação que me sustenta no espaço
                                              que não me deixa desabar como um saco
                                              vazio
                                     que guarda as vísceras todas
                                                                                 funcionando
                                     como retortas e tubos
                                     fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
                                              e as palavras
                                              e as mentiras
e os carinhos mais doces mais sacanas
                                     mais sentidos
para explodir como uma galáxia
                                     de leite
                                     no centro de tuas coxas no fundo
                                     de tua noite ávida
cheiros de umbigo e de vagina
                                     graves cheiros indecifráveis
                                     como símbolos
                                     do corpo
do teu corpo do meu corpo
corpo
que pode um sabre rasgar
                                     um caco de vidro
                                     uma navalha
meu corpo cheio de sangue
                                     que o irriga como a um continente
                                     ou um jardim
                                     circulando por meus braços
                                     por meus dedos
                                     enquanto discuto caminho
                                     lembro relembro
meu sangue feito de gases que aspiro
                                     dos céus da cidade estrangeira
                                     com a ajuda dos plátanos
e que pode — por um descuido — esvair-se por meu
pulso
        aberto
                                     Meu corpo
que deitado na cama vejo
como um objeto no espaço
        que mede 1,70 m
        e que sou eu: essa coisa
        deitada
        barriga pernas e pés
        com cinco dedos cada um (por que
        não seis?)
        joelhos e tornozelos
        para mover-se
        sentar-se
        levantar-se

meu corpo de 1,70 m que é meu tamanho no mundo
        meu corpo feito de água
        e cinza
que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio
        e me sentir misturado
a toda essa massa de hidrogênio e hélio
        que se desintegra e reintegra
        sem se saber pra quê

        Corpo meu corpo corpo
que tem um nariz assim uma boca
        dois olhos
        e um certo jeito de sorrir
        de falar
que minha mãe identifica como sendo de seu filho
        que meu filho identifica
        como sendo de seu pai
corpo que se para de funcionar provoca
        um grave acontecimento na família:
        sem ele não há José de Ribamar Ferreira
        não há Ferreira Gullar
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta
estarão esquecidas para sempre
corpo-facho           corpo-fátuo           corpo-fato

atravessado de cheiros de galinheiros e rato
na quitanda ninho
        de rato
        cocô de gato
sal azinhavre sapato
        brilhantina anel barato
língua no cu na boceta cavalo de crista chato
        nos pentelhos
corpo meu corpo-falo
        insondável incompreendido
meu cão doméstico meu dono
        cheio de flor e de sono
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio
        de tudo como um monturo
de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias
        sambas e frevos azuis
        de Fra Angelico verdes de
        Cézanne
        matéria-sonho de Volpi
Mas sobretudo meu
                      corpo
                      nordestino
         mais que isso
                      maranhense
         mais que isso
                      sanluisense
         mais que isso
                      ferreirense
                      newtoniense
                      alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres
                      ao lado de uma padaria
                      sob o signo de Virgo
                      sob as balas do 24o BC
                      Na revolução de 30
e que desde então segue pulsando como um relógio
                      num tic tac que não se ouve
(senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração)
                      tic tac tic tac
enquanto vou entre automóveis e ônibus
                      entre vitrinas de roupas
                      nas livrarias
                      nos bares
                      tic tac tic tac
pulsando há 45 anos
                      esse coração oculto
pulsando no meio da noite, da neve, da chuva
debaixo da capa, do paletó, da camisa
debaixo da pele, da carne,
combatente clandestino aliado da classe operária
                      meu coração de menino

                                       claro claro
                                       mais que claro
                                                            raro
o relâmpago clareia os continentes passados:
                                                                  noite e jasmim
                                                                  junto à casa
vozes perdidas na lama
domingos vazios

                                        água sonhando na tina
pátria de mato e ferrugem

                                        busca de cobre e alumínio
                                        pelos terrenos baldios
                                        economia de guerra?
                                        pra mim
                                        torresmo e cinema

Sozinho naquele
desaguadouro de rio
                                        sob o sol duro do trópico
sozinho na tarde no planeta na história
                                        arrastando camarão
                                        com um cofo de palha
                                                                        que
que eu buscava ali?
                                        Houvera a guerra de Troia?
                                        Homero Dante Boccaccio?
                                        Já nascera a geometria?
Só tijuco e água salgada
só bagres e baiacus
areia sol vento e chuva
e as velas coloridas
dos barcos pela baía:
                                        que perguntava eu ali
com aquele cofo nas mãos
sob o sol do Maranhão?
Não era o sol de Laplace
nem era a ilha geográfica:
                                                    era o sol
                                                    o sol apenas
                                                    com cheiro de lama podre
                                                    e cheiro de peixe e gente
                                                    corvina serra cação
          papista comendo merda
          na saída do bueiro
pátria de sal e ferrugem
          que é que eu buscava ali
caminhando pelos trilhos
                                                    à toa
          saltando dormentes
          vadeando pelo córrego
raso de limo sapos garrafas
          cheias de lama canos
onde moravam peixes-sabão
                                                          andando
sem rumo entre vagões rodas
          de trem eixos leprosos
          caixas de rolamento
abandonadas cheias
          de terra ferrugem graxa
          capim coberto de óleo

Que me ensinavam essas aulas
          de solidão
          entre coisas da natureza
e do homem?
                     O alto galpão de zinco
clarões de solda
                     operários na penumbra
paredes negras de fumo
Não era uma casa: uma casa
tem cadeiras mesas poltronas
                                          Um templo
seria? mas
sem nichos sem altar sem santos?
Que era aquilo-uma-usina?
                                       onde a tarde se fazia
com faíscas de esmeril calor de forja
onde a tarde era outra
tarde
que nada tinha daquela
que eu via agora distante
          para além da via férrea
          além do cais
          além das águas do Anil, lá
cega de sol por detrás das ruínas
          do Forte da Ponta d’Areia
na entrada da baía

Quantas tardes numa tarde!
          e era outra, fresca,
debaixo das árvores boas a tarde
na praia do Jenipapeiro
          Ou do outro lado ainda
a tarde maior da cidade
          amontoada de sobrados e mirantes
          ladeiras quintais quitandas
          hortas jiraus galinheiros
ou na cozinha (distante) onde Bizuza
          prepara o jantar
                                e não canta
          ah quantas só numa
tarde geral que cobre de nuvens a cidade
          tecendo no alto e conosco
          a história branca
          da vida qualquer

ah ventos soprando verdes nas palmeiras dos Remédios
gramas crescendo obscuras sob meus pés
          entre os trilhos
e dentro da tarde a tardelocomotiva
que vem como um paquiderme
          de aço
          tarda pesada
maxilares cerrados cabeça zinindo
          uma catedral que se move
          envolta em vapor
          bufando pânico
                                prestes
          a explodir

tchi tchi
          trã trã trã
tarã TARÃ TARÃ TARÃ
          tchi tchi tchi tchi tchi
TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ

(Para ser cantada com a música da
Bachiana no 2, Tocata, de Villa-Lobos)

lá vai o trem com o menino
lá vai a vida a rodar
lá vai ciranda e destino
cidade e noite a girar
lá vai o trem sem destino
pro dia novo encontrar
correndo vai pela terra
                                 vai pela serra
                                 vai pelo mar
                  cantando pela serra do luar
                  correndo entre as estrelas a voar
                                                    no ar
                  piuí! piuí piuí
                                                    no ar
                  piuí piuí piuí

                  adeus meu grupo escolar
                  adeus meu anzol de pescar
                  adeus menina que eu quis amar
                  que o trem me leva e nunca mais vai parar


VAARÃ VAARÃ VAARÃ VAARÃ
                  tuc tchuc tuc tchuc tuc tchuc

                  brisa branca brisa fria
                  cinzentura quase dia

IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ
Tuc tchuc tuc tchuc tuc tchuc
lará lará larará
lará lará larará
lará lará larará lará lará larará
lará lará lará
lará lará lará

IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ
iuí iuí iuí iuí iuí iuí iuí

saímos de casa às quatro
com as luzes da rua acesas

meu pai levava a maleta
eu levava uma sacola

rumamos por Afogados
outras ladeiras e ruas

o que pra ele era rotina
para mim era aventura

quando chegamos à gare
o trem realmente estava

ali parado esperando
muito comprido e chiava

entramos no carro os dois
eu entre alegre e assustado

meu pai (que já não existe)
me fez sentar ao seu lado

talvez mais feliz que eu
por me levar na viagem

meu pai (que já não existe)
sorria, os olhos brilhando

VAARÃ VAARÃ VAARÃ VAARÃ

Tchuc tchuc tchuc
tchuc tchuc tchuc

TRARÃ TRARÃ TRARÃ
TRARÃ TRARÃ TRARÃ

Ultrapassamos a noite
quando cruzamos Perizes
era exatamente ali
que principiava o dia

VAARÃ VAARÃ VAARÃ
VAARÃ VAARÃ VAARÃ

E ver que a vida era muito
espalhada pelos campos
que aqueles bois e marrecos
existiam ali sem mim
e aquelas árvores todas
águas capins nuvens — como
era pequena a cidade!

E como era grande o mundo:
há horas que o trem corria
sem nunca chegar ao fim
de tanto céu tanta terra
de tantos campos e serras
sem contar o Piauí

Já passamos por Rosário
por Vale-Quem-Tem, Quelru.
Passamos por Pirapemas
e por Itapicuru:
mundo de bois, siriemas,
jaçanã, pato e nhambu

café com pão
                  bolacha não
                                 café com pão
                                                   bolacha não
vale quem tem
                vale quem tem
                                     vale quem tem
vale quem tem
                       nada vale
quem não tem
                       nada não vale
nada vale
              quem nada
tem
      neste vale
                                nada
                                vale
                                nada
                                vale
                                quem
                                não
                                tem
                                nada
                                no
                                v
                                a
                                l
                                e

TCHIBUM!!!

                                    Muitos
muitos dias há num dia só
                                       porque as coisas mesmas
os compõem
com sua carne (ou ferro
                                   que nome tenha essa
matéria-tempo
                                   suja ou
                                   não)
                                           os compõem
nos silêncios aparentes ou grossos
como colchas de flanela
ou água vertiginosamente imóvel
                                                como
na quinta dos Medeiros, no poço
da quinta
                     coberto pela sombra quase pânica
                               das árvores
                     de galhos que subiam mudos
                               como enigmas
                               tudo parado
feito uma noite verde ou vegetal
                               e de água
muito embora em cima das árvores
                               por cima
                               lá no alto
resvalando seu costado luminoso nas folhas
                               passasse o dia (o século
                               XX)
                    e era dia
como era dia aquele
                            dia
                            na sala de nossa casa
a mesa com a toalha as cadeiras o
                               assoalho muito usado
e o riso claro de Lucinha se embalando na rede
                               com a morte já misturada
                               na garganta
sem que ninguém soubesse
                                          — e não importa —
que eu debruçado no parapeito do alpendre
                               via a terra preta do quintal
                               e a galinha ciscando e bicando
                                    uma barata entre plantas
                               e neste caso um dia-dois
                                    o de dentro e o de fora
                                    da sala
        um às minhas costas o outro
        diante dos olhos
        vazando um no outro
        através de meu corpo
dias que se vazam agora ambos em pleno coração
de Buenos Aires
        às quatro horas desta tarde
        de 22 de maio de 1975
        trinta anos depois

                                    muitos
        muitos são os dias num só dia
                                    fácil de entender
        mas difícil de penetrar
        no cerne de cada um desses muitos dias
porque são mais do que parecem
                                pois
        dias outros há
        ou havia
        naquele dia do poço
da quinta
        também dentro e fora
porque não é possível estabelecer um limite
        a cada um desses
        dias de fronteiras impalpáveis
feitos de — por exemplo — frutas e folhas
        frutas que em si mesmas são
        um dia
        de açúcar se fazendo na polpa
ou já se abrindo aos outros dias
        que estão em volta
        como um horizonte de trabalhos infinitos:

        porque a poucos passos
do poço
        acima da ladeira de terra
        na rua sem árvores
        donde vim há pouco
        passa gente e carroça
        ou alguém grita na janela
enquanto um pássaro cruza (possivel-
mente)
        por sobre nós
um urubu talvez
        deriva na direção da Camboa
leve sobre o vasto capinzal e para além da estrada de ferro
por cima das palhoças na lama
e lá detrás a fábrica
assentada numa plataforma fumegante de cinza e detritos
                        de algodão

um urubu
que é ele mesmo um dia preto farejando carniça
                        e na carniça
junto do Matadouro
                            que fede
                        o dia (um dia) apodrece
                                                            envolvendo o dia
                        dos moradores das palafitas
                        e o dia do urubu
                        e o da lata de azeite Sol Levante
                        que sobre três pedras
                        no chão de terra batida da palhoça
onde mora Esmagado
                                ferve
                                com arroz-de-toucinho
                        para o almoço
e todos esses dias enlaçados como anéis de fumaça
                        girando no cata-vento
                        esgarçando-se nas nuvens
e o alarido das pipiras na sapotizeira
                        às seis da tarde
                        ou
       no cubo de sombra e vertigem
                        da água
                        do dito poço
da dita quinta
                        que os anos não trazem mais

                        E trazem cada vez mais
                        por ser alarme agora em minha carne
                        o silêncio daquela água
                        por ser clarão
                        a sua sombra
                        debaixo das minhas unhas
como então sob as folhas com açúcar e luz
                        pingar de água
                                              um pio
                        um sopro de brisa
                        sem pressa
                                         e por todas as partes
                        se fabricava a noite
                        que nos envenenaria de jasmim

E a noite mais tarde pronta passaria aos trambolhões
                        com sua carruagem negra
                        batendo ferros
                                 feito um trem
                        pela Costela do Diabo
                        com seu cortejo de morcegos
Era impossível distinguir
                                    com a pouca luz que havia
                        como eram seus cavalos
                        seu condutor seu chicote
                        a cavalgar no meu sono
                        sem o testemunho dos irmãos

                        Numa noite há muitas noites
mas de modo diferente
                        de como há dias
                        no dia
                                 (especialmente nos bairros
                        onde a luz é pouca)
                                 porque de noite
                        todos os fatos são pardos
                                                             e a natureza fecha
                                 os olhos coloridos
                                                    guarda seus bichos
entre as pernas, põe as aves dentro dos frutos
                        e imobiliza todas as águas
                                        embora fique urinando
                        escondido
         em vários pontos da quinta
tão suave que quase ninguém ouve sob as folhas de tajá

                        E assim as muitas noites
         parecem uma só
                        ou no máximo duas:
         sendo a outra
                        a noite de dentro de casa
                        iluminada a luz elétrica
                        A noite adormece as galinhas
                        e põe a funcionar os cinemas
                        aciona
                os programas de rádio, provoca
discussões à mesa do jantar, excessos
                entre jovens que se beijam e se esfregam
                        junto à cancela
                        no escuro
e quando o tesão é muito decidem casar
                             (menos, por exemplo,
                             Maria do Carmo
                             que entregava os peitos enormes
                             pros soldados chuparem
                             na Avenida Silva Maia
                             sob os oitizeiros
                             e deixava que eles esporrassem
                             entre suas coxas quentes (sem
                             meter)
                             mas voltava para casa
                             com ódio do pai
                             e malsatisfeita da vida)

                             De noite, porque
                             a luz é pouca,
                             a gente tem a impressão
                             de que o tempo não passa
                                                                   ou pelo menos não escorre
como escorre de dia:
                             como se se desse uma interrupção
              para o dr. Bacelar fazer uma palestra
              no Grêmio Lítero-Recreativo Português
                             uma interrupção
              para que os operários da fábrica Camboa
                             descansem um pouco
                             e se reproduzam nas redes
              ou nas esteiras
                             se amando sem muito alarde
              para não acordar os filhos que dormem no mesmo quarto

                             Como se o tempo
durante a noite
                             ficasse parado junto
                             com a escuridão e o cisco
                             debaixo dos móveis e
                             nos cantos da casa
                                                        (mesmo dentro
                             do guarda-roupa,
                             o tempo,
                             pendurado nos cabides)
                             E essa sensação
é ainda mais viva
                             quando a gente acorda tarde
                             e depara com tudo claro
                             e já funcionando: pássaros
árvores vendedores de legumes

                             Mas também
quando a gente acorda cedo e fica
                             deitado assuntando
                             o processo do amanhecer:
                             os primeiros passos na rua
                                                                     os primeiros
                             ruídos na cozinha
                                                        até que de galo em galo
                                           um galo
                             rente a nós
                             explode
                             (no quintal)
                             e a torneira do tanque de lavar roupas
                             desanda a jorrar manhã

                             A noite nos faz crer
(dada a pouca luz)
                                  que o tempo é um troço
                                  auditivo.
                                  Concluídos os afazeres noturnos
                         (que encheram a casa de rumores,
                           inclusive as últimas conversas no quarto)
                           quando enfim a família inteira dorme —
                           o tempo se torna um fenômeno
                           meramente químico
                           que não perturba
                                                     (antes
                           propicia)
                                        o sono.
                         Não obstante,
         alguém que venha da rua
— tendo caminhado sob a fantástica imobilidade
                         da Via Láctea —
                                              pode ter a impressão,
                         diante daqueles corpos adormecidos,
                                              de que o universo morreu
                                              (quando de fato
                                              em todas as torneiras da cidade
                                              a manhã está prestes a jorrar)

                             Menos, claro,
nas palafitas da Baixinha, à margem
da estrada de ferro,
                             onde não há água encanada:
                             ali
                             o clarão contido sob a noite
                             não é
                             como na cidade
                             o punho fechado da água dentro dos canos:
                             é o punho
                             da vida
                             fechada dentro da lama

                             Já por aí se vê
               que a noite não é a mesma
                             em todos os pontos da cidade;
                             a noite
                             não tem na Baixinha
                             a mesma imobilidade
               porque a luz da lamparina
                             não hipnotiza as coisas
                             como a eletricidade
               hipnotiza:
               embora o tempo ali também não escorra,
não flua: bruxuleia
                     se debate
               numa gaiola de sombras.
               Mas o que mais distancia
essa noite da Baixinha
               das outras
               é o cheiro: melhor dizendo
               o mau cheiro
que ela tem como certos animais
               na sua carne de lodo

e daí poder dizer-se
               que a noite na Baixinha
não passa, não
               transcorre:
                               apodrece

        Numa coisa que apodrece
— tomemos um exemplo velho:
                                             uma pera —
        o tempo
        não escorre nem grita,
                                          antes
                         se afunda em seu próprio abismo,
                                                                           se perde
                         em sua própria vertigem,
                                                              mas tão sem velocidade
                         que em lugar de virar luz vira
                         escuridão;
                                        o apodrecer de uma coisa
                                        de fato é a fabricação
                                        de uma noite:
                                                             seja essa coisa
                                        uma pera num prato seja
                                        um rio num bairro operário

                         Daí por que na Baixinha
há duas noites metidas uma na outra: a noite
sub-urbana (sem água
          encanada) que se dissipa com o sol
                                                             e a noite sub-humana
                                                             da lama
                                                             que fica
                                                             ao longo do dia
                                                             estendida
                                                             como graxa
                                                             por quilômetros de mangue
a noite alta
do sono (quando
os operários sonham)
e a noite baixa
do lodo embaixo
da casa

uma noite metida na outra
como a língua na boca
eu diria
como uma gaveta de armário
metida no armário (mas
embaixo: o membro na vagina)
ou como roupas pretas
sem uso dentro da gaveta
ou como uma coisa suja
(uma culpa)
dentro de uma pessoa
enfim como
uma gaveta de lama
dentro de um armário de lama,
                                             assim
talvez fosse a noite na Baixinha
princesa negra e coroada
apodrecendo nos mangues

Mas para bem definir essa noite
da Baixinha
                            não se deve separá-la
da gente que vive ali
                                 — porque a noite não é
apenas
a conspiração das coisas —
nem separá-la da fábrica
de fios e pano riscado
(de que os homens fazem calças)
onde aquela gente trabalha,
nem do mínimo salário
que aquela gente recebe,
nem separar a fábrica
de lama da fábrica
de fios
nem o fio
do bafio
envenenado na lama
que de feder tantos anos
já é parte daquela gente
                                      (como
o cheiro de um bicho pode ser parte
de outro bicho)
                        e a tal ponto
que nenhum deles consegue
lembrar flor alguma que não tenha
aquele azedo de lama
(e não obstante
se amam)

Resta ainda acrescentar
— pra se entender essa noite
proletária —
que um rio não apodrece do mesmo modo
que uma pera
não apenas porque um rio não apodrece num prato
        mas porque nenhuma coisa apodrece
        como outra
                          (nem por outra)
                                                   e mesmo
uma banana
não apodrece do mesmo modo
que muitas bananas
dentro de
uma tina
        — no quarto de um sobrado
        na Rua das Hortas, a mãe
        passando roupa a ferro —
fazendo vinagre
        — enquanto o bonde Gonçalves Dias
        descia a Rua Rio Branco
        rumo à Praça dos Remédios e outros
        bondes desciam a Rua da Paz
        rumo à Praça João Lisboa
        e ainda outros rumavam
        na direção da Fabril, Apeadouro,
        Jordoa
        (esse era o bonde do Anil
        que nos levava
        para o banho no rio Azul)
e as bananas
fermentando
trabalhando para o dono — como disse Marx —
ao longo das horas mas num ritmo
diferente (muito mais
        grosso) que o do relógio
fazendo vinagre
    — naquele quarto onde dormia
        toda a família e
        se vendiam quiabo e jerimum —
fermentando
    — enquanto Josias, o enfermeiro,
        posava de doutor na quitanda
        de meu pai
                         e eu jogava bilhar
             escondido
             no botequim do Constâncio
             na Fonte do Ribeirão —
                                                 mas
um rio
não faz vinagre
                    mesmo que um quitandeiro o ponha para apodrecer
numa tina
um rio
não apodrece como as bananas
nem como, por exemplo,
        uma perna de mulher
                                         — (da mulher
        que a gente não via
        mas fedia durante toda manhã
        na casa ao lado de nossa escola,
                                                       na época
                                                       da guerra)

um rio não apodrece do mesmo modo que uma perna
       — ainda que ambos fiquem
       com a pele um tanto azulada —
       nem do mesmo modo que um jardim
       (pelo menos em nossa cidade
        sob o demorado relâmpago do verão)


        E como nenhum rio apodrece
        do mesmo modo que outro rio
        assim o rio Anil
        apodrecia a seu modo
        naquela parte da ilha de São Luís.
        Mesmo porque
        para que outro rio
        pudesse apodrecer como ele
        era preciso que viesse
        por esse mesmo caminho
        passasse no Matadouro
        e misturasse seu cheiro de rio ao cheiro
        de carniça
        e tivesse permanentemente a sobrevoá-lo
        uma nuvem de urubus
        como acontece com o Anil antes
        de dobrar à esquerda
        para perder-se no mar
                                          (para de fato
        afogar-se, convulso,
        nas águas salgadas
        da baía
que se intrometem por ele, por suas veias,
por sua carne doce de rio
        que o empurra para trás
        o desarruma
o envenena de sal
e o obriga a apodrecer
                                    — já que não pode fluir —
        debaixo das palafitas
        onde moram os operários da Fábrica
de Fiação e Tecidos da Camboa)

        Assim apodrece o Anil
        ao leste de nossa cidade
que foi fundada pelos franceses em 1612
        e que já o encontraram apodrecendo
        embora com um cheiro
        que nada tinha
        do óleo dos navios que entram agora
quase diariamente no porto
        nem das fezes que a cidade
        vaza em seu corpo de peixes
        nem da miséria dos homens
        escravos de outros
        que ali vivem agora
        feito caranguejos.


        Apenas os índios vinham banhar-se
na praia do Jenipapeiro, apenas eles
        ouviam o vento nas árvores
        e caminhavam por onde
        hoje são avenidas e ruas,
sobrados cobertos de limo,
        cheios de redes e lembranças
        na obscuridade.
        Mas desses índios timbiras
nada resta, senão coisas contadas em livros
        e alguns poemas em que se tenta
evocar a sombra dos guerreiros
        com seu arco
        ocultos entre as folhas
        (o que não impede que algum menino
        tendo visto no palco da escola
        I-Juca Pirama
                              saia a buscar
        pelos matos de Maioba ou da Jordoa
        — o coração batendo forte —
        vestígios daqueles homens,
        mas não encontra mais
        que o rumor do vento nas árvores)

        Exceto se encontra
        pousado
        um pássaro azul e vermelho
        — a brisa entortando-lhe as penas feito
um leque feito
                      o cocar de um guerreiro
que nele se transformara
para continuar habitando aqueles matos.
        E mesmo que
não seja o pássaro o guerreiro
foi decerto visto por ele um dia
        e por isso
        estranhamente
        está presente ali
        vendo-o de novo
quem sabe agora mesmo atrás do menino atrás
        dos ramos
                         quando
        algo se mexe
        e uma lagartixa foge sobre as folhas secas.

        E tudo isso se passa
        sob a copa das árvores
                                            (longe
da estrada por onde trafegam bondes
e ônibus,
        e mais longe ainda
das ruas da Praia Grande
        atravancadas de caminhões
pracistas como João Coelho e estivadores
        que descarregam babaçu)
        Tudo isso se passa
como parte da história dos matos e dos pássaros
        E na história dos pássaros
        os guerreiros continuam vivos.

E eu nunca pensara antes que havia
uma história dos pássaros
embora conhecesse tantos
                                        desde
o canário-da-terra (na gaiola
de seu Neco), a rolinha fogo-pagô
(na cumeeira da casa)
                                  até o bigode-pardo
(que se pegava com alçapão no capinzal)
        o galo-de-campina
        parecia um oficial
        em uniforme de gala;
        o anum era um empregado
        da limpeza pública;
        o urubu, um crioulo
        de fraque; o bem-te-vi,
        um polícia de quepe
        e apito na boca
        sempre atarefado
Para me dar conta
        da história dos pássaros
        foi preciso ver
        o pássaro vermelho e azul
        mal pousado no galho
        grande demais para aqueles matos
                   como um fantasma
                   (a balançar no vento)
                   foi preciso vê-lo
                   dentro daquele silêncio
        feito de pequenos barulhos vegetais
E ele — fazendo sua história — voou
                   sem se saber por que
                   e foi pousar noutra árvore
                   já agora quase oculto
        ora parecendo flor ora folha colorida
                   e assim sumiu

                   Já a história dos urubus
        é praticamente a mesma história dos homens
                   que têm cães que morrem
                   atropelados
        em frente à porta da casa
que têm papagaios que aprendem a falar
        na cozinha
        e curiós
                    cantando
        na gaiola da barbearia
                                          (a filha do barbeiro
                                          fugiu com o filho
                                          do carteiro
                                          um mulato
                                          que trabalhava nos Correios.
                                          As vizinhas cochichavam:
                                          “se tivesse fugido
                                          com um branco,
                                          ao menos ia poder casar”)
Enquanto isso
o dr. Gonçalves Moreira mantinha na sua sala
um casal de canários-belgas numa gaiola de prata
(na Avenida Beira-Mar em frente à entrada da baía.)
E trouxe uma caboclinha
de suas terras em Barra do Corda
para arrumar as gavetas (lençóis
de linho branco cheirando a alfazema)
e cuidar dos canários:
ela limpava a gaiola
e renovava a água e o alpiste
todas as manhãs
na janela do alpendre
(na época da guerra).
Lá embaixo no quintal
a lavadeira batia roupa
no tanque
        e cantava junto com a água.
        O mamoeiro rente ao muro
        amadurecia um mamão para a sobremesa do doutor
                               (isso por volta de 1942, 43,
                               quando chegaram os americanos
                               para construir a base aérea do Tirirical:
                               compraram todas as frutas e legumes
                               do Mercado
                               pagaram um salário incrível pro Antônio José
                               e puseram o pé em cima da mesa
                               no Moto Bar)
                                                  E os canários, nem-seu-souza,
                                                  trinavam na gaiola de prata

                  Camélia caiu na vida
                  porque ainda não existia a pílula
                  Pagou caro aquele amor
                  feito com dificuldade
                  detrás do jirau de roupas
em pé junto à cerca
enquanto a família dormia
(o mesmo gosto de hortelã
das pastilhas de aniversário)
Seu pai, seu Cunha, o barbeiro,
quase morre de vergonha,
ele que fazia a barba
de todos os homens da rua
(e o curió na gaiola,
nem-seu-souza).
Por que vai um homem ter filhas,
meu Deus? E ele tinha três.
A mais velha, que era mais sonsa,
foi ao Josias tomar
uma injeção de Eucaliptina
e o enfermeiro aconselhou:
“Dói muito. É melhor num lugar
que tenha mais carne”.
E desde esse santo dia
era injeção toda tarde,
(e o curió,
nem-seu-souza)
A terceira ficou séria
e virou filha de Maria
(e o curió,
nem-seu-souza)
Já o canário-da-terra
parou de cantar quando
numa manhã de domingo
seu Neco matou a mulher
que — dizem — lhe punha chifres:
a gaiola rolou no chão.
(“Canivetada nas costas
pegou bem aqui, lá nela.
Não saiu um pingo de sangue,
foi hemorragia interna”)

            A morte se alastrou por toda a rua,
            misturou-se às árvores da quinta,
            penetrou na cozinha de nossa casa
            ganhou o cheiro da carne que assava na panela
            e ficou brilhando nos talheres
            dispostos sobre a toalha
            na mesa do almoço.

Salve a mulher de amarelo
Põe a de verde no chinelo
Mas a mulher de estampado
Deixa o homem amarrado

                  Mas essa é a história de pássaros
                  já de há muito urmanizados
                  pois a história dos pássaros
                  pássaros
                  só os guerreiros conhecem
                  só eles a entendem quando o vento
                  (numa lembrança)
                  sopra-a nas árvores de São Luís.

Não seria correto dizer
que a vida de Newton Ferreira
escorria ou se gastava
entre cofos de camarões, sacas de arroz
e paneiros de farinha-d’água
naquela sua quitanda
na esquina da Rua dos Afogados
com a Rua da Alegria.
                                 Não seria correto porque
se alguém chegasse lá
por volta das 3 da tarde (hora
de pouco movimento) — ele meio debruçado
no balcão lendo X-9 —
veria que tudo estava parado
na mesma imobilidade branca
do fubá dentro do depósito
das prateleiras cheias de latas e garrafas
e do balcão com a balança Filizola
                                                  tudo
sobre o chão de mosaico verde e branco
como uma plataforma da tarde.
Parado e ao mesmo tempo inserido
num amplo sistema
                              que envolvia os armazéns
da Praia Grande, a Estrada de Ferro São Luís-Teresina,
fazendas em Coroatá, Codó, plantações de arroz
e fumo, homens que punham camarões para secar
ao sol em Guimarães. E as próprias famílias
da rua
que se sentariam mais tarde à mesa do jantar.
Por isso mesmo
ele podia mergulhar naquele mundo de gangsters americanos
sem ansiedade.

É verdade, porém, que uma esquina mais acima
(às suas costas)
na Avenida Silva Maia
a tarde passava ruidosamente
farfalhando nos oitizeiros como o vento por um relógio de folhas.

É que a tarde tem muitas velocidades
                            sendo mais lenta
por exemplo
no esgarçar de um touro de nuvem
que ela agora arrasta iluminada
                         na direção do Desterro
por cima da capital
(como uma aranha, poderia dizer?
que ata e puxa a presa para devorá-la?
como um abutre invisível a destripá-la
                            num ballet
e muito acima do telhado da quitanda
                            em pleno ar?)
E em meio a um outro sistema
                                              este
                                              de ventos
que avançavam escuros das bandas do Apeadouro
ou das cabeceiras do Bacanga,
                                              úmidos às vezes,
num estampido que faz sacudir os aviões.

Não,
não cabe falar de aranha
se penso na cidade se desdobrando em seus
telhados e torres de igrejas
                                        sob um sol duro
as famílias debaixo das telhas, retratos de mortos
com o rosto exageradamente colorido
dentro de molduras pintadas de dourado,
                                                            cômodas
antigas, pequenas caixas com botões e novelos de linha,
parentes tuberculosos em quartos escuros, tossindo
baixo para que o vizinho não ouça, crianças
                                    que mal começam a andar
agarrando-se às pernas de pais que nada podem,
                debaixo daqueles telhados encardidos
                de nossa pequena cidade
                              a qual
                              alguém que venha de avião dos EUA
                              Poderá ver
                              postada na desembocadura suja de dois rios
                              lá embaixo
                              e como se para sempre. Mas
                              e o quintal da Rua das Cajazeiras? O tanque
do Caga-Osso? a Fonte do Bispo? a quitanda
                              de Newton Ferreira?
                                                             Nada disso verá
                              de tão alto
                              aquele hipotético passageiro da Braniff.

                              Debruçado no balcão
                              Newton Ferreira lê
                              seu conto policial.
                              Nada sabe das conspirações
               meteorológicas que se tramam
em altas esferas azuis acima do Atlântico.
               Na quitanda
               o tempo não flui
               antes se amontoa
               em barras de sabão Martins
               mantas de carne-seca
               toucinho mercadorias
               todas com seus preços e
               cheiros
               ajustados ao varejo
                                            (o olho sujo
                       do querosene
                       espiava na lata debaixo do balcão)
                       Mas nada disso se percebe
voando sobre a cidade a 900 quilômetros por hora.


                      Nem mesmo andando a pé
entre aquelas duas filas de porta-e-janela,
meias-moradas de sacadas de ferro e platibandas
                      manchadas de caruncho
                                                          (no vermelho
                      entardecer)
                                        Nem mesmo que a quitanda
exista ainda e que já sejam oito horas da noite
e se veja
pela única folha da porta entreaberta a luz acesa
                      como antigamente
e haja homens conversando lá dentro
                      entre lambadas de cachaça
                      e seja o mesmo o balcão
                      e o cheiro das mercadorias
lá não encontrarás o Gonzaga, sargento músico do exército.
Já não se falará da guerra que a guerra acabou
                      faz muitos anos.

                      Descendo ou subindo a rua,
                      mesmo que vás a pé,
verás que as casas são praticamente as mesmas
                      mas nas janelas
                      surgem rostos desconhecidos
como num sonho mau.

                      Mudar de casa já era
                      um aprendizado da morte: aquele
meu quarto com sua úmida parede manchada
aquele quintal tomado de plantas verdes
          sob a chuva
          e a cozinha
          e o fio da lâmpada coberto de moscas,
          nossa casa
          cheia de nossas vozes
          tem agora outros moradores:
          ainda estás vivo e vês, e vês
que não precisavas estar aqui para ver
          As casas, as cidades,
são apenas lugares por onde
          passando
          passamos

                         (ora sentado ora deitado
                         ora comendo na mesa
                         bebendo água do pote
                         ora debruçado
                         no peitoril da janela, o frango
                             pingando ensopado debaixo
                             do jirau de plantas)

          Nem a pé, nem andando de rastros,
nem colando o ouvido no chão
voltarás a ouvir nada do que ali se falou.
                                   Do querosene, sim,
podes outra vez sentir o mesmo cheiro de trapo
                                   e do sabão talvez
           se é que a fábrica ainda não faliu.
                     Mas de Newton Ferreira, ex-
           -center-forward da seleção maranhense,
                     que dez vezes faliu
e que era conhecido de todos na zona do comércio,
                     não há nenhum traço
naquele chão de mosaico verde e branco
                     (inutilmente o buscarás também
                     na sessão desta noite do poeira)

A cidade no entanto poderás vê-la do alto praticamente a mesma
           com suas ruas e praças
           por onde ele caminhava

Ah, minha cidade verde
                          minha úmida cidade
                          constantemente batida de muitos ventos
rumojerando teus dias à entrada do mar
                          minha cidade sonora
                          esferas de ventania
rolando loucas por cima dos mirantes
                          e dos campos de futebol
                          verdes verdes verdes verdes
                          ah sombra rumorejante
                          que arrasto por outras ruas

                          Desce profundo o relâmpago
de tuas águas em meu corpo,
                          desce tão fundo e tão amplo
                          e eu me pareço tão pouco
pra tantas mortes e vidas
                                                        que se desdobram
no escuro das claridades,
                                                        na minha nuca,
no meu cotovelo, na minha arcada dentária
                          no túmulo da minha boca
                                                                palco de ressurreições
inesperadas
                                      (minha cidade
                                      canora)
                                      de trevas que já não sei
                                      se são tuas se são minhas
mas nalgum ponto do corpo (do teu? do meu
                                                                 corpo?)
                          lampeja
                                       o jasmim
ainda que sujo da pouca alegria reinante
                                       naquela rua vazia
                                       cheia de sombras e folhas

                          Desabam as águas servidas
                          me arrastam por teus esgotos
                          de paletó e gravata
Me levanto em teus espelhos
                          me vejo em rostos antigos
                          te vejo em meus tantos rostos
                          tidos perdidos partidos
                                                            refletido
                          irrefletido
                                         e as margaridas vermelhas
                          que sobre o tanque pendiam:
                                                                      desce profundo
                          o relâmpago de tuas águas numa
                          vertigem de vozes brancas ecos de leite
                                         de cuspo morno no membro
                          o corpo que busca o corpo
                                                                No capinzal escondido
naquele capim que era abrigo e afeto
feito cavalo sentindo
                         o cheiro da terra o cheiro
verde do mato o travo do cheiro novo
                         do mato novo da vida
                         viva das coisas
                         verdes vivendo
longe daquela mobília onde só vive o passado
longe do mundo da morte da doença da vergonha
da traição das cobranças à porta,
                                                 ali
                         bebendo a saúde da terra e das plantas,
                                                                              buscando
                         em mim mesmo a fonte de uma alegria
                         ainda que suja e secreta
                         o cuspo morno a delícia
                         do próprio corpo no corpo
                         e num movimento terrestre
                         no meio do capim,
                         celeste o bicho que enfim alça voo
                                                              e tomba

                         Ah, minha cidade suja
de muita dor em voz baixa
                         de vergonhas que a família abafa
                         em suas gavetas mais fundas
                         de vestidos desbotados
                         de camisas mal cerzidas
                         de tanta gente humilhada
                         comendo pouco
mas ainda assim bordando de flores
                         suas toalhas de mesa
                         suas toalhas de centro
de mesa com jarros
                         — na tarde
                         durante a tarde
                         durante a vida —
                                         cheios de flores
                                         de papel crepom
                                         já empoeiradas
minha cidade doída

Me reflito em tuas águas
recolhidas:
                         no copo
d’água
no pote d’água
na tina d’água
no banho nu no banheiro
vestido com as roupas
de tuas águas
que logo me despem e descem
diligentes para o ralo
como se de antemão soubessem
para onde ir
                         Para onde
foram essas águas
de tantos banhos de tarde?
Rolamos com aquelas tardes
                         no ralo do esgoto
e rolo eu
agora
no abismo dos cheiros
que se desatam na minha
carne na tua, cidade
que me envenenas de ti,
que me arrastas pela treva
me atordoas de jasmim
que de saliva me molhas me atochas
num cu
                         rijo me fazes
delirar me sujas
de merda e explodo o meu sonho
em merda.
                         Sobre os jardins da cidade
                         urino pus. Me extravio
na Rua da Estrela, escorrego
no Beco do Precipício.
Me lavo no Ribeirão.
Mijo na Fonte do Bispo.
Na Rua do Sol me cego,
na Rua da Paz me revolto
na do Comércio me nego
mas na das Hortas floresço;
na dos Prazeres soluço
na da Palma me conheço
na do Alecrim me perfumo
na da Saúde adoeço
na do Desterro me encontro
na da Alegria me perco
Na Rua do Carmo berro
na Rua Direita erro
e na da Aurora adormeço                              

Acordo na zona. O dia ladra, navega
                         enfunado e azul
                                                 Voo
com as toalhas brancas
                                   Vou pousar no sorriso de Isabel
Tropeço num preconceito caio das nuvens
                                                    descubro Marília
me aconchego em suas pétalas como a pomba
do Divino entre rosas na bandeja
                         Mas vem junho e me apunhala
                         vem julho me dilacera
                         setembro expõe meus despojos
                         pelos postes da cidade
                         (me recomponho mais tarde,
                         costuro as partes, mas os intestinos
                         nunca mais funcionarão direito)

                         Prego a subversão da ordem
                         poética, me pagam. Prego
                         a subversão da ordem política,
                         me enforcam junto ao campo de tênis dos ingleses
                         na Avenida Beira-Mar
                                                          (e os canários,
                         nem-seu-souza: improvisam
                         em sua flauta de prata)
                         Vendo o que tenho e mudo
                         para a capital do país.

(Se tivesse me casado com Maria de Lourdes,
meus filhos seriam dourados uns, outros
morenos de olhos verdes
e eu terminaria deputado e membro
da Academia Maranhense de Letras;
se tivesse me casado com Marília,
teria me suicidado na discoteca da Rádio Timbira)

Mas na cidade havia
muita luz,
                a vida
fazia rodar o século nas nuvens
                                         sobre nossa varanda
por cima de mim e das galinhas no quintal
                                         por cima
do depósito onde mofavam
paneiros de farinha
                            atrás da quitanda,
                                                       e era pouco
viver, mesmo
no salão de bilhar, mesmo
no bar do Castro, na pensão
da Maroca nas noites de sábado, era pouco
                                banhar-se e descer a pé
para a cidade de tarde
(sob o rumor das árvores)
                                       ali
                                       no norte do Brasil
                                       vestido de brim.

                   E por ser pouco
                   era muito,
                                   que pouco muito era o verde
fogo da grama, o musgo do muro, o galo
que vai morrer,
a louça na cristaleira,
o doce na compoteira, a falta
de afeto, a busca
do amor nas coisas.
                                   Não nas pessoas:
nas coisas, na muda carne
das coisas, na cona da flor, no oculto
falar das águas sozinhas:
                                   que a vida
passava por sobre nós,
                                  de avião.

Não tem a mesma velocidade o domingo
                                  que a sexta-feira com sua azáfama de compras
                                  fazendo aumentar o tráfego e o consumo
                                  de caldo de cana gelado,
                                                                      nem tem
                                  a mesma velocidade
                                  a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
                                  a penetrar soturnamente o rio
                                  noutra lentidão que a do crepúsculo
                                  o qual, no alto,
                                  com sua grande engrenagem escangalhada
moía a luz.
                                  Outra velocidade
tem Bizuza sentada no chão do quarto
                                  a dobrar os lençóis lavados e passados
                                  a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
                                             se a vida fosse eterna.
                                                                                E era
                                  naquele seu universo de almoços e temperos
                                  de folhas de louro e de pimenta-do-reino
                                  mastruz para tosse braba,
                                                                          universo
de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha
                                  dentro de um surrado vestido de chita,
                                                                                            enfim,
onde batia o seu pequenino coração.
                                                      E se não era
eterna a vida, dentro e fora do armário,
o certo é que
tendo cada coisa uma velocidade
                                                      (a do melado
                                                      escura, clara
                                                      a da água
                                                      a derramar-se)
cada coisa se afastava
desigualmente
de sua possível eternidade.
                                                      Ou
                                                      se se quer
                                                      desigualmente
                                                      a tecia
na sua própria carne escura ou clara
num transcorrer mais profundo que o da semana.
                                                          Por isso não é certo dizer
que é no domingo que melhor se vê
                                                          a cidade
— as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia
as janelas trancadas no silêncio —
                                                          quando ela
                                                          parada
                                                          parece flutuar.
E que melhor se vê uma cidade
                quando — como Alcântara —
                todos os habitantes se foram
e nada resta deles (sequer
                um espelho de aparador num daqueles
                aposentos sem teto) — se não
                                entre as ruínas
                                a persistente certeza de que
                                naquele chão
                                onde agora crescem carrapichos
                                eles efetivamente dançaram
                                (e quase se ouvem vozes
                                e gargalhadas
                                         que se acendem e apagam nas dobras da brisa)
                                                                                                         Mas
                                se é espantoso pensar
                                como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
                                tantas e tantas saias, anáguas,
                                sapatos dos mais variados modelos
                                arrastados pelo ar junto com as nuvens,
                                                                   a isso
                                responde a manhã
                                que
                                com suas muitas e azuis velocidades
                                segue em frente
                                                           alegre e sem memória

                                É impossível dizer
em quantas velocidades diferentes
                                se move uma cidade
                                                               a cada instante
                                                               (sem falar nos mortos
                                                               que voam para trás)
                                                               ou mesmo uma casa
onde a velocidade da cozinha
não é igual à da sala (aparentemente imóvel
nos seus jarros e bibelôs de porcelana)
                                nem à do quintal
                                escancarado às ventanias da época

                                                               e que dizer das ruas
de tráfego intenso e da circulação do dinheiro
e das mercadorias
                                desigual segundo o bairro e a classe, e da
                                rotação do capital
                                mais lenta nos legumes
                                mais rápida no setor industrial, e
da rotação do sono
                                sob a pele,
                                do sonho
                                nos cabelos?

                                e as tantas situações da água nas vasilhas
                                (pronta a fugir)
                                                        a rotação
                                da mão que busca entre os pentelhos
                                o sonho molhado os muitos lábios
                                do corpo
                                que ao afago se abre em rosa, a mão
                                que ali se detém a sujar-se
                                de cheiros de mulher,
                                          e a rotação
                                dos cheiros outros
                                que na quinta se fabricam
                                junto com a resina das árvores e o canto
                                dos passarinhos?

                                Que dizer da circulação
                                da luz solar
arrastando-se no pó debaixo do guarda-roupa
                                entre sapatos?
                                                      e da circulação
                                dos gatos pela casa
                                dos pombos pela brisa?
e cada um desses fatos numa velocidade própria
                                sem falar na própria velocidade
                                que em cada coisa há
                                           como os muitos
                                sistemas de açúcar e álcool numa pera,
                                           girando
                                todos em diferentes ritmos
                                                                        (que quase
                                se podem ouvir)
                                                          e compondo a velocidade geral
                                que a pera é

do mesmo modo que todas essas velocidades mencionadas
                                compõem
(nosso rosto refletido na água do tanque)
                                o dia
                                que passa
                                — ou passou —
                                na cidade de São Luís.

                                E do mesmo modo
que há muitas velocidades num
                                     só dia
e nesse mesmo dia muitos dias
                                     assim
não se pode também dizer que o dia
tem um único centro
                                                 (feito um caroço
                                                 ou um sol)
                                     porque na verdade um dia
tem inumeráveis centros
                                     como, por exemplo, o pote de água
                                     na sala de jantar
                                     ou na cozinha
                                     em torno do qual
desordenadamente giram os membros da família.

                                     E se nesse caso
é a sede a força de gravitação
                                     outras funções metabólicas
                                     outros centros geram
                                     como a sentina
                                     a cama
                                     ou a mesa de jantar
(sob uma luz encardida numa
                                     porta-e-janela da Rua da Alegria
                                     na época da guerra)
sem falar nos centros cívicos, nos centros
                                     espíritas, no Centro Cultural
Gonçalves Dias ou nos mercados de peixe,
                                     colégios, igrejas e prostíbulos,
                                     outros tantos centros do sistema
                                     em que o dia se move
(sempre em velocidades diferentes)
                                     sem sair do lugar.

                                     Porque
                                     quando todos esses sóis se apagam
                                     resta a cidade vazia
                                        (como Alcântara)
                                        no mesmo lugar.
Porque
diferentemente do sistema solar
                                        a esses sistemas
                                        não os sustém o sol e sim
os corpos
que em torno dele giram:
não os sustém a mesa
mas a fome
não os sustém a cama
e sim o sono
não os sustém o banco
e sim o trabalho não pago

E essa é a razão por que
quando as pessoas se vão
                                        (como em Alcântara)
apagam-se os sóis (os
                                  potes, os fogões)
                                  que delas recebiam o calor
                                           essa é a razão
                                           por que em São Luís
donde as pessoas não se foram
                                           ainda neste momento a cidade se move
                                           em seus muitos sistemas
                                           e velocidades
                                           pois quando um pote se quebra
                                           outro pote se faz
                                           outra cama se faz
                                           outra jarra se faz
                                           outro homem
                                           se faz
para que não se extinga
                                           o fogo
                                           na cozinha da casa
O que eles falavam na cozinha
                                           ou no alpendre do sobrado
                                           (na Rua do Sol)
                                           saía pelas janelas

                                           se ouvia nos quartos de baixo
na casa vizinha, nos fundos da Movelaria
                                           (e vá alguém saber
                                           quanta coisa se fala numa cidade
                                           quantas vozes
                                           resvalam por esse intrincado labirinto
                                           de paredes e quartos e saguões,
                                           de banheiros, de pátios, de quintais
                                                                                                  vozes
                                           entre muros e plantas,
                                                                              risos
                                           que duram um segundo e se apagam)

                                            E são coisas vivas as palavras
e vibram da alegria do corpo que as gritou
têm mesmo o seu perfume, o gosto
        da carne
que nunca se entrega realmente
nem na cama
                                            senão a si mesma
                                            à sua própria vertigem
                                                                              ou assim
                                                                              falando
                                                                              ou rindo
                                                                              no ambiente familiar
enquanto como um rato
tu podes ouvir e ver
de teu buraco
como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio
na armação de ferro onde seca uma parreira
entre arames
de tarde
             numa pequena cidade latino-americana.

E nelas há
uma iluminação mortal
                                   que é da boca
                                   em qualquer tempo
mas que ali
na nossa casa
                      entre móveis baratos
                      e nenhuma dignidade especial
minava a própria existência.

                                           Ríamos, é certo,
em torno da mesa de aniversário coberta de pastilhas
de hortelã enroladas em papel de seda colorido,
                                                                       ríamos, sim,
mas
era como se nenhum afeto valesse
como se não tivesse sentido rir
                          numa cidade tão pequena.

                         O homem está na cidade
                         como uma coisa está em outra
                         e a cidade está no homem
                         que está em outra cidade

                         mas variados são os modos
                         como uma coisa
                         está em outra coisa:
                         o homem, por exemplo, não está na cidade
                         como uma árvore está
                         em qualquer outra
                         nem como uma árvore
                         está em qualquer uma de suas folhas
                         (mesmo rolando longe dela)
                         O homem não está na cidade
                         como uma árvore está num livro
                         quando um vento ali a folheia

a cidade está no homem
mas não da mesma maneira
que um pássaro está numa árvore
não da mesma maneira que um pássaro
(a imagem dele)
está/va na água
                         e nem da mesma maneira
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo
                         a cidade está no homem
                         quase como a árvore voa
                         no pássaro que a deixa
                         cada coisa está em outra
                         de sua própria maneira
                         e de maneira distinta
                         de como está em si mesma

                         a cidade não está no homem
                         do mesmo modo que em suas
                         quitandas praças e ruas


Buenos Aires, maio-outubro, 1975.

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Alberto Pucheu – Poema para a catástrofe do nosso tempo

I

Amanhã não será um dia melhor
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem. Há um
sentimento fúnebre no ar,
de quem tem vivenciado
uma morte após a outra,
de quem tem vivenciado,
antecipadamente, mais uma
morte, a última delas, a morte
após a própria morte, a morte
da qual não se tem retorno,
a morte da qual os mortos
não voltam dela para a vida,
a morte a que apenas os vivos
se encaminham para ela
sem jamais poder voltar,
a morte da qual não se tem
poemas para se fazer,
não a morte simbólica,
mas a outra, a real,
a experiência final da morte
em vida, da qual sobrevivemos,
se tanto, ainda que neste mundo,
enquanto fantasmas desossados,
descarnados, desfigurados,
que berram na tentativa de evitar
a morte e de evitar, a todo custo,
a morte em vida. Berramos em vão.
Não assustamos mais ninguém
com nossos berros. São eles, antes,
os inassustáveis, que nos assustam.
A cada momento, tentamos aprender
a fazer, fantasmaticamente,
o improvável luto de nossas
mortes, o que, quando conseguimos,
é tão somente de um modo
individual, jamais coletivamente.
Nunca aprendemos a fazer
o luto coletivo do que matou
e torturou muitos de nós, nunca
aprendemos a fazer a luta coletiva
contra nossa história de horror,
que permanece torturando e matando.
Os torturadores e assassinos
estão vivos, viveram em família
sem ser incomodados, falam
em nome da família e de deus,
viraram nomes de ruas, pontes,
cidades até se alçarem, de novo,
ao posto da presidência e da vice-
presidência da república
e, dessa vez, com o amplo apoio
do fascismo que há nas pessoas,
forjado por propagandas enganosas
da grande mídia, por fake news
compradas pelas grandes empresas
de outras grandes empresas
que governam o mundo,
os países e as pessoas.
Se, a cada vez que alguém grita
“não passarão”, eles já passaram
e continuam passando com força,
cada vez, desmesuradamente
maior, como alguns de nós ainda
perguntamos “como resistir?”,
“como resistir hoje?”.
Neste momento, é importante dizer
que a poesia não é uma arma
contra o autoritarismo, mas
o desejo de desarmar
o autoritarismo, desarmando
os que querem acabar
com a democracia em nome
do autoritarismo ou da ditadura.
Desarmar, portanto, ao menos,
e para quase ninguém,
mas desarmar, desde nossa
impotência radical,
um dos modos do autoritarismo,
um dos modos do fascismo,
o da língua. Amanhã
não será um dia melhor
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem. Alguns anos
atrás, foi possível um recomeço
para um país que vivera 21 anos
sob governo militar, sob tortura,
sob assassinatos, sob corrupção,
sob inflação desmesurada, com dívida
externa impagável, a que agora
se quer, declarada e cinicamente,
voltar. Depois de, antes mesmo
de ser eleito, já ter dito e repetido
“eu sou favorável à tortura,
tu sabes disso, e o povo também
é favorável à tortura”, “através
do voto você não vai mudar nada
nesse país, nada, absolutamente
nada, só vai mudar, infelizmente,
no dia que nós partirmos
para uma guerra civil aqui dentro,
e fazendo o trabalho
que o regime militar não fez,
matando uns 30 mil… Se vai morrer
alguns inocentes, tudo bem”,
“minha especialidade é matar,
não é curar ninguém”, “o erro
da ditadura foi torturar
e não matar”, “Pinochet
devia ter matado mais gente”,
“vamos fuzilar a petralhada”,
o presidente, em campanha,
afirmou que o objetivo
de seu governo é fazer
com que o Brasil volte
40 ou 50 anos, ou seja, volte para
os piores anos, para os porões,
para os calabouços mais sombrios
da ditadura militar.
A partir de então, é preciso dizer
que o futuro é o passado, que
o que está à frente é o que está
40 ou 50 anos atrás, a partir
de então, tudo é o fim,
tudo é pior do que o fim,
tudo é o fim e o dia seguinte
do fim, a sobrevivência
fantasmática, desossada,
descarnada, desfigurada,
diária, frente ao pior,
ao mais do que pior.
Em campanha, repetindo
publicamente
o que nenhuma instituição
lhe limitou dizer nem fazer,
ele já havia dito tudo:
“Vamos fazer uma limpeza
nunca vista na história
desse Brasil”, “vamos varrer
do mapa esses bandidos
vermelhos do Brasil”,
“essa turma, se quiser ficar
aqui, vai ter que se colocar
sob a lei de todos nós.
Ou vão para fora ou vão
para a cadeia. Vai tudo vocês
para a Ponta da praia”.
“Ponta da praia”, vocês
sabem, é a base da marinha
na restinga de Marambaia
no Rio de Janeiro, onde
os opositores da ditadura
eram executados
e desovados. Tudo isso
começou há muito tempo,
tudo isso começou
com genocídios e escravidões,
tudo isso atravessou muitos
de nossos momentos, tudo
isso poderia ter vários
começos e recomeços,
mas, mais recentemente,
tudo isso recomeçou,
por exemplo, naquele
17 de abril de 2016,
o dia em que o pior do Brasil
se expôs pública
e espetacularizadamente
sem qualquer escrúpulo,
na programação de um dia
de domingo, em nome das famílias
dos deputados, em nome
de deus, em nome de qualquer
coisa, menos em nome
da coisa pública.
Nesse dia, ele, o pior, como outros
dentre os piores, deu seu voto
a favor do impeachment dizendo
o que de maneira alguma
poderia ser permitido
ser dito: “pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”.
No elogio ao torturador
da presidenta da república
(e de tantos outros e outras),
em plena câmara dos deputados,
televisionado em espetáculo
para todo o país,
no elogio do torturador
conhecido por, além de tudo o mais,
colocar ratos
nas vaginas das mulheres,
conhecido por fazer crianças
assistirem seus pais
sendo torturados,
conhecido por torturar as crianças
na frente de seus pais,
quando ele deveria ter saído
dali preso, mas não saiu,
o ilimitado do autoritarismo
brasileiro não encontrou
mais nenhuma limitação.
Naquele dia, com essa
e outras falas, seguidamente,
terríveis, mesmo para nós,
que sempre soubemos
dos nossos piores dias,
aquele foi o dia do pior
do que o pior. De lá para cá,
temos berrado em vão,
em vão, berramos quando
depuseram injustamente
a presidenta, em vão, berramos
quando prenderam injustamente
o ex-presidente operário,
impossibilitando sua candidatura,
em vão, berramos contra o Supremo,
contra o TSE, em vão berramos
contra o assassinato de Marielle
e em vão continuamos a berrar,
ainda que tudo esteja às claras,
quem mandou matar Marielle?
Não assustamos mais ninguém
com nossos berros; são eles,
antes, os inassustáveis,
que diariamente nos assustam.
De lá para cá, como o esperado,
tudo só vem piorando
cada vez mais, com o pleno
consentimento dos poderes
institucionais, do Supremo,
e teimam, ainda, em dizer,
que o Brasil está funcionando
normalmente. Não, ele não
está funcionando
normalmente, não, ele não.

II

Para quem não sabe, para quem
não viu, não leu, não ouviu,
para quem não quer saber,
para quem não quer ver,
para quem não quer ler,
para quem não quer ouvir,
para quem está surdo,
para quem não quer cheirar
o que está, fortemente, pelo ar,
mesmo que nada então adiante
dizer, saiba, entretanto, que
são muitos os testemunhos
de tal tempo, do tempo
da ditadura militar.
Já se perguntou quem
testemunha pela testemunha
– uma pergunta aporética, claro –,
e não se trata de modo algum
de fazer com que a poesia
testemunhe pela testemunha,
mas que ela possa guardar
testemunhos que foram
dolorosamente prestados,
como, por exemplo, o de Eny
Moreira, advogada:
“Dia 10 de novembro de 1972,
no Jornal Nacional, o Cid Moreira
lê uma nota oficial do Primeiro Exército
dando conta de que ‘foi morta,
num tiroteio, a terrorista Aurora Maria
Nascimento Furtado’, e,
de manhã cedo, no dia seguinte,
a família me liga e me pede
para ver se eu conseguia
liberar o corpo. Eu fui ao Exército,
o Exército disse que era no Dops,
eu fui para o Dops, disseram
que não era lá e, quando eu descia
do elevador, um policial,
que me conhecia das tantas idas,
me disse ‘ó, o corpo estava
no IML, mas já foi para o cemitério
do Caju. Eu fui para lá. Cheguei lá
estava a Dirce Drach. Dirce Drach
é uma advogada, que trabalhou com
Lino Machado. Quando eu cheguei,
a Aurora estava já no caixão… Gente,
é muito difícil lembrar isso. Nela,
foi posto um pano branco, rasgado
aqui para imitar um vestido.
A gente foi cobrindo de flores,
ela tinha um olho saltado, o outro
completamente preto,
um afundamento… Um afundamento
no maxilar, uma fratura exposta
no braço, mordidas pelo corpo,
não tinha unha nem bico de peito.
O cabelo dela era liso. Ela tinha 26
anos, branquinha, eu tinha a mesma
idade dela. O cabelo dela liso
assim e tinha uma franja
que tinha sido cortada
em cima da sombrancelha
toda irregular. Eu fiz um gesto,
desse gesto de carinho
que você faz em criança,
passando a mão assim…
Quando eu passei a mão,
que o cabelo levantou,
meu dedo afundou. Eu
comecei a mexer no cabelo.
Eles tinham… A última
coisa que fizeram com ela
foi apertar um torniquete –
por isso que ela tinha
um olho saltado. Quer dizer,
a única prova é a minha palavra
e a da Dirce. O pior disso é
que eu tenho certeza que
os homens que fizeram isso
com ela eram os mesmos
que estavam lá até a ambulância
sair com o corpo dela pra
São Paulo. A gente tratou
de botar muita flor nela
para ver se os pais
não percebiam. Desculpa”.
Como o de Cecília Coimbra:
“Uma das coisas que era comum,
quando prendiam um casal
junto, era levar um e outro
para ver o outro ser torturado.
Então, me levaram algumas vezes
para ver Novaes ser torturado…
É uma coisa difícil pra gente, né,
falar disso. E os requintes
de crueldade que fazem
com a mulher. Frequentemente,
a gente era colocada nua,
molhada, o molhar era para que
os choques ficassem mais intensos,
os choques elétricos, na boca,
no seio, na vagina, na orelha,
no nariz… A crueldade chegou
de terem um filhote de jacaré
lá no Doi-Codi, que eles puxavam
com uma corda no pescoço,
esse filhote de jacaré. Eu fui
uma noite, não lembro se era noite
ou se era dia, eu fui levada
para sala ao lado da sala de tortura,
me botaram nua, me amarraram
numa cadeira e botaram o jacaré
passando pelo meu corpo.
Eu acreditei que o meu filho
tinha sido entregue ao juizado
de menores, eles me fizeram acreditar
nisso. Meu filho tinha 3 anos e meio,
o José Ricardo, e eu caí na armadilha,
porque acreditei mesmo, porque eu vi
todos os meus irmãos presos
e meus irmãos não tinham nenhuma
militância política. Eles invadiram
a casa da minha mãe, prenderam
meus irmãos, minha cunhada,
que estava fazendo um mês
de casada com meu irmão,
eu acreditei que minha mãe
estivesse presa, eles, inclusive,
brincaram, de gozação, diziam
‘a Maria Guerrilheira’, porque
minha mãe se chamava Maria.
Depois eu vim a saber que
as únicas pessoas que não
foram presas foram minha mãe,
meu filho de três anos e meio
e meu irmão, Custódio
Coimbra, que era menor
de idade, tinha 14 anos
na época”. Escutemos
mais uma vez, em um retorno
que rememora pela diferença,
a memória de Cecília Coimbra:
“Em agosto de 1970, fui presa
e levada para o DOPS/RJ.
Dois dias depois, algemada
e encapuzada, fui para
o DOI-CODI/RJ, no quartel
da Polícia do Exército,
à Rua Barão de Mesquita,
na Tijuca. Falar daqueles
três meses em que fiquei
detida incomunicável
sem um único banho
de sol ou qualquer outro
tipo de exercício é falar
de uma viagem ao inferno:
dos suplícios físicos
e psíquicos, dos sentimentos
de desamparo, solidão, medo,
pânico, abandono, desespero.
A tortura não quer ‘fazer’ falar,
ela pretende calar
e é justamente essa a terrível
situação: através da dor,
da humilhação e da degradação
tentam transformar-nos
em coisa, em objeto.
Em especial, a tortura
perpetrada à mulher
é violentamente machista.
Inicialmente são os xingamentos,
as palavras ofensivas
e de baixo calão ditas agressiva
e violentamente
como forma de nos anular.
Chegando ao DOI-CODI/RJ,
fui levada encapuzada
para o andar térreo,
para uma sala: a sala de torturas,
conhecida como ‘sala roxa’.
De capuz, tive minhas roupas
arrancadas e meu corpo molhado.
Fios foram colocados
e senti os choques elétricos:
no bico dos seios, vagina, boca,
orelha e por todo o corpo.
Gritavam palavrões e impropérios,
chutavam-me. Exigiam-me,
através das torturas, que eu falasse
o que não sabia! No dia seguinte,
não sei precisar bem, fui
novamente levada
para a sala de tortura
e lá assisti parte da tortura
que meu marido sofria:
choques elétricos
em todo o seu corpo.
Seus gritos acompanharam-me
durante anos. Era muito comum
esta tática
quando algum casal era preso,
além de se tentar jogar um
contra o outro em função
de informações que pseudamente
algum teria passado
para os torturadores…
‘Será mesmo que ele falou isso?’…
Era necessário um esforço
muito grande
para não sucumbirmos…
‘Se falou está louco!’…
era o meu argumento,
repetido à exaustão.
Continuavam querendo saber
sobre o sequestro do embaixador
alemão. Fui novamente despida,
e colocada numa sala
que ficava ao lado da de torturas.
Fui amarrada numa cadeira
e colocaram um filhote de jacaré
sobre meu corpo. Desmaiei.
Os guardas que me levavam,
sempre encapuzada, constantemente
praticavam vários abusos sexuais…
Os choques elétricos no meu corpo
nu e molhado
eram cada vez mais intensos…
Eu me sentia desintegrar:
a bexiga e o ânus sem nenhum controle…
‘Isso não pode estar acontecendo:
é um pesadelo… Eu não estou aqui…’,
pensava eu. O filhote de jacaré
com sua pele gelada e pegajosa
percorrendo meu corpo…
‘E se me colocam a cobra,
como estão gritando que farão?’…
Perco os sentidos, desmaio.
Numa madrugada fui retirada
da cela, levada para o pátio,
amarrada, algemada
e encapuzada… Aos gritos
diziam que ia ser executada
e levada para ser ‘desovada’
como em um ‘trabalho’
do Esquadrão da Morte…
Acreditei… Naquele momento
morri um pouco… Em silêncio,
aterrorizada, me urinei…
Aos berros, riram e me levaram
de volta à cela… Parece que,
naquela noite, não tinham
muito ‘trabalho’ a fazer …
Precisavam se ocupar”.

III

O que eu vi até o momento
é que outras gripes
mataram mais do que essa.
Assim como uma gripe, outra
qualquer leva a óbito.
Por enquanto, nada de alarme.
Não é uma situação alarmante.
Não é motivo para pânico.
Se estiver tudo redondinho
no Brasil, não vamos buscar
ninguém [na China]. Se depender
do presidente, não vamos
buscar ninguém. Custa caro
um voo desses.
Foi surpreendente o que aconteceu
na rua até com esse
superdimensionamento.
O vírus chegou, está sendo
enfrentado por nós e brevemente
passará. Nossa vida tem
de continuar. Que vai ter problema
vai ter, quem é idoso, quem
está com problema, quem tem
alguma deficiência,
mas não é tudo isso que dizem.
Quem tem obrigação de cuidar
dos idosos é a família
e não o governo. Quem tem abaixo
de 40 anos têm que se preocupar
para não transmitir o vírus
para outros. Para a própria vida,
é quase zero o risco. Cada família
tem que botar o vovô e a vovó
em um canto e evitar o contato
a menos de dois metros. O resto
tem que trabalhar. Toda família
testou negativo. Eu, a partir do momento
em que não estou infectado,
ao ter contato com quem quer que seja,
não estou colocando em risco a saúde
daquela pessoa. Talvez
eu tenha sido infectado lá atrás
e nem tenha sabido. Talvez muitos
de vocês também. Se eu resolvi
apertar a mão do povo
desculpe aqui, isso é um direito meu.
Muitos pegarão isso
independente dos cuidados
que tomem. É uma neurose.
70% [da população] vai pegar
o vírus. Isso vai acontecer
mais cedo ou mais tarde.
Devemos respeitar, tomar
as medidas sanitárias cabíveis,
mas não podemos entrar numa neurose,
como se fosse o fim do mundo.
O que que está acontecendo, nós íamos
passar por isso. Começou na China,
foi para outros países da Europa
e iríamos passar por isso. Agora,
o que está errado é a histeria,
como se fosse o fim do mundo.
E uma nação, o Brasil, por exemplo,
só estará livre desse vírus, né,
o coronovírus aí, tá, quando?
Quando um certo número de pessoas
forem infectadas e criarem
anticorpos, que passam a ser
barreira para não infectar
quem não foi infectado ainda.
Nós estamos em uma briga
pelo poder e vou ser fiel
àquilo que eu sempre tive
com a população brasileira.
Não dá para querer jogar
nas minhas costas
uma possível disseminação
do vírus. Vocês vão querer
jogar a responsabilidade
em cima de mim. Espero
que não venham me culpar
lá na frente pela quantidade
de milhões e milhões
de desempregados
na minha pessoa. Esse vírus
trouxe certa histeria.
A economia está parando.
Tem alguns governadores,
no meu entender, que estão
tomando medidas
que vão prejudicar e muito
a nossa economia.
Estão tomando medidas,
a meu ver, exageradas.
Brevemente, o povo saberá
que foram enganados
por esses governadores
e por grande parte da mídia
nesta questão do coronavírus.
Se for nos ônibus
do Rio, Metrô de São Paulo,
está tudo lotado. A vida
continua, não tem que ter histeria.
A histeria leva a um baque
da economia. Não é porque tem
uma aglomeração de pessoas
aqui e acolá esporadicamente
que tem que ser atacado
exatamente isso. É tirar a histeria.
Agora, o que acontece? Prejudica.
Algumas autoridades estaduais
têm tomado medidas, tem tido
reclamação e tem tido elogio
também, mas eu deixo claro
que o remédio, quando em excesso,
pode não fazer bem
ao paciente. Tem certos governadores
que estão tomando medidas
extremas. Uns fecharam supermercados,
outros querendo fechar aeroportos, outros
querendo colocar uma barreira
entre os estados, fechando academias.
Não compete a eles fechar
aeroporto, fechar rodovias, shopping,
feira do Nordestino no Rio de Janeiro.
Tem gente que quer fechar igrejas,
o último refúgio das pessoas.
Lógico que o pastor vai saber
conduzir lá o seu culto, ele
vai ter consciência, o pastor,
o padre, se a igreja está muito cheia,
falar alguma coisa, ele vai
decidir. Até porque
a garantia de culto é garantida
pela constituição. A chuva
está vindo aí, você vai se molhar,
agora se você botar uma capinha
aqui, tudo bem, passa, agora
se você entrar em parafuso,
você vai morrer afogado
embaixo da chuva.
Não temos como impedir
o direito de ir e vir.
Eu tenho o direito constitucional
de ir e vir. Ninguém vai tolher
minha liberdade de ir e vir.
Ninguém. Estão fazendo terror
com a população desses estados.
Os governadores são verdadeiros
exterminadores de emprego.
O comércio para, o pessoal
não tem o que comer.
A economia tem que funcionar,
caso contrário as pessoas
vão ficar em casa
sem ter com o que se alimentar.
Estão fazendo o que bem entendem.
Vão morrer alguns. Sim, vão morrer.
E daí? Lamento. Quer que eu faça
o quê? Eu sou Messias, mas não faço
milagre. Não podemos deixar
esse clima todo que está aí. Prejudica
a economia. Não adianta eu falar
fiquem calmos, ou esperem
uma guerra. Primeiro porque
eu estou me violentando.
Eu não quero histeria
porque isso atrapalha.
Agora, deixo bem claro: a gente
não temos que entrar em pânico.
Isso nós vamos viver. Você não pode
comparar Brasil com Itália.
Eu pergunto a você: sabe
quantos habitantes temos
por quilômetro quadrado
na Itália? São 200 habitantes
por quilômetro quadrado.
Na Alemanha são 230 habitantes.
No Brasil, 24. Há uma diferença
enorme entre esses países.
O número de pessoas que morreram
de H1N1 no ano passado
foi na ordem de 800 pessoas.
A previsão é não chegar
a essa quantidade de óbitos
no tocante ao coronavírus.
Eu não interfiro no trabalho
do nosso ministro da saúde,
eu vejo os números que parte
de lá, dessa projeção, eu tô achando
que é um exagero nisso aí.
Nós temos que levar em conta
a situação daquela pessoa:
no Rio de Janeiro, tinha
uma pessoa grave entubada
lá, tem 50 anos de idade,
desde os 12 é um fumante
inveterado, então, qualquer
problema que ele adquira
vai ser uma catástrofe
para a vida dele.
Estamos fazendo a coisa certa
e com tranquilidade. Devemos
sim voltar à normalidade.
Algumas poucas autoridades
municipais e estaduais
devem abandonar o conceito
de terra arrasada, a proibição
de transportes, o fechamento
de comércio e o confinamento
em massa. Ficar em casa
é coisa de covardes.
Essa é uma realidade, o vírus
‘tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo,
mas enfrentar como homem, porra.
Não como um moleque.
Tem mulher apanhando em casa.
Por que isso? Em casa que falta pão,
todos brigam e ninguém
tem razão. Como é que acaba
com isso? O cara quer trabalhar,
meu Deus do céu. É crime
trabalhar? O que
se passa no mundo
tem mostrado que o grupo
de risco é o das pessoas acima
dos 60 anos. Então, por que
fechar escolas? Brasileiro
tem que ser estudado. Ele não
pega nada. Você vê o cara
pulando em esgoto ali. Ele sai,
mergulha e não acontece nada
com ele. Não é esperar
que o governo faça
alguma coisa. O governo
não pode fazer tudo
que acham que o Estado
tem que fazer. No meu caso
particular, pelo meu histórico
de atleta, caso fosse contaminado
pelo vírus, não precisaria
me preocupar, nada sentiria
ou seria, quando muito, acometido
de gripezinha ou resfriadinho.
Depois de uma facada, não
vai ser uma gripezinha
que vai me derrubar não,
tá ok? Eu faço 65
daqui a quatro dias.
Vai ter uma festinha tradicional
aqui. Até porque eu faço aniversário
no dia 21 e minha esposa dia 22.
São dois dias de festa aqui.
Emenda, dia 21, próximo de meia-
noite ela me cumprimenta; logo depois
eu a cumprimento. Ou será
que eu estou proibido
de fazer essa festinha em casa?
O presidente sou eu. A decisão
foi o Supremo Tribunal Federal,
o Supremo que decidiu
que estados e municípios
podem decretar as medidas
que acharem necessárias para conter
o avanço do vírus. O Supremo
falou que eu não tenho autoridade
para isso, o Supremo disse isso,
mas, no que depender de nós,
nós vamos começar a flexibilizar
e mostrar que não é esse o caminho.
Pena que eu não possa intervir
em muita coisa, porque o Supremo
decidiu que as medidas restritivas
que têm de ser respeitadas
são aquelas de prefeitos e governadores.
Vamos seguir o destino. Vamos respeitar
a decisão do Supremo Tribunal Federal
que, afinal de contas, estamos
numa democracia, além da independência,
a harmonia entre os poderes.
Não queremos aqui criar qualquer polêmica
com outro poder. Todos eles são responsáveis
assim como eu sou como chefe do executivo.
Decisões sou obrigado a tomar, porque
sempre tenho dito, dado a minha formação
militar: pior que uma decisão mal tomada
é uma indecisão. Jamais pecarei
por omissão. Esse é o ensinamento
que eu tive na minha carreira
militar. Os excessos que alguns cometeram
que se responsabilizem por eles.
Quem tem poder de decretar
estado de defesa ou de sítio,
depois de uma decisão obviamente
do parlamento brasileiro, é
o presidente da república
e não o prefeito ou o governador.
Acabou a época da patifaria.
Chega da velha política.
Queremos é ação pelo Brasil.
Não queremos negociar nada.
Não tem mais conversa.
Daqui para frente, não só
exigiremos, porque chegamos
no limite. Faremos cumprir
a Constituição. Será cumprida
a qualquer preço. E ela tem
mão dupla. Não é só uma mão,
não. As Forças Armadas estão
ao nosso lado. Todos nós
juramos um dia dar a vida
pela pátria. Agora é Brasil
acima de tudo e Deus acima de todos.
Deus abençoe nossa pátria querida.

IV

Compartilhando vozes, afetos
e feitos na recusa de sermos
destroçados, guardo
testemunhos, notas, notícias
e percepções diárias da destruição
para estarmos, mais uma vez,
juntos, para atravessarmos o dia,
os meses, os anos de tantas dores
e desencontros, para não deixarmos
o esquecimento, mais uma vez,
nos assolar. Talvez eu seja aqui
um termômetro do choque da frieza
violenta da perversão contra
o calor de todos aqueles que,
ardendo em febre, sofrem. Talvez
eu esteja aqui longe de um poeta
em busca da afirmação de um estilo,
de consolidá-lo por sua repetição ou,
enfim, do cansaço dele e da busca
de sua superação – questões, hoje,
para mim, demasiadamente
pessoais, individuais –, talvez eu esteja
aqui com você, com vocês, com um outro,
com outros, ainda que poucos, em busca
de uma intervenção, pequena que seja,
ou mesmo que não seja, mas
apontando para essa direção
como muito do que tenho tentado
fazer. Talvez eu assuma aqui
diversos pontos de vistas, inclusive,
os de meus piores inimigos, desde
os quais também falo para tentar retirar
suas armas, desarmá-los, ao expô-las.
Do meu lado, sem me preocupar tanto
com acertos e erros, eu, que,
praticamente, só tenho a escrita
para lutar, eu insisto. Eu insisto
no que me é necessário, eu insisto
no impossível e na insistência,
eu insisto na necessidade do impossível
da insistência. Eu insisto nisso
que o meu tempo requer. Aqui,
escrevo, talvez, como Josefina,
com minha voz se confundindo
com as vozes de uma incerta
comunidade, com as vozes
de um povo incerto que está
por aí, com as vozes
de uma imaginação pública,
com minha voz praticamente
se confundindo com outras
vozes quaisquer que me tomam.
Que essas vozes quaisquer
se confundam em mim
com outras que se destacam,
mas que igualmente me tomam
em uma superposição de vozes
para mim necessária. Não me
furtando ao que considero
a honestidade de pensar
o nosso tempo em meio
aos tenebrosos acontecimentos
pelos quais passamos, talvez
eu esteja, aqui, como
um cartógrafo do nosso tempo,
como um meteorólogo
dos acontecimentos do nosso tempo,
como um historiador das falas
de um presente a criar um antimuseu,
um ainda não museu, um menos
que museu, a criar um antimonumento,
um ainda não monumento, um menos
que monumento, alguns resquícios
de lampejos de uma memória
em movimento do nosso tempo,
sabendo que amanhã não será
um dia melhor do que hoje, que não é
um dia melhor do que ontem.
Àqueles que insistem em perguntar
para quê poetas em tempos
de coronavírus?, àqueles que insistem
em perguntar para quê filósofos
em tempos de coronavírus?, àqueles
que insistem em perguntar
para quê poetas e filósofos em tempos
de Bolsonaro e coronavírus?, àqueles
que há poucos dias insistiam
em dizer que não deve haver
investimentos em ciência
no país, que tudo deveria ser
importado, mas que agora
estão se borrando de medo
por não haver testes
nem vacinas para o vírus,
nem ventiladores pulmonais
nos leitos dos hospitais, nem
leitos disponíveis nos hospitais,
nem nos hospitais particulares,
e que estão seguindo à risca
a recomendação dos cientistas,
ou àqueles que seguem
não levando a ciência em conta
e, claro, tampouco, muito menos,
a poesia e a filosofia (ainda que leiam
a Bíblia cotidianamente), àqueles
que seguem fazendo carreatas
em favor da pandemia, que seguem
dançando morbidamente com caixões,
àqueles que, assustadoramente,
não conseguem olhar minimamente
para o outro nem para o real, àqueles
que acham que você só deve
se preocupar com o que está
a um palmo do nariz, se tanto,
ou somente com o próprio
nariz, àqueles que infelizmente
não conseguem ler minimamente
o que se passa, saibam que vocês
estão no mundo em companhia
de pessoas como Alexander
Lukashenko, presidente
da Bielorrússia, de Gurbanguly
Berdymukhamedov, ditador
do Turcomenistão, Daniel
Ortega, presidente da Nicarágua,
John Magufuli, o presidente
da Tanzânia, que pediu ao povo
que rezasse pois o vírus
“não pode sobreviver
no corpo de Cristo”, e, claro,
de Jair Bolsonaro, o pior
dos homens, o populicida
em quem vocês votaram neste país
que luta (parece que em vão)
para se livrar de toda essa ignorância
que vocês insistem em querer
preservar para vocês e para o país.

V

Não. Amanhã não será um dia melhor
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem. A cada dia,
o ministro da saúde oscila
entre ceder às barbaridades
do presidente e contradizê-lo.
Finalmente, ele disse que, se
o presidente (como tem feito
desde que, ele próprio, suspeito
de ser portador do vírus,
foi à manifestação convocada
por ele mesmo à sua base
de apoio para ir à rua
defender o fechamento
do Congresso e do Supremo
que, aliás, até o momento
da pandemia, vinham sendo
inacreditavelmente cúmplices
de suas – e de seus filhos –
inconstitucionalidades),
pois bem, o ministro finalmente
parece ter dito ontem para o presidente
não menosprezar a gravidade
da situação em suas manifestações
públicas, para o presidente pensar
se “estamos preparados para ver
caminhões do exército transportando
corpos pelas ruas com transmissão ao vivo
pela internet?”, para o presidente
não mentir em público
dizendo que temos o remédio
do vírus se ainda não o temos,
que, se ele insistir em dizer
que a cloroquina cura
sem qualquer evidência científica,
que, se ele, presidente, insistir
em falar que o coronavírus
é uma gripezinha ou um resfriadinho
qualquer, que, se ele insistir
em pegar um metrô ou um ônibus
em São Paulo, como disse que fará,
que ele, ministro, será obrigado
a criticá-lo em público, ao que
o presidente miliciano, o sociopata
que governa esse país desde o princípio
em nome apenas da pulsão de morte
e da perversidade (como suas ações
mesmo antes de governar), rebateu
dizendo, de modo sempre totalitário,
que, se isso acontecesse, ele, presidente,
iria demiti-lo, demitir o ministro da saúde.
Vinte e quatro horas depois disso,
hoje mesmo, agora há pouco,
o presidente assassino fez um tour
por Brasília, por Taguatinga, Ceilândia
e Sobradinho, por padarias, pequenos
comércios e pelo hospital do exército,
conversando com vendedores
ambulantes, juntando várias pessoas
em torno de si, indo, com sua gangue,
a diversos lugares… Veremos
se o ministro da saúde
virá mesmo a público criticar
seu cupincha, o ministro que,
diga-se, sendo há anos do grupo
do presidente, apoia os ruralistas,
foi contra a demarcação das terras
indígenas, é contra o aborto, foi contra
o programa Mais Médicos, lamentou
a lei do divórcio, votou a favor da PEC
do teto dos gastos, posicionou-se
contra o SUS, votou a favor da reforma
trabalhista e foi um dos deputados
federais que votaram “sim”
pelo impeachment de Dilma Rousseff
levando o país não a uma trágica
situação – Bolsonaro não tem nada
daquele outro tirano, Édipo –,
mas verdadeiramente a uma situação
de filme de terror, na qual,
até o momento, parecemos ser
as vítimas, meros figurantes
violentados desse governo, sem conseguir
esboçar qualquer reação. Reação
ao presidente miliciano, quem
conseguiu esboçar não foi,
infelizmente, nenhum partido
de esquerda nem nenhum movimento
social (enfraquecidos conjuntamente
pelo antipetismo fabricado há anos
diariamente pela mídia, pelo
Congresso, pelo Supremo
com tudo o mais, para conseguir
o impeachment de Dilma e a subsequente
condenação de Lula – sim, o bolsonarismo
é, em grande parte, a construção calculada
do antipetismo), mas quem de fato conseguiu
esboçar uma reação foram governadores
de direita, aqueles que vieram do grupo
miliciano do presidente, aqueles
que foram eleitos beneficiados
pela enxurrada de fake news
que levaram o genocida à presidência,
aqueles que cortaram verbas da saúde,
da educação e da cultura, aqueles
que aprovaram o teto de gastos,
que tramaram o desmonte
da proteção jurídica e social
dos trabalhadores, que instauraram
a precarização do trabalho
com as mãos do Estado
a desregulamentá-lo e flexibilizá-lo,
aqueles que querem privatizar tudo
o que dá lucro ao Estado
para aumentar as suas fortunas
individuais e a de seus grupos,
aqueles que querem a participação
da iniciativa privada
na gestão pública, aqueles que,
latifundiários da bancada ruralista,
preservam escravos em suas fazendas,
matam indígenas, invadem terras
que não são suas, destroem florestas,
aqueles que governam
por suas superexposições diárias
em redes sociais direcionadas
por marqueteiros do momento
que eles mesmos são, aqueles
que querem acabar com a previdência
de servidores, aqueles
que já roubaram cobertores
de moradores de rua em quem
igualmente já jorraram jatos de água
fria sobre seus corpos desnudos, aqueles
que propuseram dar ração, ao invés
de comida, para crianças de escolas
públicas, aqueles que tentaram acabar
com a cracolândia na base da bala,
que demoliram paredes de prédios
com pessoas dentro deles, aqueles
que já subiram em helicópteros
com snipers atirando contra a população
que mora em comunidades ou favelas,
aqueles que disseram que têm de acertar
na cabecinha (e acertaram), aqueles
que comemoraram dando um soco
no ar, como se fosse um gol
de um time de futebol, a ação
de um atirador de elite do Bope
sobre um perturbado mental
com inclinações psicóticas (como
disseram psicólogos levados ao local)
que havia sequestrado um ônibus
com um falso revólver, aqueles
que disseram que “algumas pessoas
estão dizendo que comemorei a morte,
não, eu comemorei a vida”, aqueles
que disseram que “os profissionais
da violência somos nós”, querendo dizer
por esse “nós” exatamente “os militares
e o uso da força pelo Estado”, aqueles
que, antes mesmo de se elegerem vice-
presidentes, já falavam em dar
um possível autogolpe do presidente
com o apoio das forças armadas,
aqueles, portanto, para quem,
de diversos modos, de todos
os modos, o que entendem por vida
é exatamente a morte, a violência,
aqueles que não têm o menor pudor
em realizar uma necropolítica literal
e neoliberal, ou ainda,
uma necrocracia e um necroliberalismo
literal e em todos os sentidos.
Nesse momento, foram eles,
e alguns ministros que, agora,
se afastam do presidente,
que conseguiram uma reação, foram
eles que saíram e continuarão saindo
fortalecidos com a – inevitável – queda
de popularidade do presidente, foram
eles que passaram uma imagem
mais ponderada do que a do presidente
e, consequentemente, não são
menos perigosos, mas talvez sejam
ainda mais perigosos
que o atual presidente, porque perdurarão
mesmo depois de o presidente
e sua família assassina caírem.

VI

Não, amanhã não será um dia melhor
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem – já sabíamos
disso e dissemos
quando achamos necessário
dizer. O certo é que, apesar
de necessário, não é fácil
responder a esse momento
avassalador, em que conspiram
para nos calar, o certo é que é preciso
que, mesmo com um quinto da população
do mundo em quarentena, ou seja,
com algo em torno de 1,7 bilhão
de pessoas em isolamento onde podem
estar, não nos calemos, mesmo que tenhamos
de berrar pelas janelas, mesmo que, lentos,
tenhamos de pedir várias ajudas
para conseguir falar, mesmo que tenhamos
de pedir ajuda a um dos mais antigos poemas
e dizer: “Agora, nada é espantoso, inesperado
ou impossível, desde que Ares, senhor
da guerra, enviou mais um vírus
a se espalhar pelo mundo e o úmido
temor domou os homens. E tudo então
tornou-se crível e possível. Ninguém
fique espantado com o que quer
que venha a acontecer […]”. O que virá
a acontecer? Uma queda? Um golpe?
Um autogolpe? Uma revolução
autoritária? Um isolamento
do presidente, que ficará falando
sem governar? Mais arrochos? Prisões?
Demissões em massa? Mais miséria?
Dezenas de milhares de mortes?
Centenas de milhares? E o que
ocorrerá pelo mundo afora? O que
vem por aí? O quê? Sim, é estranha
e deslocada a evocação a Ares,
mas é o que diversos líderes mundiais
estão, mais uma vez, dizendo,
com a mesma ladainha de sempre:
que se trata, mais uma vez,
de guerra. Dessa vez, até o secretário
geral da ONU declarou: “A covid-19
é o nosso inimigo comum. Temos
de declarar guerra a esse vírus”.
É guerra. Eis a guerra. É guerra por lá,
por aqui, por aí, por sei lá onde,
por toda parte. As armas estão
todas apontadas diretamente
para os nossos corpos que,
não tendo imunidade ao vírus,
são passíveis de contaminação
mesmo em nossas – já impossíveis –
solidões mais ou menos reclusas.
Talvez, então, o presente seja
um modo solitário de ser comunitário.

VII

Mais uma vez, é guerra. É guerra.
É guerra, desta vez, sanitária.
Eis a guerra. Países interceptam
máscaras, respiradores, luvas
que iam para outros países. É guerra.
É guerra sanitária. É guerra por lá,
por aqui, por aí, por sei lá onde,
por toda parte. “Estamos em guerra”,
disse o presidente francês, “estamos
em guerra”, “em uma guerra sanitária”,
“não estamos lutando nem contra
um exército, nem contra outra nação.
Mas o inimigo está lá, invisível,
imperceptível e avançando.
Isso exige mobilização geral”. Esse
mesmo presidente entende “mobilização
geral” como confisco de equipamentos
que iam para outros países e, ao fazer escala
em seu país, foram apreendidos, digo,
roubados. Outro presidente, da nação
mais poderosa do Ocidente, redirecionando
para si mesmos equipamentos médicos
de combate ao vírus que tinham
como destino outros países, disse:
“Precisamos das máscaras. Não queremos
outros conseguindo máscaras. É por isso
que estamos acionando várias vezes
o ato de produção de defesa. Você pode
até chamar de retaliação porque é
isso mesmo. É uma retaliação”.
Os Estados Unidos compram, na pista,
por três ou quatro vezes o valor vendido,
carregamentos de aviões em aeroportos
chineses que iam para outros países,
fazem embargos impedindo o equipamento
de chegar ao país que, em sua alta diplomacia
médica, envia dezenas de milhares de médicos
para colaborar com dezenas de países do mundo.
Em Ankara, a Turquia sequestra avião
que levava máscaras, protetores
e respiradores da China para a Espanha.
A República Tcheca apreende máscaras
e respiradores que iam da China,
como “ajuda humanitária”, para a Itália.
Tailândia bloqueia máscaras que iam
para a Alemanha. Horst Seehofer,
ministro do interior do governo
de Angela Merkel, confirma que
Donald Trump tentara comprar
a vacina em desenvolvimento
em um laboratório da Alemanha
para que fosse usada apenas pelos EUA.
Médicos franceses querem que vacina
seja testada na África, repito,
não em franceses, mas em africanos.
Mais uma vez, é guerra. É guerra.
É guerra sanitária. Eis a guerra.
É guerra por lá, por aqui, por aí,
por sei lá onde, por toda parte.
E nossos corpos não têm qualquer
imunidade para a guerra, para o que
hoje se entende por política. Não,
amanhã não será um dia melhor
do que hoje, que não é
um dia melhor do que ontem.

VIII

Não, Iraj Harirchi, mesmo que você
tenha contraído esse vírus, ele NÃO
é democrático e faz SIM distinção
entre ricos e pobres, entre estadistas
e cidadãos comuns. Se a doença
e a dor atingem a todos, mesmo a você,
a Boris Johnson e à Rainha Elizabeth,
elas atingem aos pobres de maneira
muito pior; os estadistas sempre terão
todos os meios de proteção, os melhores
hospitais, assistências e tratamentos
à disposição. NÃO, Zizek, mesmo
que você goste de umas boutades
muitas vezes engraçadas e benvindas,
dessa vez, quando você disse que,
nisso, Iraj Harirchi “estava certo,
estamos todos no mesmo barco”,
acrescentando “efeitos secundários
potencialmente benéficos” da pandemia,
usando como “símbolo” de tais “efeitos
secundários potencialmente benéficos”
os “enormes navios de cruzeiro,
o que me tenta a dizer que este é o fim
da obscenidade de tais navios”,
com você deslizando da metáfora
do barco ao símbolo do navio,
não tenho como não pensar, antes,
nos efeitos maléficos, primários,
do vírus nas favelas conglomeradas,
nas periferias superlotadas, nos mais
de 30 milhões sem água encanada,
sem esgoto, sem comida, sem nada,
na população de rua, maior do que nunca,
nesses em quem as doenças crônicas
(hipertensão, diabetes etc.) são majoritárias,
nas aldeias indígenas tão suscetíveis,
nos presídios com celas abarrotadas,
transbordadas de gente, naqueles que
de maneira alguma podem parar
de trabalhar, naqueles que
de maneira alguma permitem
que parem de trabalhar, naqueles
que precisam de seus trabalhos
informais… Ainda que o vírus
possa causar uma variação
nessa lógica, você sabe muito bem
que quem organiza a decisão
dos que vão viver e dos que vão
morrer é o dinheiro ou, para ser mais
preciso, o capital. O Brasil
é o segundo país mais desigual
do mundo, praticamente empatado
com o primeiro – aqui 5 bilionários
detêm a riqueza de 100 milhões
de pessoas, ou seja, da metade
mais pobre da população. Acabo
de saber que os bairros e lugares
pobres do Rio e São Paulo
já estão com uma taxa de letalidade
dez vezes maior do que as regiões
mais ricas, fazendo com que o risco
seja inversamente proporcional
à renda. Acabo de saber que nos EUA
enquanto há mais de 30 milhões
de novos desempregados, a fortuna
dos bilionários aumentou na crise
mais de 300 bilhões de dólares.
Acabo de saber que, no Brasil,
enquanto 58 milhões de pessoas
que ganham até R$500,00 por mês
perderam pelo menos metade
de suas rendas e, dessas, 14,5 milhões
ficaram sem qualquer renda,
o segundo homem mais rico do país
disse que “O que eu gosto mais,
francamente, é que toda crise
traz oportunidades”. Francamente,
não, não estamos todos
no mesmo barco. Se, como disse
o amigo indiano de Nancy
com toda ironia (com a ironia
que o nosso infame chanceler,
criticando você, Zizek, e usando
o termo de Nancy, não soube ver),
o vírus pode ser um “comunovírus”
e não um “coronavírus”, se,
vindo, supostamente, do comun-
ismo, caberia ao comuno
decapitar a coroa (o corona),
a resposta a ele depende, de certo,
de inúmeros fatores e modos de vida
– a coroa não será decapitada assim
tão facilmente pelos comuns.
Mas não se tem certeza ainda
de onde vem o vírus, e creio
que demoraremos muito a saber
se, de fato, o primeiro caso veio,
como parece, do mercado de animais
silvestres, típico no Oriente, de Wuhan,
na China, ou de qualquer outro lugar
do mundo; talvez, isso nem seja
o mais importante, talvez isso seja
pouco importante. Talvez isso
seja muito importante, determinante
mesmo, não sei. Hoje, são tantos
os inimagináveis modos de guerra
para a guerra econômica em curso…
Lembrando que, já sabendo do vírus,
mas antes de a cidade ser colocada
em quarentena, 5 milhões de pessoas
saíram de Wuhan por ocasião das férias
do Ano Novo Chinês e por medo
da epidemia, o mais importante
parece ser a globalização que provocou
a tão rápida propagação do vírus
via turistas e empresários
pelo mundo afora, as aglomerações
urbanas cada vez maiores e a destruição
da natureza, sobretudo pelo agronegócio,
que, descomplexificando-a, gera a extinção
de muitos animais deixando os vírus
sem hospedeiros e fazendo com que eles,
nas bordas das florestas, cada vez menores,
com as cidades, cada vez maiores,
desses circuitos periurbanos, desses
limites da produção do capital, saltem
globalmente para nós, transbordem
para nós, transfiram-se zoonodicamente
para nós que não temos defesas
estabelecidas contra eles nem contra
muitas coisas. Em todos os casos,
não é o morcego nem o – menos provável –
pangolim, possível intermediário
entre o morcego e o homem, os responsáveis
pela propagação do coronavírus
e de outros milhares de patógenos
emergentes e reemergentes, mas
nós, sempre nós, nós que também
reproduzimos industrialmente
animais nas piores situações. Somos nós
os responsáveis, e não o coronavírus,
a peste suína africana, o Campylobacter,
o Cryptosporidium, a Cyclospora,
o Ebola Reston, o E. coli0157:H7,
a febre aftosa, a hepatite E, a Listeria,
o vírus Nipah, a febre Q, a Salmonella,
o Vibrio, a Yersinia e novos tipos
de gripe como H1N1, H1N2v, H5N1,
H5N2, H5Nx, H6N1, H7N1, H7N3,
H7N7, H7N9, H9N2… Somos nós,
sempre nós. Além do mais, Zizek,
para continuar com o deslizamento
da metáfora ou de seu símbolo, soube
hoje que, na insuficiência de leitos
hospitalares, há cidades que estão fazendo,
de navios, hospitais, acompanhados
de batedores. É bem verdade que,
em uma entrevista que leio agora, pouco
mais de um mês depois da publicação
daquele seu texto mencionado, você
– conscientemente ou não – parece
ter se retratado, ainda que de uma maneira
irresponsável, precisando, no lugar
de se referir ao que você mesmo
havia escrito, criticar uma outra pessoa,
no caso, uma mulher, uma popstar,
ao dizer: “Penso no egoísmo
dos superricos fechados em seus bunkers
ou em iates. Madona postou um vídeo
na banheira dizendo que estamos todos
no mesmo barco. Não é assim
e as pessoas veem a situação.
Os novos heróis são as pessoas comuns”.

IX

Enquanto, sem qualquer passaporte,
dissimulado no corpo das pessoas,
sem passar individualmente
por nenhuma biometria nem
por ela ser acusado, sem qualquer
marca digital, sem ser parado
pela polícia federal, sem fotografia facial,
sem ser parado por qualquer vigilância
digital, necessitando de seus hospedeiros
sem os quais ele é inerte,
sem ser aprisionado em campos
de refugiados, sem ser morto
ou assassinado como os imigrantes
nos barcos pelo Mediterrâneo,
sem qualquer respeito aos territórios
nacionais, sem precisar se esconder
em cavernas no Afeganistão
nem em esconderijos subterrâneos
na cidade de Al Daur, enquanto
o vírus atravessa rapidamente
todas as fronteiras, isolando-nos,
contraditoriamente, em quarentena,
como modo de proteção, em nossos
espaços privados, isolando-
nos em uma espécie de paralisia
afetiva, social e econômica, enquanto
isso, há multidões, frágeis, que,
não podendo se isolar, seguem
e continuarão seguindo expostas,
trabalhando em caixas de super-
mercados, entregas, farmácias,
fábricas, transportes públicos,
abastecimentos, hospitais… Todos
que se expõem para muitos
não se exporem, todos que deveriam
ser considerados profissionais da saúde,
pois cuidam da saúde de muitos.
Esse parece ser um dos senso-comuns
do momento, uma das frases
mais repetidas: que a pandemia
afeta igualmente a todos, que todos
somos, perante o vírus, efetivamente
iguais, que o vírus não discrimina,
que todos estamos no mesmo barco,
o que todos dizem sem conhecer
os lugares mais pobres, com maior
densidade de pessoas nos menores
espaços, o que todos dizem sem
conhecer tampouco os lugares mais
ricos, mas o vírus mostra mesmo,
como Butler nos disse, que “a comunidade
humana é igualmente precária”, como
também vemos, como ela disse,
que “a chegada de empreendedores
ávidos para capitalizar em cima
do sofrimento global” testemunha
“a velocidade com a qual a desigualdade
radical” encontra “formas de reproduzir
e fortalecer seus poderes
no interior das zonas de pandemia”.
Sabendo relativizar o que Zizek,
ao menos a princípio, não relativizou,
Butler disse: “A desigualdade social
e econômica assegurará que o vírus
discrimina. O vírus, por si só, não
discrimina, mas os humanos seguramente
o fazemos, modelados como estamos
pelos entrelaçamentos dos poderes
do nacionalismo, do racismo,
da xenofobia e do capitalismo”.

X

Zizek, é certo que, mesmo que
com mais controle, os cruzeiros
continuarão a existir, como é
mais certo ainda que os bilionários
de verdade não estão nesses
cruzeiros que você abomina, mas
com suas famílias em seus iates
pelas praias da América Central. Pior,
ainda pior, muito pior, é certo também
que as favelas continuarão existindo.
Isso aqui não é um cruzeiro
internacional de férias ou de aposentadoria
de alguns milionários, isso aqui é muito mais
do que um cruzeiro internacional de férias
ou de aposentadoria de alguns milionários
ou de quem mais pode estar por ali
a ser usado como símbolo para alguma coisa,
isso aqui não é a fuga com iates para praias
paradisíacas de meia dúzia de bilionários.
Isso aqui não é tampouco Kill Bill
nem nenhum outro filme de Tarantino.
Isso aqui é o real do Brasil e de muitos
outros países como o nosso. Desculpe-me,
Zizek, mas, com toda a admiração,
não consigo pensar que sairemos dessa
com uma “sociedade alternativa”, com
“uma sociedade que se atualiza
sob a forma de solidariedade
e cooperação global”. Não aqui, meu caro.
De modo algum, parece-me que sairemos
mais próximos uns dos outros: sairemos,
parece-me, mais isolados, mais separados,
mais desconfiados, mais vigiados,
cada um buscando por si sua sobrevivência.
Aqui (não só aqui, claro), estamos
mais próximos do que Preciado falou:
“A gestão política das epidemias
põe em cena a utopia de comunidade
e as fantasias imunitárias de uma sociedade,
externalizando seus sonhos de onipotência
de sua soberania política”. Se conseguiremos
“inventar novas estratégias de emancipação
cognitiva e de resistência”, não sabemos,
é uma questão que permanece aberta.

XI

Aqui, mais do que em qualquer outro
lugar do mundo, o presidente jogou
desde sempre a favor das bombas
e da bala para matar a população,
a favor da Bíblia para entorpecer
a população, a favor do boi para roubar
(as terras d’)a população, a favor
do BBB para não dar chance
à população, a favor de decretos
para matar a população, como joga
agora com o vírus para matar
a população como mais um meio
de viabilizar seus crimes contra o povo.
Aqui, até o vírus é um terrorista
a favor do Estado contra a população.
Estamos no começo desse pânico,
com as estimativas mais esdrúxulas
e ainda no início dos acontecimentos
que vêm. Conheço pessoas que moram
em favelas e estão apavoradas,
elas estão entre a necessidade
de ficar em casa, entre o toque
de recolher instaurado pelo
Comando Vermelho,
e a necessidade do trabalho
para o ganha pão diário. Não,
amanhã não será um dia melhor
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem.
Como também disse Butler,
“É provável que, no próximo ano,
sejamos testemunhas
de um cenário doloroso em que
algumas criaturas humanas
afirmarão seu direito de viver
às expensas de outras, voltando
a inscrever a distinção espúria
entre vidas dolorosas e ingratas,
aqueles que a todo custo
serão protegidos da morte
e essas vidas que se considera
que não vale a pena que sejam
protegidas da enfermidade
e da morte. […] Por que seguimos
opondo-nos a tratar todas as vidas
como se não tivesse o mesmo
valor?”. É a vida, afinal, um direito,
sobretudo, dos economicamente
privilegiados? Não é hora
de pleitear com todas as forças
uma luta contra a desigualdade
das chances de viver?
Nesse mundo de asfixia
e esgotamento, em que, havendo
uma “desigual redistribuição
da vulnerabilidade”, há uma desigual
redistribuição do fôlego, em que a vida
é mais ofegante para uns do que
para outros, a questão do momento,
a questão de sempre, é, de fato,
como também disse Mbembe,
a questão de sempre, mas ainda mais
a questão do nosso momento,
é encontrar imediatamente “uma maneira
de garantir que todo indivíduo tenha
como respirar. Essa deveria ser
a nossa prioridade política” recompondo
“uma Terra habitável” que “poderá
oferecer a todos uma vida respirável”.
Sem um pouco de ar, todos
nós sufocamos, sem bem mais
do que apenas um pouco de ar,
quase todos nós sufocamos,
sem muito ar disponível
para respirarmos, nenhum
de nós conseguiremos viver
da maneira que devemos,
da maneira que podemos viver.

XII

Quem diria que, aqui,
no Brasil, chegaríamos ao dia
em que seria o isolamento,
não a multidão, o confinamento,
não as ruas, a interrupção, não
o movimento, a frenagem,
não a velocidade, o estancamento,
não a continuidade, a reclusão,
não a exposição, a cesura,
não a sequência, a suspensão,
não a segurança, o tranco,
o solavanco, o tropeção, os gestos
para lutarmos pelo direito
de que todo indivíduo tenha,
mesmo sem sair de casa,
como respirar, comer, trabalhar,
estudar, morar, cuidar da saúde
e da doença… Sempre achei,
como algumas vezes disse,
que, no discurso político,
tinha de ser trocado o que
chamam de “disputa de narrativa”
pela emergência de uma outra
lógica, de uma lógica do poético.

XIII

Hoje em dia, Agamben, mais
do que nunca, precisamos respirar
fundo, aprender a respirar
diante do que diariamente quer
nos sufocar. Há muito sabemos
que o pensar é um sopro
na linguagem, que aprender a pensar
é aprender a respirar. Isso nos parece
um exercício cotidiano de aprendizagem
de lentidão, mas também aprendemos
esse outro exercício, o de, no calor
da hora, correr os riscos que entendermos
necessários. Há amigos que dizem
que seus textos recentes são para ser lidos
daqui a anos; sem negar essa possibilidade,
seus textos estão sendo escritos nesse momento,
para esse momento, querendo ser lidos,
se depois, certamente também, e talvez
sobretudo, agora, de modo interventivo,
já que é agora que se trabalha a decisão
do futuro. Nunca vi você publicizando
repetidamente tantos textos breves
em intervalos tão curtos de tempo,
nessa ânsia de quem, desde o começo,
flagrou a importância do que estava
acontecendo, do que viria a acontecer
e a necessidade imediata de uma
resposta possível de seu pensamento
a esse acontecimento que nos assola.
Como você sabe muito melhor
do que a maioria, baseado apenas
nos primeiros números estatísticos
de um governo cuja epidemia chegou
depois, sobretudo, sem ter ido ver
como se deu o comportamento do vírus
em outros países em que ele se disseminara
anteriormente, não se deveria dizer
com muita pressa: “Em face da medida
de emergência frenética, irracional
e totalmente infundada
de uma suposta epidemia”. Em todo caso,
Giorgio, respirando constantemente
com a tranquilidade e a lentidão que poucos
têm, você também disse, com arguta
perspicácia, que, hoje em dia,
em termos mundiais, o discurso
do vírus ocupa o lugar deixado vazio
pelo discurso do terrorismo,
pelo terrorismo esgotado como causa
de medidas emergenciais, fazendo com que
cada cidadão, um possível infestador,
seja tratado como um terrorista potencial.
Para você, Agamben, trata-se, mais uma vez,
de uma falsa lógica, em que a liberdade
deveria ser suprimida para ser
defendida, em que a vida deveria ser
igualmente suspendida para ser
defendida. Sei que você tem falado
muito para a Itália, mas, aqui, no Brasil,
é um pouco diferente: o cidadão não é
um potencial infestador criminalizado
pelo Estado, muito pelo contrário,
aqui, o presidente diz que o cidadão
não é um potencial infestador
justamente para ele poder infestar
um número cada vez maior de pessoas,
ou diz que tem de haver logo
a infestação de 70% da população,
aqui, o presidente sai à rua, aglomera
cidadãos em torno de si, tosse, assoa
o nariz e, imediatamente em seguida,
dá a mão com que assoou o nariz
a uma idosa, a outro homem e a quem
mais estiver por perto. Aqui, precisa-se
de proteção contra um Estado
que desprotege à maioria, violentando-a.
Ou seja, aqui, inusitadamente, fazer
quarentena se tornou um gesto
de desobediência civil, já que, aqui,
o presidente negacionista de extrema
direita se tornou o arauto do direito
constitucional de ir e vir, das liberdades
individuais, da privacidade dos dados
telefônicos que monitorariam as pessoas
impedindo aglomerações para garantir
seu projeto autoritário, autocrático.
Não à toa, somos o segundo país do mundo
em descrença em relação à eficácia
do isolamento social, ou seja, aqui,
com bolsonaristas em portas de hospitais
exigindo o retorno de seus empregados
ao trabalho e às ruas, com bolsonaristas
agredindo profissionais da saúde
que lutam para salvar vidas
sendo aplaudidos pelo mundo todo,
aqui, com as vidas banalizadas,
o mundo, quer dizer, a economia,
dizem, não pode parar, mas,
finalmente, o mundo, ou seja,
a economia, está tendo não
que parar, mas que desacelerar,
o mundo vai ter de desacelerar,
mesmo aqui chegará o momento
de dizer o impossível, o inimaginável,
que o mundo desacelerou, que os tempos
modernos desaceleraram, mesmo que
por pouco tempo. Não é só aqui,
entretanto, que coisas assim ocorrem,
aqui é pior, bem pior, mas, a levar
em conta o que você escreve,
mesmo com, parece-me, um grande
exagero na formulação de uma
“vida puramente biológica”
e na perda de “todas as suas dimensões
[…]”, é no mundo inteiro que
“Os homens se acostumaram
tanto a viver nas condições de crise
e emergência perpétuas
que parecem nem mesmo notar
que suas vidas foram reduzidas
a uma condição puramente biológica
e perderam todas as suas dimensões,
não só as sociais e políticas,
mas até as humanas e afetivas”.
Se o campo de concentração é,
para você, o paradigma de nosso
tempo, não, nós não vivemos
como os muçulmanos, isso é certo,
nem como os que estão detidos
em Guantánamo ou em Abu Ghraib,
nós estamos envolvidos em leis,
julgamentos, lutas, vidas afetivas,
relações amorosas, responsabilidades
íntimas e públicas, conversas, leituras,
escritas, afazeres de casa, trabalhos,
redes de solidariedades, direito ao grito,
esforços de luta política e outras
coisas que escapam ao campo
de uma “vida meramente biológica”.
Como já disseram, a própria decisão
em tentar não se contaminar
já escapa ao “meramente biológico”.
Estamos muito mais para sobreviventes
que teimam diariamente em sobreviver
do que para muçulmanos, isso é certo.
Retrucando ao seu primeiro texto,
Nancy disse algo que também está
distante de nós, pois aqui o governo
está longe de ser “nada mais que tristes
executores, e atacá-los parece mais
uma manobra de distração
que uma reflexão política”. Aqui,
a política do governo é outra,
se é que há política, e, dentro
que estamos de outras “manobras
de distração”, nem conseguimos atacar
o governo como deveríamos. Aqui,
é antes o governo que nos ataca
incessantemente, aqui, não há
qualquer medida emergencial
de proteção, aqui, Giorgio, o Estado
gastou 5 milhões em uma propaganda
chamada “O Brasil não pode parar”
convencendo as pessoas a trabalharem,
a irem às ruas, a frequentarem templos
e rezarem em igrejas lotadas, a pegarem
metrôs, ônibus, a irem aos bares
e restaurantes, a levarem uma vida
chamada normal, como se nada
estivesse acontecendo. Aqui,
o presidente e muitos pastores
(fortemente críticos da ciência,
mas não do capitalismo,
ferrenhos defensores da religião,
com direito ao terraplanismo,
ao criacionismo e a coisas afins),
levando multidões às igrejas,
dizem que a cura é ir ao culto,
que a cura do vírus viria do culto
nas igrejas, e alguns deles, agora
contaminados, ao invés de irem
para suas igrejas se curar,
vão para os melhores hospitais
da cidade tomando o lugar
de muita gente que, jamais achando
que a igreja seria o lugar de cura,
precisaria de tratamento. Aqui,
quando perguntado sobre o número
de mortos por causa do covid-19,
o presidente respondeu: “Não
sou coveiro”. Apesar de toda
aquela convocação à normalidade,
é preciso lembrar e relembrar
um grafiti em Hong Kong dizendo
“Não podemos voltar ao normal,
porque o normal era exatamente
o problema”. Aqui, Giorgio,
tentando encontrar uma maneira
de estabelecer seja um golpe
militar seja uma revolução
totalitária que permita a eliminação
dos adversários políticos e de quem
quer que se coloque à sua frente,
o Estado é o maior terrorista
a impor sua lógica de uma suposta
e falsa liberdade de circulação
para que a suposta liberdade seja
defendida visando apenas que a vida
do cidadão comum seja absoluta
e imediatamente suprimida
para salvar a economia, digo, salvar
empresários, os pequenos, médios
e os milionários, para quem
os lucros valem muito mais do que a vida
dos trabalhadores. A partir de mais
esse seu texto que acabo de ler, escrito
há pouquíssimos dias, intitulado
“Uma pergunta”, não tenho como não
me esquivar de, em busca de compreensão,
fazer também “uma pergunta” a você.
Parece-me evidente que você visa
outra posição da que participa
do que você chama de um colapso
ético e político ou do ultrapassamento
da soleira entre humanidade e barbárie
diante de uma doença, diante da pandemia
que vivemos, tratando-se, portanto,
da busca de uma outra ética
e de uma outra política, ainda que
aporéticas, ainda que, seja qual for
o salto dado, seja qual for o abismo
enfrentado, ele arraste a aporia
consigo. Quando você fala
que aceitamos algumas medidas,
como a de que não apenas seres humanos
queridos nossos morram sozinhos
mas também que cadáveres
sejam queimados sem quaisquer funerais,
como a de que nossa liberdade de movimento
seja limitada como nunca antes na história,
como a de que suspendamos, na prática,
nossas relações de amizade e amor
reiteradamente apenas e “unicamente
em nome de um risco
que não era possível de precisar”,
não tenho como não pensar que o risco
é explícito, evidente, bastando ver
o número progressivo, assombroso,
de contaminações e mortos pelo mundo
afora. Imagino que você sabe que,
nos Estados Unidos, em que o presidente
a princípio negava o perigo da pandemia,
e que agora, depois da cloroquina, sugere
injeção de desinfetante como cura,
já são praticamente 75.000 mortos,
quase ¼ dos mortos em todo mundo.
Nosso presidente, uma marionete de Trump,
segue-o em tudo, inclusive no negacionismo
inicial, ainda que não tenha voltado
nem tardiamente atrás. Com 10.000 mortos
e 150.000 contaminados (fora os subnotificados,
que, segundo pesquisadores, talvez sejam
10 ou 12 vezes mais), e encaminhando-nos
ainda para o pico por vir, com mais mortos
proporcionais do que a Itália e os Estados Unidos,
tentamos nos preparar para o que vem,
pois, para o governo, qualquer número
de mortos será naturalizado
enquanto a economia tiver respiradores
artificiais a mantê-la o mais viva possível,
afinal, como você nos disse, o capitalismo
é a religião do nosso tempo, a mais
implacável com seu culto ininterrupto
aquela que não pode parar nem quando,
voluntária ou involuntariamente, paramos.
Se, a princípio, entrando cedo no debate,
você falava, como já citado, na “medida
de emergência frenética, irracional
e totalmente infundada de uma suposta
epidemia”, você retorna agora,
e ainda, repetidamente, a esse
“unicamente em nome de um risco
que não era possível de precisar”,
insistindo nisso ainda hoje, nesse
passado que, dito desde o presente,
estende-se a ele. Para além do diagnóstico
preciso que oferece do que vem,
fico pensando em que alternativas
seu pensamento nesses textos traz
consigo. Ainda que um filósofo
não proponha uma ação a partir
de sua reflexão, esta aponta
para uma outra ética, para uma outra
política, decorrentes de um lançar-se
arriscado da vida de quem não se exime
da responsabilidade que suas posições
trazem. Por exemplo: você aceitaria
uma ética e uma política alternativas
à do ultrapassamento do limite
entre a humanidade e a barbárie
que levasse, hoje, as pessoas a uma proximidade
contínua, até o fim, com os contaminados,
realizando, inclusive, os rituais fúnebres
nos modos habituais? Você aceitaria,
hoje, uma não restrição à nossa liberdade
de movimento, ou seja, o fim do isolamento
social? Salvo situações específicas, você
aceitaria que mantivéssemos os encontros
físicos e presenciais com nossos entes
queridos exatamente do mesmo modo
que antes? Se nos responsabilizamos
por tais restrições, você chama atenção
para responsabilidades ainda maiores,
como a da igreja que, sob um papa
chamado Francisco, o santo que abraçava
leprosos, esqueceu de visitar os enfermos,
esqueceu que os mártires ensinam
que é necessário estar disposto
a sacrificar a vida em vez da fé.
Sob sua posição de que o papa
estaria sacrificando sua fé
quando deveria estar sacrificando
sua vida, fica, para mim, outra dúvida,
para além dessa sua valorização
ainda hoje do sacrifício: encontrando-se
com os doentes atuais, poderia o papa
sacrificar não apenas a sua vida, mas,
contaminando-se, transformando-se
ele próprio em alguém que contagiaria
inúmeras outras pessoas propagando
ele mesmo a doença, poderia ele, então,
sacrificar, não tanto a sua vida, mas
as vidas de outras pessoas, de multidões
de pessoas? “Uma pergunta” que então
lhe faço, em busca de deixar sua posição
mais clara para mim, Giorgio,
é se, em nome de uma nova medida
dos princípios éticos e políticos,
que não seja exatamente a abdicação
deles, em nome do limite além do qual
não estaríamos dispostos a renunciar,
você aceitaria que centenas de milhares
de vidas deveriam ser contaminadas,
mortas, tornadas matáveis por decisões
distintas das que majoritariamente vêm
sendo tomadas? Lembro que, aqui
no Brasil, os que já estão mais morrendo
são os periféricos, os pobres, os negros,
os indígenas, os matáveis de sempre.
Eu disse antes, entretanto, repito:
as áreas pobres do Rio de Janeiro
e de São Paulo têm uma taxa
de letalidade 10 vezes maior
do que as outras, a chance de negros
morrerem é 62% superior à dos brancos,
cujo rendimento médio mensal
entre os que trabalham é 73,9% superior
à de negros. Com toda a pertinência
de seu diagnóstico e de sua preocupação
com o depois, com a chamada fase 2,
com o agravamento que virá do estado
de exceção ou de emergência
como princípio organizacional da sociedade,
não tenho como não me perguntar o que,
para além da crítica a ações tomadas, você
encamparia nesse momento como atitudes
a partir de uma ética e de uma política
não colapsadas, que não ultrapassassem
os limites entre humanidade e barbárie.
Como eu estava dizendo, aqui entre nós,
o terrorismo biológico encontra
total apoio na gestão do terrorismo
e no terrorismo de gestão
a gerir a cada vez a vida
biológica. Aqui, como Esposito,
disse, “o estabelecimento da emergência,
há muito tempo aplicada
mesmo em casos em que não há necessidade,
empurra a política para procedimentos
excepcionais que podem, a longo prazo,
minar o equilíbrio do poder em favor
do executivo”, aqui, um risco
para a democracia não é para nós
nada exagerado, pois sempre vivemos
no risco disso que, aqui, nunca conseguiu
se consolidar e a cada momento
é impossibilitado. Aqui, não é possível
ou, ao menos, sempre beirou o impossível
“tentar separar os planos, distinguindo
os processos de longo prazo
das notícias recentes”, aqui, as notícias
recentes e as respostas governamentais
a elas apenas confirmam a maior parte
dos processos de longo prazo. Enquanto
Esposito afirma, que o que acontece
hoje aí “tem mais o caráter de uma
decomposição dos poderes públicos
que de um dramático aperto
totalitário”, aqui, onde o poder público
foi o mais das vezes decomposto,
o que se dá é exatamente, mais uma vez,
um “dramático aperto totalitário”.
Como você certamente concorda, Giorgio,
não, amanhã não será um dia melhor
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem.

XIV

Sou feito de nervos, carne, assombros
e muito do que olho me intoxica.
Nunca foi tão difícil olhar à minha
volta, mas, muito mais difícil é ver
o que olho. Hospitais a cada dia
mais lotados, mortes, pânico nos olhos
das pessoas, ameaças reais de mortes
por contágio familiar em muitos lares,
cemitérios cavando covas sem parar,
preços disparados do que se tornou
o mais necessário, decretos autorizando
demissões em massa, decretos autorizando
reduções da jornada de trabalho, decretos
autorizando cortes salariais de 30 a 50%
do funcionalismo público, decretos
para reduzir o isolamento, decretos
obrigando as pessoas a trabalharem,
decretos incluindo atividades religiosas
e casas lotéricas como essenciais,
decretos para dia do jejum, decretos
para a morte em nome da economia…
Decretos… Governa-se por decretos
e por fake news que saem diretamente
do planalto, dos filhos e dos aliados
do presidente em busca da salvação
de seu governo a qualquer preço,
mesmo ao preço de dezenas de milhares
de vidas, pois se trata de um governo,
como foi dito desde o começo,
literalmente altericida, populicida,
necrofílico, de guerra contra
o próprio povo, de destruição
irrestrita de todos (quase todos),
do Estado e de quase tudo o mais.
Diante das notícias falsas, dos falsos
sinais, das placas enganosas
por todos os lados a revestirem
direções já totalmente imprecisas,
difícil, mesmo impossível,
acertar qualquer localização,
qualquer rota, qualquer
destino. É preciso aprender
que não há mais localização,
nenhuma rota, nenhum destino
aonde se possa ir ou chegar.
Não há mais nenhuma revolução
à vista, nenhuma utopia e nem sei
se, por onde perambulo enceguecido,
existe uma saída esquecida ou a ser
criada. Por mais que eu tente,
minha voz não coincide
com o lugar em que estou,
levando-me a falar
da não coincidência
entre a voz, que desconheço,
e o lugar, que igualmente
desconheço. Nesse cotidiano
sem rumo em que vacilo, nada
que valha a pena ser
comunicado, mas, enquanto
não me canso, enquanto ainda
estou aqui, digo apenas
algumas coisas para dar voz
à perdição, dizendo que,
apesar de tudo,
como quem não cessa
de persegui-lo, sigo
no impasse de buscar
o real, inalcançável.
Sustentar esse impasse
me parece o mais
importante, o decisivo,
o de que não se pode
abrir mão. Talvez seja
este o meu erro. Nessa tensão
complexa entre os arranjos
das palavras e as coisas,
entre eles e o que se passa
por aí, nesse paradoxo
inultrapassável
porém irrecusável,
a linguagem muitas vezes
me afeta de maneira irreversível,
levando-me aonde não iria
sem ela. Se, às vezes,
a palavra resistência
me parece surrada, usada
para dizer aquilo
que não está à altura
do que nomeia, sigo
nessa insistência. Escrevo
apenas o que está perdido,
deixando o testemunho
desta quase cegueira.
Mesmo se houvesse
um guia e se o escolhido
fosse ninguém menos
do que o mais experiente
dos guias do passado
(no presente, como se sabe,
não há mais guias), eu
– nem ele, o guia –
não acertaria o caminho,
que nem existe mais.

XV

O presidente continua falando, mas, com sua palavra autoritária que certamente performa, apesar de tudo, não governa sozinho. Há um embate de forças que compõem o poder. Quem coordena a junta militar ou o chamado partido militar, em harmonia negociada com o presidente, quem articula a política do governo, é o chefe da Casa Civil que, pela primeira vez em quatro décadas da história do país, é um general, que foi o interventor federal no estado do Rio de Janeiro quando Evaldo dos Santos Rosa e sua família foram fuzilados com 257 tiros pelo exército ao se dirigirem a um chá de bebê. Ele é o mesmo que, invertendo a fórmula de Clausewitz, afirmou que a política é a continuação da guerra por outros os meios, indicando exatamente o que ocorre entre nós, que a política vigente (com o uso das múltiplas mídias, da financeirização, do privativismo, do judiciário, do policialesco, do alto e baixo militarismo – nem sempre juntos –, das milícias…) é uma guerra contra a população. Com ele, mostrando que vivemos um estado de guerra em que os civis estão sob controle, o Palácio fecha seu círculo militar. Como o então candidato prometeu em sua campanha, voltamos quarenta anos. Os militares presidem o país. O presidente, que, mostrando seu desprezo pelas instituições, nem a partido político é filiado, continua falando pelas redes e mídias sociais para os neofascistas que o apoiam, instigando-os a fecharem o Congresso, o Supremo, a colocarem um fim no isolamento, a bloquearem os acessos a hospitais… Com as instituições há muito permitindo chegar aonde chegamos, estamos entre o exército no poder, os necroliberais, o mercado, os empresários da FIESP, o judiciário, a extrema direita, as milícias, as polícias militares, os neopentecostais a manipularem a verdade como absoluta em nome de dinheiro e de poder, muitos desses grupos seguidamente insuflados pelo presidente que não preside sozinho, mas atua violentamente. Não havendo unidade entre esses grupos, a disputa é feroz e diária. Com o embate de forças que levou à queda do ministro da saúde para a posse de um outro que se alinhasse – leia-se, se submetesse – completamente ao presidente negacionista, com o presidente nos dias seguintes atiçando de cima da caçamba de uma caminhonete no Dia do Exército em frente ao Quartel General da guarda em Brasília um grupo de seus adeptos fanáticos a pleitearem um golpe militar, o fechamento do Supremo, do Congresso e um novo AI-5, tentando com isso encurralar também o exército, o vice-presidente acabou por dizer: “Está tudo sob controle. Só não sabemos de quem”. Uma coisa é certa: não do nosso.

XVI

Amanhã não será um dia melhor
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem.

XVII

Como quem busca um mínimo
vestígio dos mortos, uma linha
que nos possibilite algum modo
de convívio, ainda que mínimo
e desigual, um horizonte qualquer
de memória, uma contemporaneidade,
um caminho que nos leve até eles
ou os traga até nós, de todo modo,
que não os permita ir completamente
embora, que não nos permita ficar
para sempre sem suas histórias,
sem seus afetos, sem o que
pensaram, sem o que sonharam,
sem o em nome de que e contra
o que lutaram, sem seus testemunhos,
procuro, sem as encontrar, listas
com seus nomes, levando-me a crer
que eles são a cada vez anonimizados,
desprezados, relegados imediatamente
ao esquecimento. Há milhares de nomes
que deveriam estar disponíveis
em algum lugar para sabermos
quem são os mortos diretos e indiretos
pelo vírus e, sobretudo, pelo presidente
que se aproveita do vírus para matar,
mas, além de não sabermos seus nomes,
não sabemos, tampouco, e menos ainda,
os nomes dos subnotificados, daqueles
que passam por fora dos dados
oficiais, daqueles que o governo
não testa e que, mesmo se os testasse,
esconderia os resultados de todos nós.
Enquanto pesquisadores dizem que, aqui,
se sabe apenas algo em torno de 8%
dos casos de contágio e de morte
pelo covid-19, uma pesquisa
nos cartórios mostra que o número
de mortos pelo vírus é 154%
dos anunciados. Com sua política
de extermínio, o governo, que,
atuando e falando como quer
sem que ninguém o limite,
controla os dispositivos
sobre os vivos e os mortos, não fabrica
apenas os modos de matar, mas, agindo
segundo uma lógica da desaparição,
faz de tudo para apagar
a memória dos que morrem,
seus nomes, seus sobrenomes,
suas histórias, algo de suas vidas,
seus vestígios… Temos notícias
de pessoas que, como poucas
outras na história, nem podem ser
veladas por quem mais as ama,
nenhuma irmã, nenhum irmão,
nenhum pai, nenhuma mãe,
nenhum filho, nenhuma filha,
nenhum amigo, nenhuma amiga,
nenhum ou nenhuma amante
pode derramar suas últimas lágrimas
diante dos corpos nem as pode enterrar,
delas, dessas pessoas sem rituais
fúnebres, mortas em leitos de hospitais,
em quartos domésticos, pelo meio
das ruas, quase nada sabemos
senão, quando muito, suas inclusões
nas estatísticas, e, quanto à maioria,
nem nas estatísticas elas cabem.
Chega-nos a notícia de que um tio
da minha companheira morreu,
de que o pai de uma amiga morreu
e, assim por diante, as notícias
vão chegando, de pessoas que
seguem para a vala do esquecimento
público, para a vala da ignorância
política, para a perda dos laços
sociais que há muito, induzidos,
vamos vivendo. O tio falecido
da minha companheira, que morava
em Duque de Caxias, cujo índice
de mortalidade já é o dobro do da Itália,
e cujos cadáveres se acumulam no necrotério
do hospital pois os parentes não têm
condições de arcar com os sepultamentos,
chamava-se Barbosa, nem sabemos
exatamente o nome completo dele,
ele se chamava alguma coisa Barbosa,
José Barbosa Salles, descubro, agora,
o pai da minha amiga se chamava
Seu Tuninho, ou Antônio Luiz Pereira,
descubro igualmente agora,
eles foram as duas primeiras pessoas
próximas, bem próximas, que faleceram.
Seja nos navios negreiros, no genocídio
colonial de escravos negros e indígenas,
nos desaparecidos da ditadura
militar, nos assassinados pela polícia,
pela milícia, pelo narcotráfico, em todos
que acabam nas valas comuns,
no cemitério de escravos,
no cemitério de indigentes,
no cemitério de subversivos,
no cemitério de homicídios,
essas vidas perdidas, largadas
e não veladas foram sempre vidas
não contabilizadas. Do cozimento
em vida dos escravos aos micro-ondas
do tráfico passando pelos fornos
incineradores de corpos nas usinas
de cana-de-açúcar usadas pela ditadura,
com essas e todas as outras técnicas
conhecidas de desaparecimento
que nossa história cruelmente
foi capaz de produzir, poderia dizer
que, para nós, digo, para mim
e para você, tanto os desaparecidos
quanto os relegados – em vida e em morte –
ao esquecimento são aqueles
que diariamente nos fazem falta.

XVIII

[Se fosse uma tragédia grega, Tirésias entraria em cena e, como em Antígona, diria para Creonte: “Percebes que te abeiras de um abismo?”. Isso não é, entretanto, uma tragédia grega].

XIX

[Isto não é Tebas, isto é Brasil e, por isso, ao invés de Tirésias, eu, que não sou nenhum Sófocles, trago um emigrante haitiano anônimo, que, no dia 16 de março, disse para o presidente enquanto ele, vindo de uma manifestação pública a seu favor em plena pandemia, chegava à porta do Palácio, à porta da residência oficial em Brasília, com seus apoiadores gritando-lhe “Que Deus te abençoe” e “Mi-to, Mi-to”. Séria, pausada e convictamente, disse-lhe, então, o emigrante haitiano: “Eu venho de Haiti. Você sabe muito bem, eu escolhi o Brasil como país. Você está entendendo, eu estou falando brasileiro. Bolsonaro, acabou. Você está recebendo mensagem no seu celular. Todo mundo, todo brasileiro está recebendo mensagem no celular. Você está espalhando vírus e vai matar brasileiros. Você não é presidente mais. Precisa desistir. Bolsonaro, você não é presidente mais”.].

XX

O ministro da Justiça é pressionado a pedir exoneração e o faz dizendo em coletiva para a imprensa que o presidente, além de falsificar um documento, quis intervir no comando da Polícia Federal, instrumentalizando-a, para proteger a si e a seus filhos em processos em andamento no STF. Vazando – ele mesmo – áudios para os jornais de conversas com o presidente e com uma deputada, o ex-juiz de primeira instância que, manipulando completamente a Lava-Jato, foi uma das principais forças a inescrupulosamente destituir uma presidenta, prender o ex-presidente mais popular do país impedindo-o de se candidatar à presidência (quando todas as pesquisas apontavam sua vitória) e, finalmente, assumir ele mesmo o cargo de ministro da Justiça do candidato vencedor (ou seja, do candidato que ele fez com que ganhasse as eleições), realiza, com o gesto da exoneração, – isso é certo –, a tentativa de o golpe voltar às mãos de quem o deu, de consertar o desvio do golpe. Enquanto isso, o presidente fica, paradoxalmente, cada vez mais isolado e autocrático, cada vez mais solitário e poderoso.
Dias depois, presidente se reúne com a cúpula das Forças Armadas, vai, em seguida, a mais uma manifestação estimulada por ele contra o Congresso, o STF e o ex-amado ministro da Justiça (que prestara um depoimento à Polícia Federal incriminando o presidente), por um golpe militar, por um novo AI-5 e pelo fim da quarentena, proferindo publicamente, mais uma vez, como seu hábito recente dos domingos, duras palavras antidemocráticas, ameaçando uma ruptura institucional.

XXI

Não temos podido fazer
quase nada, senão
o que fazemos. Somos
da geração que foi
às ruas pelas diretas já,
somos da geração
que elegeu o operário,
líder sindical, como
presidente, somos
da geração que colocou
a primeira presidenta
no poder, ou seja,
a primeira mulher
na presidência
da República. Somos
da geração que acabou
com a dívida externa,
com a mortalidade
infantil, com a fome
e a sede no Nordeste,
com a miséria mais
miserável pelo país
afora, que tirou o Brasil
do mapa da fome
da ONU, os maiores
fantasmas nacionais
de minha infância
e adolescência. Somos
da geração que ameaçou
a hegemonia do dólar
com o BRICS, que
criou tecnologia
para extração de petróleo
destinando seu lucro
à educação e à saúde,
que colocou negros,
indígenas e pobres
nas universidades públicas,
que finalmente inseriu
a respeitabilidade
do país no mundo
fazendo-o ser ouvido
em decisões internacionais.
Mas não conseguimos
sustentar o sopro
do vendaval
que ajudamos a ventar,
não conseguimos fazer
a história seguir
o curso que muitos
antes de nós
lutaram para provocar.
Fomos interrompidos,
obrigados a recuar:
a peste reina no país,
não encontramos
forças para derrubar
o gabinete do ódio,
o escritório do crime,
o governo miliciano,
a presidência perversa
nem, sobretudo, as forças
que propiciaram
sua chegada até ali.
Muito é terrível e,
entre tudo o que é
terrível, o mais terrível
é o ser humano, que,
aterroriza até o terror,
barbariza até a barbárie.
O som de nossas vozes
deveria trazer um sopro
de pensamento a proteger
pessoas, animais, rios,
cidades, florestas, países,
oceanos, continentes, céus,
mundos, submundos,
sobremundos, cosmos…
Hoje, entretanto, a vilania
governa com seu raquitismo
de pensamento arrojando
acelerada e horrivelmente
todos à morte, mostrando
que nos iludimos na vida
quando nos esquecemos
da ameaça dos revezes
que nos mostram todos
os impasses dos passos,
todas as não passagens
por onde teríamos de
passar, mas empacamos
atônitos, assombrados,
com a vida parecendo
engano, com a vida
perecendo, só sombra
da morte, nada mais.
As pessoas morrem
aos milhares, às dezenas
de milhares e não vemos
como isso vai acabar.
Sabemos há muito
que nada entra de grande
na vida mortal
sem sofrimento,
mas sabemos também
da exaustão do sofrimento
sem (nem digo algo
de grande, mas sem)
qualquer alternativa a ele.
Apesar de sempre termos
tido nas famílias um tio
ou uma tia ou um primo
ou uma prima ou um pai
ou uma mãe que desejasse
a volta da ditadura ou votasse
consecutivamente
nos candidatos
forjados pela grande mídia
como salvadores, como
caçadores de marajás,
como algozes de adversários
políticos tratados, sem
provas nem escrúpulos,
como corruptos,
apesar de sabermos
do cruel conservadorismo
entranhado nas pessoas,
a verdade é que nem
de longe podíamos imaginar
essa reviravolta, esse retrocesso
sem fim, o sem fundo
do poço que vivemos.
Hoje, a Secretaria Especial
de Comunicação Social
do governo utilizou,
mais uma vez, em um vídeo,
um slogan nazista:
“Só o trabalho, a união
e a verdade libertarão
o Brasil”. “Arbeit macht
frei”, a frase colocada
na entrada de Auschwitz
e de outros campos
de concentração,
utilizada, aliás, já
no discurso de posse
de Temer, o vice-presidente
golpista, ao assumir
a presidência, quando disse
“Não fale em crise,
trabalhe”, transformando
em seguida a frase
em propaganda nacional.
Amanhã não será
um dia melhor
do que hoje
que não é um dia
melhor do que ontem,
mas estamos aqui,
sem descanso,
diariamente falando,
diariamente gritando,
ainda que nossas falas
e mesmo nossos gritos
não assustem mais
ninguém. Não temos
podido fazer quase nada,
senão o pouco que
ainda conseguimos
fazer. Encho os pulmões
e retiro ritmos
urbanos do que quer
que me sirva para tentar
dizer o nosso tempo
eloquente de escassez
e excessos, de angústias
e desejos, nosso tempo
simultaneamente
legível e ininteligível.
Estamos tristes, poeta,
o mar da história é,
de fato, agitado,
atravessamos ameaças
e guerras. Estamos
tristes, poeta, e impotentes,
e frustrados, o pior
não é mais um sinal
do que poderia vir
a acontecer, ele se
encontra no meio
de nós, sem que vejamos
a possibilidade iminente
de seu desmoronamento.
Nosso país está cheio
de dores. Não busquemos
autocríticas no momento
indevidas nem responsabilidades
que no momento
não nos caibam (como se
pudéssemos ter evitado
tudo isso!). Ao longo
desses anos, eles se utilizaram
de todo poder, desmesurado,
de que são capazes. Sigamos
lutando como nos for
possível, sigamos lutando
com nossas palavras,
com nossos afetos,
com nossos corpos,
mesmo na não audição
de nossos gritos.
Sigamos lutando
para a poesia
não desfalecer diante
do que estamos vivendo,
para ela viver ainda
mais, para ela dar
mais vida, para ela tocar
os nervos e o coração
de modo a sustentar
nossa feroz discordância,
nossa revolta convulsiva-
mente escrita, para ela
testemunhar algo que,
tocando o que poderia
ser chamado de verdade,
com seu documentário,
com seus rabiscos
de diários, cartas,
estudos, anotações,
matérias, improvisos,
mesmo em seu atropelo
e com inúmeras lacunas,
escape às notícias falsas
e às vozes dos poderosos.
Que se tenha aqui um registro
para que se possa, um dia,
quem sabe, pelos sintomas
narrados, investigar a doença
maior do nosso tempo,
ganhando antídotos sociais,
vacinas políticas, curas
históricas de modo que ela,
em hipótese alguma, retorne.
Um país que elegeu
esse presidente é de todo modo
um país doente, um país
que produziu a mais letal
das doenças terminais.
Ao menos por uma tarde,
entretanto, alegremo-nos
com o fogo amigo deles.
Talvez não seja tão pouco
assim; talvez, nessa guerra
entre os diversos agentes
dos múltiplos poderes,
alguma brecha acabe
por se abrir, por onde
possa se dar uma disjunção
do tempo, uma fratura
na continuidade dos fatos,
um contrapelo da história,
por onde consigamos,
mais uma vez, e de novo,
romper aquilo que,
neste país imenso, desde
sempre trabalha, com todo
poder, para se impor, mas
tenhamos a certeza
de que amanhã não será
um dia melhor do que hoje,
que não é um dia
melhor do que ontem.

Rio de janeiro –
Vale do Socavão,

22 de outubro de 2018
(semana imediatamente anterior ao segundo turno das eleições)
a 11 de maio de 2020

In: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/

Andreia C. Faria – “Tenho a pedir-vos que não reutilizeis mais nada”

Tenho a pedir-vos que não reutilizeis mais nada.
Este edifício junto à praia, deixai-o
entregue à ruína,
às folhas do milho,
ao ar salgado.

Que as crianças possam tropeçar nas lajes soltas
e no átrio ecoe, como uma pedreira,
o desejo de muitas mãos.

Deixai dormir as mariposas dentro de lâmpadas partidas
e as formigas engrossarem pelos cantos
como sal.

Não inventeis mais nada,
nem formas eloquentes de evitar que o bronze oxide.
Aceitai o suor do tempo.

Que algumas coisas apodreçam.
Que os elefantes atravessem a planície.
Que as veias rebentem
do esforço de permanecer em pé.

E que nem tudo se sustente como a rosa
se sustenta de florir.

Deixai, deixai os vários pisos incomunicáveis,
o desvão ser cortejado pelo giz dos aviões,
que a lua pouse ali aberto o crânio,
que lhe bata o sol.

Ainda são precisos os templos
onde o pó seja gentil
e incensado
como os pés pela caruma dos pinhais.

Obs.: Republicado, com correções a partir da publicação original