Ellen Bass – Rendição

Pensei que ela iria querer me poupar
daquilo, do mau cheiro e da vergonha,
mas na última semana, a da morte,
minha mãe me deixou trocar suas fraldas,
me deixou secá-la com um pano úmido e quente
e deslizar o lençol sob os seus quadris,
a pele amolecendo, os ossos dilatando,
a gravidade chamando-a de volta a terra como algum fruto caído.
Eu preciso dizer como ela era escrupulosa.
Ela tinha uma fúria por ordem, minha mãe.
Na loja, ela embrulhava a garrafa de vodka barata
com o mesmo esmero que dedicava a um Chivas Regal.
Ela alisava o papel brilhante de presente,
dobrando a borda rasgada para baixo, afiando
o vinco com a unha do polegar,
e encaixando as pontas em um singelo origami.
Julguei que ela se agarraria à sua dignidade,
mas ela parecia perdoar o próprio corpo,
todo seu caos e colapso,
ou talvez fosse um amadurecimento final
de confiança ou amor, abandono.
Não sei que nome dar a isso.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “Surrender”. In:_____The Missoury Review. EUA: Department of English of University of Missouri-Columbia, Vol. 32.2, Summer 2009

Miniantologia Poética – 10

Surrender

I thought she would want to save me
from it, the stench and shame,
but in the last week of dying,
my mother let me change her diaper,
let me wipe her with a warm wet cloth
and slide the sheet under her hips,
the flesh softening, the bones widening,
gravity pulling her back to earth like any fallen fruit.
I need to say how precise she was.
She had a rage for order, my mother.
In the store she wrapped half pints of cheap vodka
with the same care she gave to Chivas Regal.
She smoothed the glossy holiday paper,
folding the torn edge under, sharpening
the crease with her thumbnail,
tucking the ends into a humble origami.
I thought she’d cling to her dignity,
but she seemed to forgive her body,
all its chaos and collapse,
or maybe it was a final ripening
of trust or love, abandon.
I’m not sure what to call it.

Ellen Bass – Se você soubesse

E se você soubesse que seria o último
a tocar em alguém?
Se você estivesse recebendo os ingressos
do teatro, por exemplo, destacando-os
e devolvendo os canhotos,
poderia ter o cuidado de tocar aquela palma,
roçando a ponta dos dedos
ao longo do vinco da linha da vida.

Quando alguém arrasta sua mala com rodinhas
muito devagar pelo aeroporto, quando
o carro à minha frente não sinaliza,
quando o balconista da farmácia
não diz Obrigado, não me lembro
de que eles vão morrer.

Uma amiga me contou que havia se encontrado com a tia.
Elas haviam acabado de almoçar e o garçom,
um jovem gay de olhos pretos cor de ameixa,
brincou enquanto servia o café, e beijou
a bochecha empoada de sua tia quando elas saíram.
Em seguida, andaram meio quarteirão e sua tia
caiu morta na calçada.

Quão perto a espuma do dragão
tem que chegar? Até que ponto a fenda
no céu deve se abrir?
Como seriam as pessoas
se pudéssemos vê-las como elas são,
encharcadas de mel, picadas e inchadas,
imprudentes, prensadas contra o tempo?

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “If You Knew”. In:_____The Human Line. EUA: Copper Canyon Press, June 01, 2007.

Miniantologia Poética – 9

If You Knew

What if you knew you’d be the last
to touch someone?
If you were taking tickets, for example,
at the theater, tearing them,
giving back the ragged stubs,
you might take care to touch that palm,
brush your fingertips
along the life line’s crease.

When a man pulls his wheeled suitcase
too slowly through the airport, when
the car in front of me doesn’t signal,
when the clerk at the pharmacy
won’t say Thank you, I don’t remember
they’re going to die.

A friend told me she’d been with her aunt.
They’d just had lunch and the waiter,
a young gay man with plum black eyes,
joked as he served the coffee, kissed
her aunt’s powdered cheek when they left.
Then they walked half a block and her aunt
dropped dead on the sidewalk.

How close does the dragon’s spume
have to come? How wide does the crack
in heaven have to split?
What would people look like
if we could see them as they are,
soaked in honey, stung and swollen,
reckless, pinned against time?

Ellen Bass – O canto dos pássaros do meu pátio

Despair so easy. Hope so hard to bear.

—Thomas McGrath


Nunca ouvi tanto canto,
trinados puros como sinos de cristal,
mas não como os sinos: vivas, pequenas rajadas
de ar dos minúsculos pulmões felpudos
dos pássaros abrigados entre as folhas
rijas da oliveira e da amendoeira,
e do limão com seus rebites duros e verdes.
Enquanto o sol se põe recém-nascido
de espessas e robustas nuvens
suas vozes cintilantes capturam a luz
como fragmentos de alumínio espiralado.
Imagino suas patas enrugadas
enroscadas em mirrados ramos,
absorvendo pesticidas.
Vejo-os se limpando, penas
poluídas deslizando entre seus bicos
lustrosos, sobre suas línguas coriáceas.
Eles se alimentam de insetos contaminados,
sementes silvestres cintilando com chuva ácida.
E seus ovos porosos e de casca fina,
gris, salpicados ou leitosos,
jazem condenados em cada
complexo ninho. Tudo
está encharcado de perdas:
o tordo-dos-bosques e o estorninho,
o fruto verde do limoeiro.
Com tudo o que foi arruinado,
estes cantos empalam o ar
com suas agulhas afiadas e insistentes.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “Birdsong from My Patio”. In:_____The Human Line. EUA: Copper Canyon Press, June 01, 2007.

Miniantologia Poética – 8

Birdsong from My Patio

Despair so easy. Hope so hard to bear.

—Thomas McGrath


I’ve never heard this much song,
trills pure as crystal bells,
but not like bells: alive, small rushes
of air from the tiny plush lungs
of birds tucked in among the stiff
leaves of the olive and almond,
the lemon with its hard green studs.
As the sun slides down newborn
from thick muscled clouds
their glittering voices catch the light
like bits of twirling aluminum.
I picture their wrinkled feet
curled around thin branches,
absorbing pesticide.
I see them preening, tainted
feathers sliding through their glossy
beaks, over their leathery tongues.
They’re feeding on contaminated insects,
wild seeds glistening with acid rain.
And their porous, thin-shelled eggs,
bluish or milky or speckled,
lying doomed in each
intricate nest. Everything
is drenched with loss:
the wood thrush and starling,
the unripe fruit of the lemon tree.
With all that’s been ruined
these songs impale the air
with their sharp, insistent needles.

Ellen Bass – A dor de deus

Grande pai
que deve ter começado
com tantas expectativas.
Que magnitude de sofrimento,
imensidão de culpa,
desconcertante desespero.
Uma mente do tamanho do sol,
ardendo em nostalgia,
um coração enorme como o de uma baleia-cinzenta
rompendo, fluindo
na água do mar contra o céu claro.
Deus homem ou deus animal,
deus que respira em cada folha plissada,
saco vocal de sapo, penugem e raque —
deus do plutônio e da penicilina, bêbado
dormindo na grade do metrô,
deus de Joana d´Arc, deus de Crazy Horse,
de Lady Day1, que nos põe de joelhos,
deus de Houdini com suas mãos
como um rio, de Einstein, o arrependimento
correndo em suas veias,
deus de Stalin, deus de Somoza,
deus da Grande Marcha2,
do Caminho das Lágrimas3,
dos trens,
deus de Allende e deus de Tookie4,
do colhedor de morangos, o incêndio às suas costas,
deus da meia-noite, deus do inverno,
deus das crianças raptadas e vendidas
com uma semana de hospedagem
e passagem aérea para a Tailândia,
deus em apuros, deus no fim de sua corda —
insone, impotente —
deus desesperado, desvairado, coração de baleia
extraviada em águas rasas, encalhada
na areia, ressequida, empolada, esmagada
pelo peso massivo da gravidade.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “God’s Grief”. In:_____The Human Line. EUA: Copper Canyon Press, June 01, 2007.

Miniantologia Poética – 7

Notas

  1. Lady Day era o outro nome artístico da cantora-compositora Billie Holiday.
  2. A autora se refere à retirada das brigadas do Partido Comunista Chinês (o Exército Vermelho dos Operários e Camponeses da China) para fugir à perseguição do exército do Kuomintang.
  3. segundo a Wikipedia: “O Caminho das Lágrimas foi o nome dado pelos nativos às viagens de recolocações e migrações forçadas, impostas pelo governo dos Estados Unidos da América às diversas tribos de índios que seriam reunidas no chamado “Território Indígena” (atual Estado de Oklahoma), consoante à política de remoção indígena. Os índios habitavam as regiões ao sul da União. A referência à “Trilha das Lágrimas” foi retirada de uma descrição de um nativo da Nação Choctaw em 1831.” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Trilha_das_L%C3%A1grimas)
  4. Stanley Tookie Williams III, ou Tookie, foi um dos fundadores da gangue conhecida como Crips, uma das mais violentas gangues de rua dos Estados Unidos.

God’s Grief

Great parent
who must have started out
with such high hopes.
What magnitude of suffering,
the immensity of guilt,
the staggering despair.
A mind the size of the sun,
burning with longing,
a heart huge as a gray whale
breaching, streaming
seawater against the pale sky.
Man god or beast god,
god that breathes in every pleated leaf,
throat sac of frog, pinfeather and shaft—
god of plutonium and penicillin, drunk
sleeping on the subway grate,
god of Joan of Arc, god of Crazy Horse,
Lady Day, bringing us to our knees,
god of Houdini with hands
like a river, of Einstein, regret
running thick in his veins,
god of Stalin, god of Somoza,
god of the long march,
the Trail of Tears,
the trains,
god of Allende and god of Tookie,
the strawberry picker, fire in his back,
god of midnight, god of winter,
god of rouged children sold
with a week’s lodging
and airfare to Thailand,
god in trouble, god at the end of his rope—
sleepless, helpless—
desperate god, frantic god, whale heart
lost in the shallows, beached
on the sand, parched, blistered, crushed
by gravity’s massive weight.

Ellen Bass – A dor de Deus

Ellen Bass – Portão C22

No portão C22 do aeroporto de Portland
um homem com um chapéu de couro de aba larga beijava
uma mulher que chegara de Orange County.
Eles se beijavam e se beijavam e se beijavam. Muito tempo depois
que os outros passageiros afivelaram as alças de suas bagagens de mão
e se dirigiram rapidamente para o estacionamento,
o casal ficou lá, os braços em volta um do outro
como se ele tivesse acabado de desembarcar na Ilha Ellis1,
como se ela tivesse sido finalmente liberada da UTI, saído
do coma, sobrevivido a um câncer ósseo, descido
da Annapurna2 apenas com as roupas do corpo.

Nenhum dos dois era jovem. A barba dele era grisalha.
Ela carregava alguns quilos a mais que você até poderia imagina-la
dizendo que tinha que perder. Mas eles trocavam beijos
generosos como o oceano no início da manhã,
a forma como ele se avoluma e intumesce, sugando
para baixo cada pedra, engolindo-as
vezes sem conta. Estávamos todos assistindo —
passageiros aguardando o voo atrasado
para San Jose, as aeromoças, os pilotos,
a mulher de avental cobrindo Cinnabons, o homem vendendo
óculos escuros. Não conseguíamos desviar o olhar. Podíamos
sentir o sabor dos beijos macerados em nossas bocas.

Mas a melhor parte foi a expressão no rosto dele. Quando ele recuou
e olhou para ela, seu sorriso meigo de admiração, quase
como se ele fosse uma mãe ainda aberta após dar à luz,
como a sua mãe deve ter olhado para você, não importa
o que possa ter acontecido depois — se ela bateu ou abandonou-o
ou se você está solitário agora — uma vez você deitou lá, o vérnix
ainda não removido, e alguém contemplou-o
com se você fosse o primeiro nascer do sol da terra.
Toda aquela ala do aeroporto silenciou,
todos nós tentando entrar no corpo de meia idade daquela mulher,
em sua bermuda xadrez, sua blusa sem mangas, seus óculos,
seus pequenos brincos de argola de ouro, inclinando nossas cabeças para cima.

N. do T.:

1. A Ilha Ellis, situada na foz do Rio Hudson, foi o principal posto de imigração dos EUA entre 1892 e 1954, tendo testemunhado a chegada de mais de 12 milhões de estrangeiros atraídos pelo sonho americano. A ilha é hoje o símbolo da imigração para os Estados Unidos.

2. Ela se refere à montanha Annapurna situada na cordilheira Annapurna da província de Gandaki, centro-norte do Nepal.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “Gate C22”. In:_____The Human Line. EUA: Copper Canyon Press, June 01, 2007.

Miniantologia Poética – 6

Gate C22

At gate C22 in the Portland airport
a man in a broad-band leather hat kissed
a woman arriving from Orange County.
They kissed and kissed and kissed. Long after
the other passengers clicked the handles of their carry-ons
and wheeled briskly toward short-term parking,
the couple stood there, arms wrapped around each other
like he’d just staggered off the boat at Ellis Island,
like she’d been released at last from ICU, snapped
out of a coma, survived bone cancer, made it down
from Annapurna in only the clothes she was wearing.

Neither of them was young. His beard was gray.
She carried a few extra pounds you could imagine
her saying she had to lose. But they kissed lavish
kisses like the ocean in the early morning,
the way it gathers and swells, sucking
each rock under, swallowing it
again and again. We were all watching—
passengers waiting for the delayed flight
to San Jose, the stewardesses, the pilots,
the aproned woman icing Cinnabons, the man selling
sunglasses. We couldn’t look away. We could
taste the kisses crushed in our mouths.

But the best part was his face. When he drew back
and looked at her, his smile soft with wonder, almost
as though he were a mother still open from giving birth,
as your mother must have looked at you, no matter
what happened after—if she beat you or left you or
you’re lonely now—you once lay there, the vernix
not yet wiped off, and someone gazed at you
as if you were the first sunrise seen from the Earth.
The whole wing of the airport hushed,
all of us trying to slip into that woman’s middle-aged body,
her plaid Bermuda shorts, sleeveless blouse, glasses,
little gold hoop earrings, tilting our heads up.

Ellen Bass – O panorama geral

Eu tento ver o panorama geral.
O sol, língua ardente
que nos lambe como uma mãe encantada

por sua nova cria, se consumirá.
Tudo é transitório.
Pense no meteoro

que aniquilou os dinossauros.
E antes disso, nos vulcões
do Permiano — todas aquelas samambaias

e répteis, tubarões e peixes ósseos queimados —
que foram extintos em uma escala
que faz com que nossas perdas pareçam um dia difícil no caça-níqueis.

E talvez estejamos destinados a evoluir
para algum tipo de inteligência
que não precisa de corpos, ou água potável, ou mesmo de ar.

Mas não consigo deixar de me afligir
pelos últimos seiscentos Linces-ibéricos
com suas orelhas tufadas,

pelos Peixes-viola brasileiros, os 4
porcento deles ainda pervagando
o leito oceânico, olhos fixos no alto.

E por todos os marsupiais recém-nascidos —
Cangurus-vermelhos com filhotes do tamanho de abelhas —
Trutas-arco-íris, Botos-cor-de-rosa,

e pelas muitas espécies de sapos
respirando através de suas úmidas
membranas permeáveis.

Hoje, no ônibus, uma mulher
em um suéter do tom exato dos cardeais,
e sua alça de sutiã carmesim, exposta

em sua pálida espádua, fez-me sofrer
por aqueles brilhantes flashes na neve.
E pelos ursos polares, o creme e o âmbar

de seus pelos, o longo, oco
pelame pelo qual o sol desliza,
engolido em sua pele escura. Quando cheguei em casa,

meu filho estava com dor de cabeça e, embora ele esteja
quase crescido, pediu-me que lhe cantasse uma canção.
Deitamos juntos no sofá irregular

e me pus a cantarolar as velhas melodias, “Night and Day”. . .
“They Can’t Take That Away from Me.”. . . Uma corrente
de prata vulgar cintilava em seu pescoço,

subindo e descendo com sua pulsação. Nunca houve
outra coisa. Apenas estas dolorosamente
insignificantes criaturas que amamos.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “The Big Picture”. In:_____The Human Line. EUA: Copper Canyon Press, June 01, 2007.

Miniantologia Poética – 5

The big picture

I try to look at the big picture.
The sun, ardent tongue
licking us like a mother besotted

with her new cub, will wear itself out.
Everything is transitory.
Think of the meteor

that annihilated the dinosaurs.
And before that, the volcanoes
of the Permian period — all those burnt ferns

and reptiles, sharks and bony fish —
that was extinction on a scale
that makes our losses look like a bad day at the slots.

And perhaps we’re slated to ascend
to some kind of intelligence
that doesn’t need bodies, or clean water, or even air.

But I can’t shake my longing
for the last six hundred
Iberian lynx with their tufted ears,

Brazilian guitarfish, the 4
percent of them still cruising
the seafloor, eyes staring straight up.

And all the newborn marsupials —
red kangaroos, joeys the size of honeybees —
steelhead trout, river dolphins,

so many species of frogs
breathing through their damp
permeable membranes.

Today on the bus, a woman
in a sweater the exact shade of cardinals,
and her cardinal-colored bra strap, exposed

on her pale shoulder, makes me ache
for those bright flashes in the snow.
And polar bears, the cream and amber

of their fur, the long, hollow
hairs through which sun slips,
swallowed into their dark skin. When I get home,

my son has a headache and, though he’s
almost grown, asks me to sing him a song.
We lie together on the lumpy couch

and I warble out the old show tunes, “Night and Day”. . .
“They Can’t Take That Away from Me.”. . . A cheap
silver chain shimmers across his throat,

rising and falling with his pulse. There never was
anything else. Only these excruciatingly
insignificant creatures we love.

Ellen Bass – No ar

A estação nostalgia toca as canções
que tocava quando eu aqui vivia
e a voz adocicada do DJ dizia:
Vamos agitar com essa, Ellen.

Isso é da época em que minha mãe leu sobre as virtudes
da água do mar e mergulhou, no verão e no inverno.
Ela distribuía uma colher de chá para cada um de nós
antes de sair para o seu turno de treze horas,
tirando um pack de Miller para fora da geladeira,
e fechando a porta com seu quadril.

Agora aquele quadril está reduzido a osso no osso,
e todos os seus prazeres se foram –
sanduíche italiano nos sábados à noite.
Ray Charles cantando “Georgia”,
o drinque e o cigarro queimando
em um cinzeiro de vidro cortado. Até mesmo o
café já não tem mais um bom sabor.

Lembro-me de ouvir essas canções –
“Earth Angel”, “Summer Place”,
“The Way You Look Tonight” –
olhando pela janela do meu quarto
para a bicicleta do meu namorado.

Na noite em que ele tomou de volta o seu anel
pedi-lhe para me beijar mais uma vez.
Estranho como isso me satisfez, embora
eu soubesse que ele estava partindo, levando tudo,
até mesmo seu cheiro. É assim que espero aqui
ela acordar e pedir uma lasca de gelo
que irá derreter até virar nada em sua língua.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “On the air”. In:_____The Human Line. EUA: Copper Canyon Press, June 01, 2007.

Miniantologia Poética – 4

On the air

The oldies station plays the songs
it played when I lived here
and the DJ’s caramel voice, said
Let’s go rockin’ with this one, Ellen.

Those were the years my mother read about the virtues
of seawater and waded in, summer and winter.
She held out a teaspoon to each of us
before leaving for her thirteen-hour shift,
slinging six-packs of Miller out of the walk-in icebox,
shoving the door closed with her hip.

Now that hip is down to bone on bone,
and all her pleasures gone –
Italian subs on Saturday night.
Ray Charles singing “Georgia”,
the highball and cigarette burning
in a cut-glass ashtray. Even coffee
doesn’t taste good anymore.

I remember listening to this music-
“Earth Angel”, “Summer Place”,
“The Way You Look Tonight” –
watching out my bedroom window
for my boyfriend’s bicycle.

The night he took back his ring
I asked him to kiss me one more time.
Strange how that satisfied, though I knew
he was leaving, taking everything,
even his smell. That’s how I wait here
for her to wake, to ask for an ice chip
that will melt to nothing on her tongue.

Ellen Bass – Por qualquer outro nome

Não me importo tanto em esquecer os nomes das pessoas.
São os substantivos comuns que me fazem falta. Temo o
espaço em branco absoluto de quando tento me lembrar
daquele objeto no qual os professores escrevem com giz.

Eu posso vê-lo em minha mente. Às vezes estou
até olhando diretamente para ele. Ontem eu fiquei
diante das flores brancas e rosas do meu jardim,
sabendo que conhecia, até aquele momento,
seus nomes populares e em latim.

Ao pegar a tanga úmida da minha filha,
eu disse: “Pendure sua canga no varal.”
Impressionada, chamei de vagem o colar
que um amigo usava. Sinto falta

dos nomes, como se fossem
as próprias coisas, como se os objetos
tivessem sido apagados, um borrão
na página. Como as aberturas

naqueles totens de papelão, cabeças encaixadas
sobre uma roupa de cowboy ou um vestido plissado de can-can.
Quando as retiramos, não há ninguém lá.
Eu me pego afagando objetos simples –

espátula, cobertor, sombrinha, sabonete –
como se fossem entes queridos
prestes a partir. Como irei suportar
os buracos que eles deixarão no mundo?

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “By Any Other Name”. In:_____Prairie Schooner. EUA: University of Nebraska Press, Vol. 78, n. 4, Winter 2004, pp 148-150.

Miniantologia Poética – 3

By Any Other Name

I don’t so much mind losing people’s names.
It’s the ordinary nouns I miss. I fear the absolute
blank space when I try to recall
that thing teachers write on with chalk.

I can see it in my mind. Sometimes
I’m even looking right at it. Yesterday I stood
over the pink and white flowers in my garden,
knowing that I’d known, until that moment,
both their common and Latin names.

Picking up my daughter’s damp bathing suit,
I said, “Hang your suitcase on the line.”
Admiring a friend’s necklace,
I called it a stringbean. I miss

the names, as though they were
the things themselves, as though the objects
were erased, a smudge
on the page. Like the openings

in those amusement stockades, heads popped
above a cowboy suit or ruffled can-can dress.
When they pull out, there’s no one there.
I find myself caressing simple objects-

spatula, blanket, umbrella, soap –
as though they were loved ones
about to depart. How will I bear
the holes they leave in the world?

Ellen Bass – Se Deus não existe

Então não há ninguém
para nos amar indiscriminadamente,
para girar nosso planeta como um globo, para manter a seiva —
xilema e floema — deslizando para cima e para baixo como a vara
de um trombone, as células respirando através das abundantes mitocôndrias,
sorvendo a chuva, absorvendo a luz do sol.

A lampreia prende sua boca redonda
no flanco de um peixe, raspando e sugando o sangue.
A píton de mandíbula articulada ingere uma gazela envolta em veludo.

Seda de aranha, a cadeia polipeptídica dobrada
para lá e para cá, lençóis plissados mais resistentes que o aço.
Elas se estendem e se enrolam, respondendo como um amante.
Quem vai notar? Quem irá assistir
enquanto as patas articuladas enrolam a libélula
dando voltas e voltas, asas enormes zumbindo?

Quem vai se agachar ao lado do líquen enquanto ele se infiltra sobre a rocha,
para anotar seu milimétrico crescimento como um pai fazendo marcas
de lápis na parte de trás da porta? E quando ele morrer
envenenado — com mil, dois mil anos de idade,
esta criatura modesta, meio folha, meio arbusto,
quem irá chora-lo? Quem entoará sua elegia?

As calotas polares estão se estilhaçando.
Populações de continentes inteiros entram em colapso — os vírus eclodem
continuamente das superfícies complexas e graciosas das células T,
reunindo-se e empilhando-se em intrincados vales e espirais.
Já não é possível encontrar um único pica-pau-bico-de-marfim ou lobo-da-tasmânia.
A precipitação radioativa circunda o planeta.

Deve haver algo que você ame: as cerejeiras
na Storrow Drive explodindo em flores enquanto você passa,
cada árvore libertando seus botões desbotados como fogos de artifício em tons pastel.
Ou voltar de carro de Poipu Beach, as crianças desabadas sobre você,
a lua cintilando entre mil palmeiras.

Quando os tentilhões enlouquecem cantando e se fartando
nas últimas das peras de novembro, quando Pavarotti canta,
ou uma mãe canta para o seu bebê, I can’t give you anything but love,
andando pelo tapete manchado do corredor,
quando ela cai na cama novamente e seu novo amante reúne suas partes
como um favo de mel, alguém
precisa prestar atenção. Abra sua janela.
Ouça, ouça-os, e veja.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “If There is no God”. In:_____Mules of Love. EUA: BOA Editions, April 01, 2002.

Miniantologia Poética – 2

If There Is No God

Then there’s no one
to love us indiscriminately,
to twirl our planet like a globe, to keep the sap—
xylem and phloem—gliding up and down like the slide
of a trombone, the cells breathing through teeming mitochondria,
slurping rain, eating sunlight.

The jawless lamprey clamps its round
mouth on the flank of a fish, rasping and sucking blood.
The hinged-jaw python ingests a velvet-cloaked gazelle.

Spider silk, the polypeptide chain folded
back and forth, pleated sheets stronger than steel.
They stretch and coil, responding like a lover.
Who will notice? Who will watch
while the articulate legs wrap the dragonfly
round and round, huge wings whirring?

Who will crouch beside the lichen as it wheedles into rock,
mark its single millimeter’s growth like a father penciling tracks
up the back of the door? And when it dies—
a thousand, two thousand years old, this modest
leaflike, shrublike creature, poisoned,
who will mourn? Who will chant its elegy?

The polar ice caps are cracking up.
The people of whole continents collapsing—viruses bud
continuously from the graceful, convoluted surfaces of T cells,
gathering and heaping in intricate curls and valleys.
We cannot find a single ivory-billed woodpecker or Tasmanian wolf.
Radioactive fallout circles the planet.

There must be something you love: the cherry trees
on Storrow Drive bursting into bloom as you pass,
each tree releasing its pale buds like pastel fireworks.
Or driving back from Poipu Beach, the children slumped against you,
the moon flashing through the thousand palms.

When finches go crazy gorging and singing
in the last of the November pears, when Pavarotti sings,
or a mother sings to her baby, “I can’t give you anything but love,”
walking the stained carpet of the hallway,
when she falls back into bed and her new lover gathers
her up like honeycomb, someone
must pay attention. Open your window.
Listen, listen to them, and behold.

Ellen Bass – O importante é

O importante é

amar a vida, ama-la mesmo
quando você não tem estômago para isso
e tudo o que você guardou afetuosamente
se desfaz feito papel queimado em suas mãos,
sua garganta repleta desse lodo.
Quando a dor se senta ao seu lado, seu calor tropical
condensando o ar, pesado como água,
mais apto para guelras do que para pulmões;
quando a dor pesa sobre você como sua própria carne,
só que um pouco mais, uma obesidade de dor,
você pensa: como pode um corpo suportar isso?
Então você segura a vida como um rosto
entre as palmas das mãos, um rosto banal,
sem sorriso encantador nem olhos violeta,
e você diz, sim, eu a aceitarei,
eu a amarei, novamente.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “The Thing is”. In:_____Mules of Love. EUA: BOA Editions, April 01, 2002.

Miniantologia Poética – 1

The Thing Is

to love life, to love it even
when you have no stomach for it
and everything you’ve held dear
crumbles like burnt paper in your hands,
your throat filled with the silt of it.
When grief sits with you, its tropical heat
thickening the air, heavy as water
more fit for gills than lungs;
when grief weights you down like your own flesh
only more of it, an obesity of grief,
you think, How can a body withstand this?
Then you hold life like a face
between your palms, a plain face,
no charming smile, no violet eyes,
and you say, yes, I will take you
I will love you, again.