Machado de Assis – A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 18/02/2016

Ted Kooser – Abutre

Eu não o teria notado, de tão minúsculo que ele estava,
a centenas de metros acima, diminuto como um cílio,
menor ainda, como a marca negra

que um lápis faz quando, como agora,
cai sobre os limpos ladrilhos azuis e brancos
do céu. Não deveria significar nada,

mas senti seu vulto frio passar, talvez
seis metros de largura, como a de um avião pulverizador,
voando baixo sobre as árvores, espalhando sombra,

desaparecendo e logo retornando, as asas
planando sem um som. Era aquele tipo de sombra
que não roça de leve as copas das árvores,

mas desce direto sobre elas, voando
em linha reta, transformando-se em
confetes de escuridão, tocando cada folha restante

por um instante e depois libertando-as,
remodelando-se na forma de uma sombra
que segue adiante. As árvores não se incomodaram com isso,

mas eu sim, um pouco. Embora fosse um dia claro,
parecia demais com aqueles vestígios
de morte que, como uma telha solta, se desprendem

do telhado do futuro e deslizam
sobre os meus olhos lá pelas duas
da manhã, passando pela luz verde

do relógio. Mas isso aconteceu de dia,
e eu semicerrei os olhos na direção da luz, aliviado
por haver um abutre ali para explicar aquilo.

Trad.: Nelson Santander

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Vulture

I wouldn’t have noticed it, so tiny it was,
hundreds of feet overhead, small as an eyelash,
smaller even than that, like the black mark

a pencil will make when, as in this instance,
it’s dropped on the clean blue and white tiles
of the sky. It should have been of no meaning,

but I felt its chill shadow pass over, maybe
twenty feet wide, like that of a crop duster,
passing low over the trees, spraying shade,

disappearing, then coming around again, wings
gliding soundless. It was that kind of a shadow
that doesn’t brush lightly over the treetops,

but drops right down into them, flying
straight through, transforming itself into
a confetti of darkness, touching every last leaf

for an instant and then setting them free,
re-forming itself in the shape of a shadow
gone on. The trees weren’t troubled by this but

I was, a little. Although it was bright day,
it felt all too much like one of those patches
of death that, like a loose shingle, work themselves

free from the roof of the future and come
sliding down over my eyes at around two
in the morning, dropping past the green light

from the clock. But this happened in day,
and I squinted up into the light, feeling relieved
that a vulture was there to explain it.

Carlos Pena Filho – A Solidão e sua Porta

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 18/02/2016

Lucille Clifton – o último dia

nos encontraremos cercados
pelos nossos todos eles agora
com os olhares que haviam
apenas imaginado possíveis
e eles nos reprovarão
com esses olhos
em uma linguagem mais direta
que a fala
perguntando por que permitimos que isso
acontecesse perguntando por que
pelo amor de Deus
fizemos isso a nós mesmos
e responderemos
com nossas vozes débeis porque
porque porque

Trad.: Nelson Santander

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the last day

we will find ourselves surrounded
by our kind all of them now
wearing the eyes they had
only imagined possible
and they will reproach us
with those eyes
in a language more actual
than speech
asking why we allowed this
to happen asking why
for the love of God
we did this to ourselves
and we will answer
in our feeble voices because
because because

Carlos Drummond de Andrade – Destruição

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 18/02/2016

Marie Howe – Separação

Ao sair da cidade, vejo-o atravessando
o estacionamento da Brooks Pharmacy, e lembro

como ele se punha de joelhos na cozinha
e pressionava o rosto contra meu vestido, a bochecha achatada

em meu ventre como se escutasse algo.
Alguém podia estar esperando o café na sala de estar,

alguém podia estar pondo a mesa da sala de jantar, ele
enfiava o rosto sob meu vestido, pressionava a bochecha

contra meu ventre e se ajoelhava ali, sem dizer nada.
Como é possível que eu possa vê-lo

assim – caminhando rapidamente junto às vitrines?

– o que ele usa no mundo sem mim,
suas mãos balançando ao lado do corpo, seu membro quieto

em seus jeans, sua camisa cobrindo
seus ombros, sua própria língua em sua boca.

Trad.: Nelson Santander

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Separation

Driving out of town, I see him crossing
the Brooks Pharmacy parking lot, and remember

how he would drop to his knees in the kitchen
and press his face to my dress, his cheek flat against

my belly as if he were listening for something.
Somebody might be waiting for coffee in the living room,

someone might be setting the dining room table, he’d
place his face under my dress and press his cheek

against my belly and kneel there, without saying anything.
How is it possible that I am allowed to see him

like this–walking quickly by the glass windows?

–what he wears in the world without me,
his hands swinging by his side, his cock quiet

in his jeans, his shirt covering
his shoulders, his own tongue in his mouth.

Robinson Jeffers – The Inhumanist (Parte II de “The Double Axe”) (excerto)

Chegará um tempo, sem dúvida,
Em que também o sol morrerá; os planetas congelarão
e o ar sobre eles; gases congelados, com flocos de ar
Serão a poeira: que nenhum vento jamais bulirá:
essa poeira mesma a cintilar à luz baixa dos astros
É o vento morto, o corpo branco do vento.

Também a galáxia morrerá; o brilho da Via Láctea,
nosso universo, todos os astros que têm nomes estão mortos.
Vasta é a noite. Cresceste tanto, querida noite,
andando por teus salões vazios, tão alta!

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 18/02/2016

Dorianne Laux – Ray aos 14

Bendido seja este menino, nascido com as feições fortes
do meu irmão mais velho, aquele que eu mais amava,
que saltava comigo do telhado
da casa de brinquedos, minha mão em sua mão.
Nas noites de sexta, assistíamos Além da Imaginação
e ele me deixava segurar a tigela de pipoca,
um cobertor sobre os nossos ombros,
dizendo: Não tenha medo. Eu nunca tinha medo
quando estava com meu irmão mais velho,
que me deixava tocar os músculos do tamanho de uma bola de beisebol
que pulsavam em seus braços, que me carregava nas costas
pela vizinhança deserta,
segurava firme o para-lama da minha bicicleta
até que eu o fizesse soltar.
Aos quatorze, ele era igualzinho
ao Ray, e quando morreu
aos vinte e dois em uma estrada da Alemanha,
pensei que o tinha perdido para sempre.
Mas Ray entra correndo na cozinha: camiseta suja,
jeans rasgado, puxa a manga para cima.
Ele diz: Sente meus músculos, e eu sinto.

Trad.: Nelson Santander

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Ray at 14

Bless this boy, born with the strong face
of my older brother, the one I loved most,
who jumped with me from the roof
of the playhouse, my hand in his hand.
On Friday nights we watched Twilight Zone
and he let me hold the bowl of popcorn,
a blanket draped over our shoulders,
saying, Don’t be afraid. I was never afraid
when I was with my big brother
who let me touch the baseball-size muscles
living in his arms, who carried me on his back
through the lonely neighborhood,
held tight to the fender of my bike
until I made him let go.
The year he was fourteen
he looked just like Ray, and when he died
at twenty-two on a roadside in Germany
I thought he was gone forever.
But Ray runs into the kitchen: dirty T-shirt,
torn jeans, pushes back his sleeve.
He says, Feel my muscle, and I do.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Traduzido de Kleist

Dizem que no outro mundo o sol é mais brilhante
E brilha sobre campos mais floridos
Mas os olhos que vêem essas maravilhas
São olhos apodrecidos

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 17/02/2016

Julia Hartwig – Tateando o caminho

O mais belo é o que ainda está inacabado
um céu repleto de estrelas não mapeadas pelos astrônomos
um esboço de Leonardo uma canção interrompida pela emoção
Um lápis um pincel suspensos no ar

Trad.: Nelson Santander, a partir da versão em inglês feita por Bogdana e John Carpenter

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Feeling the Way

The most beautiful is what is still unfinished
a sky filled with stars uncharted by astronomers
a sketch by Leonardo a song broken off from emotion
A pencil a brush suspended in the air