Sahar Romani – Tarde na Andaluzia

E por que a geometria não seria igual à divindade 

1000 + 1 + 1 + 1 O que é a fé

senão a confiança no uno & infinito Uma vez


em Granada observei um muro de polígonos

ou eram estrelas ou abelhas ou por um segundo um fulgor

de gladíolos em um campo até que pude ver


uma galáxia planetas girando raios de uma roda

relógios ou botões videiras florescendo um tornado

de um século futuro jardim de elipses


a córnea do meu amante acesa em cada manhã

Deus tão distante & bem na minha frente


Trad.: Nelson Santander

Afternoon in Andalusia


But why wouldn’t geometry equal divinity

1000 + 1 + 1 + 1 What is faith

but trust in one & infinity Once


in Granada I studied a wall of polygons

or was it stars or bees or for a second a flash

of gladiolas in a field until I could see


a galaxy planets spinning spokes on a wheel

clocks or buttons vines blooming a tornado

from a future century garden of ellipses


my lover’s cornea alight each morning

God so far away & right in front of me

Paulo Henriques Britto – De “Três Epifanias Triviais”

As coisas que te cercam, até onde
alcança tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem

nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa —
pois bem: elas vão ficar. Você, não.
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.

O mais é enchimento, e se consome.
As tais Formas eternas, as Idéias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
Muita louça ainda resta de Pompéia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.

As testemunhas cegas da existência,
sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a hora, a tua morte.
(Não que isso tenha a mínima importância.)

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 25/12/2016

Ellen Bass – A dor de deus

Grande pai
que deve ter começado
com tantas expectativas.
Que magnitude de sofrimento,
imensidão de culpa,
desconcertante desespero.
Uma mente do tamanho do sol,
ardendo em nostalgia,
um coração enorme como o de uma baleia-cinzenta
rompendo, fluindo
na água do mar contra o céu claro.
Deus homem ou deus animal,
deus que respira em cada folha plissada,
saco vocal de sapo, penugem e raque —
deus do plutônio e da penicilina, bêbado
dormindo na grade do metrô,
deus de Joana d´Arc, deus de Crazy Horse,
de Lady Day1, que nos põe de joelhos,
deus de Houdini com suas mãos
como um rio, de Einstein, o arrependimento
correndo em suas veias,
deus de Stalin, deus de Somoza,
deus da Grande Marcha2,
do Caminho das Lágrimas3,
dos trens,
deus de Allende e deus de Tookie4,
do colhedor de morangos, o incêndio às suas costas,
deus da meia-noite, deus do inverno,
deus das crianças raptadas e vendidas
com uma semana de hospedagem
e passagem aérea para a Tailândia,
deus em apuros, deus no fim de sua corda —
insone, impotente —
deus desesperado, desvairado, coração de baleia
extraviada em águas rasas, encalhada
na areia, ressequida, empolada, esmagada
pelo peso massivo da gravidade.

Trad.: Nelson Santander

Notas

  1. Lady Day era o outro nome artístico da cantora-compositora Billie Holiday.
  2. A autora se refere à retirada das brigadas do Partido Comunista Chinês (o Exército Vermelho dos Operários e Camponeses da China) para fugir à perseguição do exército do Kuomintang.
  3. segundo a Wikipedia: “O Caminho das Lágrimas foi o nome dado pelos nativos às viagens de recolocações e migrações forçadas, impostas pelo governo dos Estados Unidos da América às diversas tribos de índios que seriam reunidas no chamado “Território Indígena” (atual Estado de Oklahoma), consoante à política de remoção indígena. Os índios habitavam as regiões ao sul da União. A referência à “Trilha das Lágrimas” foi retirada de uma descrição de um nativo da Nação Choctaw em 1831.” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Trilha_das_L%C3%A1grimas)
  4. Stanley Tookie Williams III, ou Tookie, foi um dos fundadores da gangue conhecida como Crips, uma das mais violentas gangues de rua dos Estados Unidos.

God’s Grief

Great parent
who must have started out
with such high hopes.
What magnitude of suffering,
the immensity of guilt,
the staggering despair.
A mind the size of the sun,
burning with longing,
a heart huge as a gray whale
breaching, streaming
seawater against the pale sky.
Man god or beast god,
god that breathes in every pleated leaf,
throat sac of frog, pinfeather and shaft—
god of plutonium and penicillin, drunk
sleeping on the subway grate,
god of Joan of Arc, god of Crazy Horse,
Lady Day, bringing us to our knees,
god of Houdini with hands
like a river, of Einstein, regret
running thick in his veins,
god of Stalin, god of Somoza,
god of the long march,
the Trail of Tears,
the trains,
god of Allende and god of Tookie,
the strawberry picker, fire in his back,
god of midnight, god of winter,
god of rouged children sold
with a week’s lodging
and airfare to Thailand,
god in trouble, god at the end of his rope—
sleepless, helpless—
desperate god, frantic god, whale heart
lost in the shallows, beached
on the sand, parched, blistered, crushed
by gravity’s massive weight.

Ellen Bass – A dor de Deus

Carlos Drummond de Andrade – Fragilidade

Este verso, apenas um arabesco
em torno do elemento essencial – inatingível.
Fogem nuvens de verão, passam aves, navios, ondas,
e teu rosto é quase um espelho onde brinca o incerto movimento,
ai! já brincou, e tudo se fez imóvel, quantidades e quantidades
de sono se depositam sobre a terra esfacelada.
Não mais o desejo de explicar, e múltiplas palavras em feixe
subindo, e o espírito que escolhe, o olho que visita, a música
feita de depurações e depurações, a delicada modelagem
de um cristal de mil suspiros límpidos e frígidos: não mais
que um arabesco, apenas um arabesco
abraça as coisas, sem reduzi-las.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 13/11/2016

Sean Thomas Dougherty – Por que se importar?

Por que se importar?

Porque agora há                   alguém

lá fora com 

um machucado                     no formato exato
                          
                                              de suas palavras.
Why Bother?

Because right now, there is          someone

out there with

a wound                                        in the exact shape
                          
                                                      of your words.

Carlos Drummond de Andrade – Ontem

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez,
escrevo, dissipo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 12/11/2016

Steve Scafidi – Para o último búfalo americano

Porque as palavras fascinam sob a luz vertiginosa das coisas
e a alma é como um animal – caçada e lenta –
este búfalo passeia por mim todas as noites como se eu fosse
algum tipo de pradaria e se agacha contra a escuridão fria,
bufando sob as estrelas enquanto a névoa de sua respiração
eleva-se no ar, e é a sensação mais solitária que eu conheço
aproximar-se lentamente com a mão estendida
para ternamente tocar o pesado crânio peludo e áspero
e afagar aquele enorme lugar entre suas orelhas em que
o que eu penso e o que ele pensa é uma coisa que canta
tão calmamente que, quando eu acordo, raramente me lembro
de caminhar ao lado dele e de sussurrar ao seu ouvido, tranquilamente
percorrendo as milhas, nós dois, como se Cheyenne ou
as luzes de São Francisco fossem nosso improvável destino
e às vezes os trens passam por nós e ninguém se inclina para fora
no escuro com o objetivo de acabar conosco e assim continuamos
de alguma forma e hoje enquanto a quietude sísmica da
terra girava sob os meus pés e enquanto o mundo,
acho eu, continuava, aquela coisa desajeitada se moveu pesadamente
densa e escura através dos sonhos que acredito que continuamos
sonhando, dormindo ou não, e quando a vir
novamente diga que eu sinto muito pelas coisas que você não fez e
depois lhe ofereça um pouco de erva doce e conte-lhe as histórias
que você se lembra sobre a câmara estelar do útero
ou pelo menos a mais nova piada, algo bom para fazer-lhe
companhia, pois, senão, ela não saberá que você está aqui
por amor, e como o mundo esta noite, não se importará
se vivemos ou morremos. Diga-lhe que você sim, e por quê.

Trad.: Nelson Santander

For the Last American Buffalo

Because words dazzle in the dizzy light of things
and the soul is like an animal–hunted and slow–
this buffalo walks through me every night as if I was
some kind of prairie and hunkers against the cold dark,
snorting under the stars while the fog of its breathing
rises in the air, and it is the loneliest feeling I know
to approach it slowly with my hand outstretched
to tenderly touch the heavy skull furred and rough
and stroke that place huge between its ears where
what I think and what it thinks are one singing thing
so quiet that, when I wake, I seldom remember
walking beside it and whispering in its ear quietly
passing the miles, the two of us, as if Cheyenne or
the lights of San Francisco were our unlikely destination
and sometimes trains pass us and no one leans out hard
in the dark aiming to end us and so we continue on
somehow and today while the seismic quietness of
the earth spun beneath my feet and while the world
I guess carried on, that lumbering thing moved heavy
thick and dark through the dreams I believe we keep
having whether we sleep or not and when you see it
again say I’m sorry for things you didn’t do and
then offer it some sweet-grass and tell it stories
you remember from the star-chamber of the womb
or at least the latest joke, something good to keep it
company as otherwise it doesn’t know you are here
for love, and like the world tonight, doesn’t really
care whether we live or die. Tell it you do and why.

Carlos Drummond de Andrade – Viagem na Família

A Rodrigo M.F. de Andrade

No deserto de Itabira
a sombra de meu pai
tomou-me pela mão.
Tanto tempo perdido.
Porém nada dizia.
Não era dia nem noite.
Suspiro? Voo de pássaro?
Porém nada dizia.

Longamente caminhamos.
Aqui havia uma casa.
A montanha era maior.
Tantos mortos amontoados,
o tempo roendo os mortos.
E nas casas em ruína,
desprezo frio, umidade.
Porém nada dizia.

A rua que atravessava
a cavalo, de galope.
Seu relógio. Sua roupa.
Seus papéis de circunstância.
Suas histórias de amor.
Há um abrir de baús
e de lembranças violentas.
Porém nada dizia.

No deserto de Itabira
as coisas voltam a existir,
irrespiráveis e súbitas.
O mercado de desejos
expõe seus tristes tesouros;
meu anseio de fugir;
mulheres nuas; remorso.
Porém nada dizia.

Pisando livros e cartas,
viajamos na família.
Casamentos; hipotecas;
os primos tuberculosos;
a tia louca; minha avó
traída com as escravas,
rangendo sedas na alcova.
Porém nada dizia.

Que cruel, obscuro instinto
movia sua mão pálida
sutilmente nos empurrando
pelo tempo e pelos lugares
defendidos?
Olhei-o nos olhos brancos.
Gritei-lhe: Fala! Minha voz
vibrou no ar um momento,
bateu nas pedras. A sombra
prosseguia devagar
aquela viagem patética
através do reino perdido.
Porém nada dizia.

Vi mágoa, incompreensão
e mais de uma velha revolta
a dividir-nos no escuro.
A mão que eu não quis beijar,
o prato que me negaram,
recusa em pedir perdão.
Orgulho. Terror noturno.
Porém nada dizia.

Fala fala fala fala.
Puxava pelo casaco
que se desfazia em barro.
Pelas mãos, pelas botinas
prendia a sombra severa
e a sombra se desprendia
sem fuga nem reação.
Porém ficava calada.

E eram distintos silêncios
que se entranhavam no seu.
Era meu avô já surdo
querendo escutar as aves
pintadas no céu da igreja;
a minha falta de amigos;
a sua falta de beijos;
eram nossas difíceis vidas
e uma grande separação
na pequena área do quarto.

A pequena área da vida
me aperta contra o seu vulto,
e nesse abraço diáfano
é como se eu me queimasse
todo, de pungente amor.
Só hoje nos conhecermos!
Óculos, memórias, retratos
fluem no rio do sangue.
As águas já não permitem
distinguir seu rosto longe,
para lá de setenta anos…

Senti que me perdoava
porém nada dizia.

As águas cobrem o bigode,
a família, Itabira, tudo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 11/11/2016

Ada Limón – Viaduto

A estrada não era tão perigosa na época,
quando eu caminhava até a mureta de aço,
inclinava meu corpo flexível de menina, e contemplava
a água fria do riacho. Em uma úmida nascente,
a água que corria clara e alta, peixinhos
petiscando areia e lodo, um caranguejo
ensombrado pelos altos juncos das margens.
Eu podia olhar durante horas, algo
sempre novo em cada pedaço aguacento —
uma tampinha de garrafa, uma bota preta de homem, uma rã.
Uma vez, uma carcaça de guaxinim, metade sob
o viaduto, metade fora, apodreceu lentamente
ao longo de meses. Eu o examinava todos os dias,
observando até que os ossos brancos de sua pata
ficassem totalmente sem pele e parecessem estender-se
em direção ao sol à medida em que ele entrava na água,
mostrando todos os seus cinco doces dedos tensos
ainda contraídos. Eu não acho que a venerava,
sua morte, mas eu gostava das evidências
dela, de como parecia com um trabalho diariamente
tomar nota de sua mudança na areia.

Trad.: Nelson Santander

Overpass

The road wasn’t as hazardous then,
when I’d walk to the steel guardrail,
lean my bendy girl body over, and stare
at the cold creek water. In a wet spring,
the water’d run clear and high, minnows
mouthing the sand and silt, a crawdad
shadowed by the shore’s long reeds.
I could stare for hours, something
always new in each watery wedge—
a bottle top, a man’s black boot, a toad.
Once, a raccoon’s carcass half under
the overpass, half out, slowly decayed
over months. I’d check on him each day,
watching until the white bones of his hand
were totally skinless and seemed to reach
out toward the sun as it hit the water,
showing all five of his sweet tensile fingers
still clinging. I don’t think I worshipped
him, his deadness, but I liked the evidence
of him, how it felt like a job to daily
take note of his shifting into the sand.

Carlos Drummond de Andrade – A Noite Dissolve os Homens

A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança… Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo…
O mundo não tem remédio…
Os suicidas tinham razão.

Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais ascender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio…
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 10/11/2016