Robert Hayden – A nevasca

Incapaz de dormir ou rezar, permaneço
ao lado da janela olhando para
as aluadas árvores envergadas pelo gelo
de uma tempestade de dezembro.

Bordo e freixo da montanha se curvam
sob seu peso vítreo,
seus galhos fendidos caindo sobre
a neve congelada.

As árvores em si, como nos invernos passados,
sobreviverão a este fardo,
quebradas florescerão. E eu sou menos para Você
do que elas, Senhor?

Trad.: Nelson Santander

Ice Storm

Unable to sleep, or pray, I stand
by the window looking out
at moonstruck trees a December storm
has bowed with ice.

Maple and mountain ash bend
under its glassy weight,
their cracked branches falling upon
the frozen snow.

The trees themselves, as in winters past,
will survive their burdening,
broken thrive. And am I less to You,
my God, than they?

Carlos Drummond de Andrade – Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 09/11/2016

Kelli Russell Agodon – Capelas imaginárias

Sento-me no chão de um museu com um homem
que não conheço. Estamos contemplando um quadro
de 1508. Maria parece triste mas não está chorando.
Outro homem se senta à minha esquerda e encosta sua cabeça
contra a parede. Atrás de mim, uma mulher está
chorando. Eu me levanto e caminho em direção a um estranho
que está dizendo, Está tudo bem, querida, você está indo bem.
Há dias em que o mundo segura o
seu casaco e penteia o seu cabelo,
há outros em que o que sangra
mancha seu sofá, sua calça branca. Eu só quero
andar por um mundo em que as pessoas
queiram sentar-se em silêncio com um quadro,
em que, depois de ter visto tudo o que podemos
ver, possamos encontra um pub e pedir um Virgin
on the Rocks
. E no qual quando eu me divirto porque
Leonardo talvez nunca entendesse como
ele pode ter criado algo que se transforma
no pedido de um drink, por apenas alguns momentos
eu me sinta um pouco mais conectada a um país
que não é o meu lar. E talvez se sussurrar
para aqueles ao meu lado, eu diga: isto não é uma prece,
isto não é de deus
, o que estou realmente dizendo é:
olhe ao redor como a luz captura
a mulher tentando filmar a beleza,
como somos ambas esplendor e prece,
somos todos pequenos deuses fazendo o melhor que podemos.

Trad.: Nelson Santander

Imagined Chapels

I sit on the floor of a museum with a man
I do not know. We are gazing at a painting
from 1508. Mary is blue but not crying.
Another man sits to my left, leans his head
against the wall. There is a woman behind me
crying. I stand up and walk into a stranger,
he says, It’s okay, darling, you’re doing fine.
There are days when the world holds
your coat and combs your hair,
there are days when what bleeds
stains your sofa, your white pants. I just want
to walk through the world where others
want to sit in silence with a painting,
when after we’ve seen everything we can
possibly see, you find a pub and order a Virgin
on the Rocks. And when I laugh because
Leonardo might never understand how
he could create something that would turn
into a drink order, for just a few moments
I feel a little bit more connected in a country
that’s not my home. And maybe if I whisper
to those around me, say: this is not a prayer,
this is not god, what I’m really saying is
look around at how the light catches
the woman trying to film to beauty,
how we are both splendor and prayer,
we are all small gods doing the best we can.

Alan Jenkins – Pertences

Segurei a mão dela, que estava sempre marcada
Por cortar, fatiar, pelas facas que estavam à espreita
No lavatório, mão mal-acabada,
Os nós avermelhados dos dedos, ásperos de esfregar com força
panelas, frigideiras, xícaras e pratos,
Dando amor do único jeito que ela sabia,
Em cada corte barato de carne, em assados e ensopados,
Comidas tradicionais que ela preparava e nós comíamos;
E vi que tinham tirado seus anéis,
Os anéis que ela havia guardado uma vez na gaveta da penteadeira
Com fotos desbotadas, coisas há muito esquecidas
(Vaporizadores de perfume, pentes de tartaruga, um instantâneo ou dois
Da época em que tiramos férias ‘no exterior’)
Mas sem os quais ultimamente ela nunca mais havia ficado, como se
Quisesse que todos soubessem que ela era sua esposa
Só agora que ele estava morto. E o relógio dela? –
Modelo clássico feminino, pulseira de ouro – havia sumido,
E eu nunca a tinha visto sem ele,
Nem em todos aqueles anos que eles se sentaram juntos
Assistindo as telenovelas e game shows que eu desdenhava
E nem quando chegou a minha vez de cozinhar para ela,
Costeletas ou porções de frango, sabores ingleses,
Sem graça, familiares, que ela dizia preferir
A qualquer ‘coisa estrangeira esquisita’
Que os jovens parecem comer hoje em dia, pelo que ela ouvira;
Nem em todas aquelas semanas em que não apareci, quando ela se sentava
Noite após noite e ficava encarando sem ver
A televisão, em seu clima interior,
Se colocava de pé, piscava, se servia de
Drinque após drinque, bebia e fixava o olhar – o uísque
Que, quando ele estava vivo, ela não tocaria,
Esse era o jeito dela estar com ele de novo;
Nem mais tarde, na ala psiquiátrica,
Onde ela piscava sem ver a parede, as enfermeiras
(Que roubariam qualquer coisa, ela dizia), e sonhava
Em quando ela era menina, com o tempo antes
De eu nascer, ou crescer e aprender a desprezar,
Enquanto a TV no canto retumbava
Para abafar os gemidos e imprecações de algumas ‘pobres almas’,
E ela tomava seus comprimidos e piscava e fixava o olhar
Enquanto os outros vagueavam, e babavam, e praguejavam…
Mas agora ela estava deitada aqui, um grosso elástico
Com seu nome escrito em tinta preta borrada era tudo o que ela usava
Na mão que eu segurava, uma mão manchada e enrugada
Cujos dedos não podiam mais apertar os meus
Ou acenar hesitantes, ou tatear minha manga –
As últimas palavras que ela dissera foram Por favor, não vá embora
Mas é claro que eu fui; agora eu estava de volta, embora ela
Não pudesse saber disso, ou virar o rosto para ver
Uma enfermeira trazer a malinha com os seus pertences para mim.

Trad.: Nelson Santander

Effects

I held her hand, that was always scarred
From chopping, slicing, from the knives that lay in wait
In bowls of washing-up, that was raw,
The knuckles reddened, rough from scrubbing hard
At saucepan, frying pan, cup and plate
And giving love the only way she knew,
In each cheap cut of meat, in roast and stew,
Old-fashioned food she cooked and we ate;
And I saw that they had taken off her rings,
The rings she’d kept once in her dressing-table drawer
With faded snapshots, long-forgotten things
(Scent-sprays, tortoise-shell combs, a snap or two
From the time we took a holiday ‘abroad’)
But lately had never been without, as if
She wanted everyone to know she was his wife
Only now that he was dead. And her watch? –
Classic ladies’ model, gold strap – it was gone,
And I’d never known her not have that on,
Not in all the years they sat together
Watching soaps and game shows I’d disdain
And not when my turn came to cook for her,
Chops or chicken portions, English, bland,
Familiar flavours she said she preferred
To whatever ‘funny foreign stuff’
Young people seemed to eat these days, she’d heard;
Not all the weeks I didn’t come, when she sat
Night after night and stared unseeing at
The television, at her inner weather,
Heaved herself upright, blinked and poured
Drink after drink, and gulped and stared – the scotch
That, when he was alive, she wouldn’t touch,
That was her way to be with him again;
Not later in the psychiatric ward,
Where she blinked unseeing at the wall, the nurses
(Who would steal anything, she said), and dreamt
Of when she was a girl, of the time before
I was born, or grew up and learned contempt,
While the TV in the corner blared
To drown some ‘poor soul’s’ moans and curses,
And she took her pills and blinked and stared
As the others shuffled round, and drooled, and swore…
But now she lay here, a thick rubber band
With her name on it in smudged black ink was all she wore
On the hand I held, a blotched and crinkled hand
Whose fingers couldn’t clasp mine any more
Or falteringly wave, or fumble at my sleeve –
The last words she had said were Please don’t leave
But of course I left; now I was back, though she
Could not know that, or turn her face to see
A nurse bring the little bag of her effects to me.

Stanley Plumly – Rinoceronte branco

O último da minha espécie, um dos últimos apreciadores das flores
e da grama das pastagens do norte, e certamente
um dos poucos habilitados a esfregar as costas no baobá
e no carvalho centenário que ainda sobrevive no quintal.

O truque está na pedra, parecer algo que se soltou
de uma montanha, algo tão sobrante a ponto de não
estar vivo, ainda que se assemelhe, no comportamento, a um sonho raivoso,
do tipo que faz você despertar ofegante falando pra si mesmo

naquele idioma que começa no estômago e no intestino.
A velhice é um disfarce, rija por fora, suave por dentro.
Até minha armadura está virando pó, logo uma pata,
depois a outra, a neuropatia, minha circunspecção, a pegada

ficando maior, mais profunda. Eu mal me reconheço, exceto na
minha memória, exceto quando a mente se sobrepõe ao corpo
solitário. Então eu me arrasto, em parte vazio, em parte
cheio de saudade — Estou meio cego, mas vejo o que vejo,

o meio sol na colina. O tempo de uma vida é longo demais,
então carrego meu tempo daqui para lá, pelos únicos
percursos secos do mundo, o nariz, o chifre, minha grande cabeça pendida,
a tonelagem do meu coração quase mais do que posso carregar.

Trad.: Nelson Santander

White Rhino

The last of my kind, one of the last lovers of flowers
and the lawns of the northern grasses, and certainly
one of the few able to rub backsides with the baobab
and the century-nearing oak still surviving in the yard.

The trick is stone, to look like something broken
from a mountain, something so leftover so as not
to be alive, yet resemble in demeanor dream anger,
the kind that wakes you out of breath talking to yourself

in that language that starts in the belly and the bowel.
Old age is a disguise, the hard outside, the soft inside.
Even the plated armor is turning dust, then one foot
after the other, neuropathy my gravity, the footprint

larger, deeper. I hardly recognize myself except in
memory, except when the mind overwhelms the lonely
body. So I lumber on, part of me empty, part of me
filled with longing—I’m half-blind but see what I see,

the half sun on the hill. How long a life is too long,
as I take my time from here to there, the one world
dried-out distances, nose, horn, my great head lifted down,
the tonnage of my heart almost more than I can carry.

Carlos Drummond de Andrade – Inocentes do Leblon

Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 08/11/2016

Conheça outros livros de Carlos Drummond de Andrade clicando aqui

Robinson Jeffers – Regresso

Um pouco abstratos e um pouco sábios demais,
É tempo de beijarmos a terra novamente,
É tempo de deixar que as folhas chovam dos céus,
Deixar que a rica vida corra para as raízes novamente.
Eu irei para os Sur Rivers feiticeiros,
E neles mergulharei meus braços até o peito.
Encontrarei minha contabilidade onde treme a folha dos amieiros
Com o vento oceânico sobre os seixos do leito
do rio. Eu tocarei as coisas e não mais as reflexões,
Que se reproduzem como silenciosas efêmeras escurecendo o ar,
As nuvens de insetos que cegam nossos apaixonados falcões
Para que eles não possam atacar, e dificilmente voar.
Coisas são o alimento do falcão e nobre é a montanha, Oh elevado
Pico Blanco, íngreme onda do mar em mármore entalhado.

Trad.: Nelson Santander

Return

A little too abstract, a little too wise,
It is time for us to kiss the earth again,
It is time to let the leaves rain from the skies,
Let the rich life run to the roots again.
I will go to the lovely Sur Rivers
And dip my arms in them up to the shoulders.
I will find my accounting where the alder leaf quivers
In the ocean wind over the river boulders.
I will touch things and things and no more thoughts,
That breed like mouthless May-flies darkening the sky,
The insect clouds that blind our passionate hawks
So that they cannot strike, hardly can fly.
Things are the hawk’s food and noble is the mountain, Oh noble
Pico Blanco, steep sea-wave of marble.

Cassiano Ricardo – Testamento

Deixo os meus olhos ao cego
que mora nesta rua.
Deixo a minha esperança
ao primeiro suicida.
Deixo à polícia meu rasto,
a Deus o meu último eco.
Deixo o meu fogo-fátuo
ao mais triste viandante
que se perder sem lanterna
numa noite de chuva.
Deixo o meu suor ao fisco
que me cobriu de impostos;
e a tíbia da perna esquerda
a um tocador de flauta
para, com o seu chilreio,
encantar a mulher e a cobra.
Às coisas belas do mundo
deixo o olhar cerúleo e brando
com que, nas fotografias,
as estarei, sempre, olhando…
Aos noturnos assistentes
de última hora – aos que ficam,
o sorriso interior e sábio
que nunca me veio ao lábio.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 07/11/2016

Abdellatif Laâbi – Por que esta folha?

Por que esta folha?
Salvo por um detalhe,
o mundo não mudou
em tão pouco tempo
Salvo por um detalhe
esta manhã é uma réplica
cinzenta
da anterior
Salvo por um detalhe
o peso esmagador do peito
não se reduziu nem um grama
Salvo por um detalhe
sentimo-nos ainda vivos
um pouco mais
um pouco menos
O mesmo equilíbrio
frágil ou não
Salvo por um detalhe
o de uma pergunta desconcertante:
Por que esta folha
nem mais amarela nem mais verde que as outras
foi a que caiu da árvore?

Trad.: Carlito Azevedo

Pourquoi cette feuille?

Pourquoi cette feuille?
À un détail près
le monde n’a pas changé
en si peu de temps
À un détail près
ce matin est une réplique
grisaille à l’appui
du précédent
À un détail près
le poids écrasant la poitrine
ne s’est pas allégé d’un iota
À un détail près
l’on se sent toujours vivant
un peu plus
un peu moins
Le même équilibre
fragile ou non
À un détail près
celui de cette petite question entêtante:
Pourquoi cette feuille
ni plus jaune ni plus verte que les autres
est-elle tombée de l’arbre?

Jorge Valdés Días-Vélez – Pro nobis

Pro nobis

                                        para José Emilio Pacheco


Uma vez mais, abriu o Averno suas mandíbulas escaldantes.
Assomam os pesadelos e o terror da morte
se o sono o invade e se transforma em chama negra,
se, ao dormir, o levam até ele, ao lagar
luxurioso dos demônios. O menino, mudo,
contempla sua silhueta e chora. Na escuridão 
de sua cama ele se sabe mau se não reza
e não implora o perdão do Espírito Santo
pelos remorsos que o próprio Diabo fomenta.
Por todos os seus pecados pede misericórdia
e diz suas orações, repetidamente,
rogando por sua alma enlameada e pela indigna
vizinha de sua rua que beija seus cílios
toda vez que olha para ele; por sua prima Rebeca
com quinze anos completados às margens de uns peitos
de mel e de serpente; por sua irmã, que guarda
revistas de pin-ups no fundo de seu guarda-roupas;
pelas meninas de sua sala de aula que cheiram a jasmim
e a densa primavera, por todas as atrizes
que torturam seu espírito nas tardes de sábado
depois do catecismo. Por sua grande culpa,
tão somente por sua culpa, pede perdão mil vezes,
até que chega o sono narcótico e ele se perde
naquelas miragens que experimenta em sua própria carne
e em nome do Amor que feriu ao jurar em falso.

Trad.: Nelson Santander
Pro nobis

                                        para José Emilio Pacheco

De nuevo abrió sus fauces calientes el Averno.
Vienen las pesadillas y el terror a morir
si el sueño al invadirlo se vuelve flama negra,
si al dormir se lo llevan a él, al lujurioso
lagar de los demonios. El niño enmudecido
contempla su silueta y llora. En la oscuridad
de su cama se sabe maligno si no reza
y no implora el perdón del Espíritu Santo
por los remordimientos que atiza el mismo Diablo.
Por todos sus pecados pide misericordia
y dice sus oraciones, otra vez y otra,
rogando por su alma enlodada y por la indigna
vecina de su calle que besa sus pestañas
cada vez que le mira; por su prima Rebeca
con quince años cumplidos a orillas de unos pechos
de miel y de serpiente; por su hermana, que guarda
revistas de pin-ups al fondo de su armario;
por las chicas del aula olorosas a jazmín
y a densa primavera, por todas las actrices
que torturan su espíritu la tarde de los sábados
después del catecismo. Por su culpa grandísima,
tan sólo por su culpa dice perdón mil veces,
hasta que llega el sueño narcótico y se pierde
en esos espejismos que vive en carne propia
y en nombre del Amor que hirió al jurar en vano.