Nicanor Parra – Acácias

Passeando anos atrás
por uma rua cheia de acácias em flor
soube por um amigo bem informado
que você tinha acabado de se casar.
Respondi que por certo
eu não tinha nada a ver com o assunto.
Mas apesar de nunca ter amado você
– e disso você sabe melhor do que eu –
cada vez que florescem as acácias
– imagina só –
sinto de novo a mesma coisa que senti
quanto me atiraram à queima-roupa
a notícia devastadora
de que você tinha se casado com outro.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 12/09/2017

Aromos

Paseando hace años
por una calle de aromos en flor
supe por un amigo bien informado
que acababas de contraer matrimonio
contesté que por cierto
que yo nada tenía que ver en el asunto.
Pero a pesar de que nunca te amé
– eso lo sabes mejor que yo –
cada vez que florecen los aromos
– imagínate tú –
siento la misma cosa que sentí
cuando me dispararon a boca de jarro
la noticia bastante desoladora
de que te habías casado con otro.

Tyree Daye – Rio Neuse

Diga-lhes para não irem
à orla sozinhos.

Diga-lhes onde
podem beber

sem precisar olhar
por cima dos ombros.

Diga-lhes que o afogamento
está em terceiro em sua lista

de preocupações.
A primeira é deite-se,

a segunda, vem cá.
Mesmo a água

em que fui batizado
não é segura.

Eu sabia que Deus
era homem

porque ele pôs
um bebê em Maria

sem a per-
missão dela.

Trad.: Nelson Santander

Neuse River

Tell them not to go
to the banks alone.

Tell them where
they can drink

without watching
over shoulders.

Tell them drowning
is third on your list

of concerns.
First is lie down,

second, come here.
Even the water

I was baptized in
isn’t safe.

I knew God
was a man

because he put
a baby in Mary

without her
permission.

Ana Martins Marques – Interiores

AÇUCAREIRO

De amargo
basta
o amor

Agridoce,
ela disse

Mas a mim
pareceu
amargo

CADEIRA

I

Repetes
diariamente
os gestos
do primeiro homem
que se sentou
numa tarde quente
olhando as savanas

II

Pouso
de gigantescos pássaros
cansados

FRUTEIRA

Quem se lembrou de pôr sobre a mesa
essas doces evidências
da morte?

CRISTALEIRA

Guarda
e revela
a nudez
branca
da louça
o incêndio
despareado
dos cristais

TALHERES

Colher

Se o sol nela
batesse
em cheio
por exemplo
numa mesa posta
no jardim
imediatamente se formaria
um pequeno lago
de luz

Garfo

Em três ramos
floresce
o metal

Faca

Sua fria elegância
não escamoteia
o fato:
é ela que melhor se presta
ao assassinato

CÔMODA

E dela
o que restou
senão
sobre a cômoda
um par de brincos
que talvez não sejam dela?

ESTANTE

Dentro da garrafa
o navio
acaba de partir

CORTINA

Entre o fora e o dentro
lês
o vento

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 09/09/2017

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Lisel Mueller – Há manhãs

Mesmo agora, em que o enredo
pede que eu me torne pedra,
o sol intervém. Em algumas manhãs
de verão eu saio
e o céu se abre
e se derrama sobre mim
como se eu fosse um santo
prestes a morrer. Mas o enredo
pede que eu viva,
seja comum, diga nada
a ninguém. Dentro de casa
os espelhos queimam quando eu passo.

Trad.: Nelson Santander

There Are Mornings

Even now, when the plot
calls for me to turn to stone,
the sun intervenes. Some mornings
in summer I step outside
and the sky opens
and pours itself into me
as if I were a saint
about to die. But the plot
calls for me to live,
be ordinary, say nothing
to anyone. Inside the house
the mirrors burn when I pass.

W. H. Auden – Aquele que Ama Mais

Contemplando as estrelas, logo eu discirno
Que, por elas, eu posso ir para o inferno,
Porém, na terra, a indiferença é o que menos
Temos a temer, de animais e humanos

Como seria se os astros de paixão
Por nós ardessem e disséssemos não?
Se os afetos nunca podem ser iguais
Pois que seja eu aquele que ama mais.

Por mais admirador que eu julgue ser
De estrelas que de mim não querem saber
Não posso dizer, agora que as contemplo,
Que lhes tive saudade em algum momento.

Se sumissem ou morressem todas elas
Me habituaria a um céu sem estrelas
E a sentir como sublime a treva total
Embora isso levasse um tempo, afinal.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 28/08/2017

The More Loving One

Looking up at the stars, I know quite well
That, for all they care, I can go to hell,
But on earth indifference is the least
We have to dread from man or beast.

How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.

Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.

Were all stars to disappear or die,
I should learn to look at an empty sky
And feel its total dark sublime,
Though this might take me a little time.

John Murillo – Variações sobre um tema de Elizabeth Bishop

Comece com a perda. Perca tudo. Então perca tudo outra vez.
Perca uma boa mulher em um dia ruim. Encontre uma mulher melhor,
e depois perca cinco amigos correndo atrás dela. Aprenda a perder como se
sua vida dependesse disso. Aprenda que sua vida depende disso.
Aprenda como se aprende caratê, ou a andar de bicicleta. Aprenda-o, domine-o.
Perca dinheiro, perca tempo, perca sua mente natural.
Seja abandonado e depois aprenda a abandonar. Perca e
perca novamente. Mensure o caixão de um pai em comparação com as
células T de um primo. Beije sua irmã através do vidro de uma cela.
Saiba por que sua mulher não está atendendo suas ligações.
Perca o sono. Perca a religião. Perca sua carteira em El Segundo1.
Abra sua janela. Ouça: as últimas notas lentas
de uma canção de Donny Hathaway2. Uma criança chorando. Ouça:
um bêbado pragueja contra a lua. Ele soa como
seu tio morto que, antes de partir, perdeu uma perna
para o açúcar. Uma vergonha. Aprenda que o que é dado pode ser tomado;
e o que pode ser tomado, o será. Pode apostar nisso sem
perder. Claro como o anoitecer e uma cama vazia. Perca
e perca de novo. Perca até que isso seja a sua segunda natureza. Perca
mais, e perca mais rápido3. Incline-se pela janela aberta, ouça:
a criança está rindo agora. Não, é o bêbado de novo
na rua, perdendo sua voz, sofrendo por estrelas invisíveis.

Trad.: Nelson Santander

Nota:

  1. Cidade americana do Estado da Califórnia.
  2. Cantor e compositor norte-americano de soul, gospel e jazz que se suicidou em 1979, aos 33 anos de idade.
  3. Primeiro verso da terceira estrofe de “One Art”, de Elizabeth Bishop, ao qual o presente poema faz referência expressa. Para ajudar na compreensão da presente tradução, colo aqui a tradução magnífica que Paulo Henriques Britto fez do poema de Bishop e, na sequência, o original:

A Arte de Perder

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

Trad.: Paulo Henriques Britto

One Art

The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster,

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

– Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like a disaster.

Variation on a Theme by Elizabeth Bishop

Start with loss. Lose everything. Then lose it all again.
Lose a good woman on a bad day. Find a better woman,
then lose five friends chasing her. Learn to lose as if
your life depended on it. Learn that your life depends on it.
Learn it like karate, like riding a bike. Learn it, master it.
Lose money, lose time, lose your natural mind.
Get left behind, then learn to leave others. Lose and
lose again. Measure a father’s coffin against a cousin’s
crashing T-cells. Kiss your sister through prison glass.
Know why your woman’s not answering her phone.
Lose sleep. Lose religion. Lose your wallet in El Segundo.
Open your window. Listen: the last slow notes
of a Donny Hathaway song. A child crying. Listen:
a drunk man is cussing out the moon. He sounds like
your dead uncle, who, before he left, lost a leg
to sugar. Shame. Learn what’s given can be taken;
what can be taken, will. This you can bet on without
losing. Sure as nightfall and an empty bed. Lose
and lose again. Lose until it’s second nature. Losing
farther, losing faster. Lean out your open window, listen:
the child is laughing now. No, it’s the drunk man again
in the street, losing his voice, suffering each invisible star.

Ricardo Silvestrin – Bilhete

Não me parecias frágil,
via-te doce.
Talvez fosses mesmo forte,
é preciso ser valente
pra decretar a própria morte.

Tinha-te por calmo.
Que rio obscuro e discreto
te puxava para o fundo,
sem saber nadar,
sem ninguém saber de nada?

Não deixaste uma carta,
um poema, um bilhete de suicida.
Como se quisesses dizer
que a morte
não deve explicações à vida

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 26/08/2017

Timothy Liu – Os restos

Os restos

                                                  —Wuxi, China

Saindo do novo cemitério, meu pai
pegou a minha mão, tendo acabado de reenterrar os restos
mortais de seu próprio pai e suas duas esposas —
sua mãe morrera de tuberculose quando ele tinha dez anos.

Ele pegou a minha mão e disse: Agora posso morrer em paz
mesmo que não tenhamos os ossos verdadeiros
. Os bandidos da aldeia
contratados pelo meu tio se certificaram de que os túmulos
atrás da casa em que meu pai crescera não sentiriam

uma única lâmina de pá entrar enquanto eles estivessem ali
de sentinela com os braços cruzados. A esposa do meu tio
teve um sonho em que de uma fenda aberta da sepultura
demônios saíam apressados — fantasmas ancestrais que não queriam ser

perturbados. Em menos de uma década, tratores virão
botar abaixo a aldeia dos Liu. 
As cinzas da minha
avó, os ossos do meu avô, meu próprio pai
se afastando com dois punhados de terra e dizendo:

Isso terá que servir. Tantos outros morreram
sem ter deixado nada para trás. Eu nunca mais voltarei
a este lugar. 
Meu pai beijou a minha mão,
eu que atravessei doze fusos horários para estar aqui

ao seu lado em uma van emprestada, eu olhando pela
janela para um campo uma vez invadido por
soldados japoneses marchando para o oeste ao longo dos trilhos,
meu pai e seus irmãos escondidos em um depósito,

um cavalo morto encontrado no pátio da escola logo após
a partida dos soldados. Suas mãos são tão macias!, eu digo
ao meu pai. As suas também, ele responde. Lembra-se de
quando foi a última vez em que nos demos as mãos? 
Eu devia ser

uma criança, eu respondo, talvez com oito, ou dez? Você tinha seis
anos, meu pai diz. E ainda sou seu filho, eu digo,
apoiando-me no ombro dele, nossas mãos do mesmo tamanho.
E eu serei sempre seu pai, meu pai responde

antes que eu tenha a oportunidade de dizer outra palavra,
meu pai de oitenta anos já caindo no sono.

Trad.: Nelson Santander

The Remains

                                                  —Wuxi, China

Walking out of the new cemetery, my father
takes my hand, having just re-interred the remains
of his own father and his father’s two wives—
his mother dead from T.B. by the time he was ten.

He takes my hand and says, Now I can die in peace
even if we didn’t get the actual bones. Village thugs
hired by my uncle made sure the burial mounds
behind the house my father grew up in would not feel

a single shovel blade go in as they stood there
sentinel with arms crossed. My uncle’s wife
had a dream that out of the grave’s opened gash
demons rushed—ancestral ghosts not wanting to be

disturbed. In less than a decade, bulldozers will come
to take the Liu village down. My grandfather’s
ashes, my grandmother’s bones, my own father
walking away with two fistfuls of dirt and saying,

This will have to do. So many others have died
who’ve left nothing behind. I’ll never come back
to this place again. My father kisses my hand,
I who’ve flown across twelve time zones to be here

at his side in a borrowed van, me looking out
the window at a countryside once overrun
with Japs marching West along the railroad tracks,
my father and his siblings hiding in an outhouse,

a dead horse found in the schoolyard soon after
the soldiers had gone. Your hands are so soft! I say
to my father. So are yours, he says. Remember
when it was we last held hands? I must have been

a kid, I say, maybe eight, or ten? You were six,
my father says. And I’m still your son, I say,
leaning into his shoulder, our hands the same size.
And I’ll always be your father, my father says

before I have the chance to say another word,
my eighty-year-old father nodding off into sleep.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Meio-dia

Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem alvas,
E o mar imenso solitário e antigo,
Parece bater palmas.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 09/08/2017

Jean Sprackland – Perdendo o escuro

Novembro, quando o dia deveria terminar mais cedo
como um livro maçante. Mas naquela tarde
uma pequena nuvem em forma de ponto de interrogação
passou sobre o sol e se dissolveu.
Seis horas; oito; dez. E a luz do dia
ainda inundava a rua espantada.

Uma dádiva. Como uma daquelas noites de verão
em que nos sentamos, copo na mão,
sob a veloz rota de voo dos andorinhões.
Descerrou rostos, lojas, portas dos fundos.
O sono e os segredos eram como fetiches empoeirados;
caminhávamos à meia-noite, fazíamos amor em quartos ensolarados.
Até a sétima noite, sem sonhos
e nervosos, não tínhamos como prever:

estes empurrões e pontapés por porões
e subterrâneas estações, para longe do brilho intenso
que nos abria como uma faca. Como todas as aves,
que às vezes cantam até morrer.

Trad.: Nelson Santander

Losing the dark

November, when day should close early
like a dull book. But that afternoon
a small cloud in the shape of a question-mark
passed over the sun and dissolved.
Six o’clock; eight; ten. Daylight
still flooded the startled street.

Such a gift. Like one of those summer evenings
when you sit out, glass in hand,
under the darting flightpaths of swifts.
It opened faces, shops, back doors.
Sleep and secrets were like dusty fetishes;
we took midnight walks, made love in sunlit rooms.
Even on the seventh night, dreamless
and nervy, we couldn’t foresee it:

this shoving and kicking for basements
and underground stations, away from the glare
that opens you like a knife. How all the birds
might sing themselves to death.