Mário Chamie – Fantasma

Um fantasma ausente
põe tijolo sobre
tijolo ao seu redor.

Primeiro mede o terreno
Divide o espaço.
Calca com o pé
a planta
que não floresce.
Mas que cresce
sob estacas
de cimento.

Depois, a ausência
se preenche.
O fantasma move
a cal, a pedra, a pá.
O fantasma move
o corpo já presente
do lugar em que está.

Presente e ausente,
um fantasma se acasala
Move seu corpo
de carne e osso.
Come a própria argamassa
e se desfaz
no próprio fosso.
Tijolo sobre tijolo
um fantasma fez seu poço.

Cecilia Meireles – Cantarão os Galos

Cantarão os galos, quando morrermos,
e uma brisa leve, de mãos delicadas,
tocará nas franjas, nas sedas
mortuárias.

E o sono da noite irá transpirando
sobre as claras vidraças.

E os grilos, ao longe, serrarão silêncios,
talos de cristal, frios, longos ermos,
e o enorme aroma das árvores.

Ah, que doce lua verá nossa calma
face ainda mais calma que o seu grande espelho
de prata!

Que frescura espessa em nossos cabelos,
livres como os campos pela madrugada!

Na névoa da aurora,
a última estrela
subirá pálida.

Que grande sossego, sem falas humanas,
sem o lábio dos rostos de lobo,
sem ódio, sem amor, sem nada!

Como escuros profetas perdidos,
conversarão apenas os cães, pelas várzeas.
Fortes perguntas. Vastas pausas.

Nós estaremos na morte
com aquele suave contorno
de uma concha dentro da água.

Cecília Meireles – Epigrama nº 7

A tua raça de aventura
quis ter a terra, o céu, o mar.

Na minha, há uma delícia obscura
em não querer, em não ganhar…

A tua raça quer partir,
guerrear, sofrer, vencer, voltar.

A minha, não quer ir nem vir.
A minha raça quer passar.

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Cecília Meireles – O Jardim

O jardim é verde, encarnado e amarelo.
Nas alamedas de cimento,
movem-se os arabescos do sol
que a folhagem recorta
e o vento abana.

A luz revela orvalhos no fundo das flores,
nas asas tênues das borboletas,
-e ensina a cintilar a mais ignorada areia,
perdida nas sombras,
submersas nos limos.

Ensina a cintilar também
os insetos mínimos,
-alada areia dos ares, que se eleva
até a ponta dos ciprestes vagarosos.

Pássaros que jorram das altas árvores
caem na relva como pedras frouxas.
As borboletas douradas e as brancas
palpitam com asas de pétala,
entre água e flores.
E as cigarras agarradas aos troncos
ensaiam na sombra suas resinas sonoras.

Essa é a glória do jardim
com roxos queixumes de rolas,
pios súbitos,gorjeios melancólicos,
voos de silêncio,
música de chuva e vento
débil queda de folhas secas,
murmúrio de gota de água
na umidade verde dos tanques.

Quando um vulto humano se arrisca,
fogem os pássaros e borboletas;
e a flor que se abre, e a folha morta,
esperam, igualmente transidas,
que nas areias do caminho
se perca o vestígio de sua passagem.

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Carlos Drummond de Andrade – A Um Bruxo Com Amor

Em certa casa da Rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trastejada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
estão apagados.

Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.

E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo
(das sensações do mundo a mais sutil):
volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?

O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,
mostra que os homens morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurrar alguma coisa
que não se entende logo
a parece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
é Flora,
com olhos dotados de um mover particular
entre mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifrastes íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor canção de mulher nova…
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.
O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?

Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que revolves em mim tantos enigmas.

Um som remoto e brando
rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.

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Mário de Andrade – Poema da Amiga (VIII)

Gosto de estar a teu lado,
Sem brilho.
Tua presença é uma carne de peixe,
De resistência mansa e de um branco
Ecoando azuis profundos.

Eu tenho liberdade em ti.
Anoiteço feito um bairro,
Sem brilho algum.

Estamos no interior duma asa
Que fechou.

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Affonso Romano de Sant’Anna – Carta aos Mortos

Amigos, nada mudou
em essência.

Os salários mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
tomba morto por questão de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
e como sempre, mulheres portentosas
nos seduzem com suas bocas e pernas,
mas em matéria de amor
não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
seis meses ou mais, testando a engrenagem
e a solidão.
Em cada olimpíada há recordes previstos
e nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
com a modernidade.

Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
relemos o Quixote, e a primavera
chega pontualmente cada ano.

Alguns hábitos, rios e florestas
se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
ou toma a fresca da tarde,
mas temos máquinas velocíssimas
que nos dispensam de pensar.

Sobre o desaparecimento dos dinossauros
e a formação das galáxias
não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
países se dividem
e as formigas e abelhas continuam
fiéis ao seu trabalho.

Nada mudou em essência.

Cantamos parabéns nas festas,
discutimos futebol na esquina
morremos em estúpidos desastres
e volta e meia
um de nós olha o céu quando estrelado
com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração , insolente,
continua a achar
que vive no ápice da história.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Eu me Perdi

Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra

Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar

Eugénio de Andrade – Quase Epitáfio

O outro sabia.
Tinha uma certeza.
Sou eterno, dizia.

Eu não tenho nada.
Amei o desejo
com o corpo todo.

Ah, tapai-me depressa.
A terra me basta.
Ou o lodo.

Mia Couto – Falta de Reza

Por insuficiência de reza,
por falsidade de crença
meu anjo me culpou
e vaticinou eterna penitência.

Mas não ajoelho
nem peço desculpa.
Não quero um deus
que vigie os vivos
e peça contas aos mortos.

Um deus amigo
que me chame por tu
e que espere por mim
para um copo de riso e abraços:
esse é o deus que eu quero ter.

Um deus
que nem precise de existir.