Francisco Brines – A realidade não permanece

Esta tarde rebelde me leva a Bath
e a ti, mas não à cidade de ruas
tranquilas, nem a quem tu deves ser hoje.
O quarto fica maior na penumbra
enquanto chove suavemente na rua.
Há, na lareira, um fogo que aquece
nossos corpos nus, e que ilumina
o vasto espaço de forma insuficiente.
És a luz que o fogo de teus cabelos
e o íntimo repouso dos lençóis merecem; sobre o tapete,
e contra o vermelho ardente, fazes teu corpo dançar.
Deitas-te ou caminhas, e conversas
subitamente séria, teu sorriso me ouve.
Como se o mundo fosse apenas um vão excesso
em nossas existências solitárias.

Agora que só em nossas vidas
existe tal mundo.
Ou encontraste, de novo, as paredes
do mesmo quarto em um país estranho?
Se contigo o acaso foi tão benigno,
extremo foi seu rigor com quem se lembra
de uma tarde tão longa em Bath,
que penetrou a noite, até as luzes quebradas
de um dia quase eterno.
Aquele quarto, que, por acaso, guarda agora
apenas a memória viva de um único habitante:
aquele que contemplou, de uma cama vazia,
a escassa realidade de um fogo extinto.

Trad.: Nelson Santander

La realidad no permanece

Esta revuelta tarde me lleva a Bath
y a ti, pero no a la ciudad de reposadas
calles, ni a quien tú debes ser en el día de hoy.
La habitación se agranda en la penumbra
mientras llueve en la calle suavemente.
Hay, en la chimenea, un fuego que calienta
nuestros cuerpos desnudos, y que alumbra
el vasto espacio con insuficiencia.
Es la luz que merecen las llamas de tu pelo
y el íntimo reposo de las sábanas; sobre la alfombra,
y contra el rojo ardiente, haces tu cuerpo danza.
Te tiendes o caminas, y conversas
con repentina seriedad, me escucha tu sonrisa.
Como si el mundo fuese sólo un exceso vano
en nuestras solas existencias.
Ahora que sólo en nuestras vidas hay
la existencia del mundo.
¿O acaso has encontrado, de nuevo, las paredes
de igual habitación en un país extraño?
Si contigo el azar fue tan benigno
extrema su rigor con quien recuerda
una tarde tan larga en Bath,
que penetró en la noche, hasta las luces rotas
de un día casi eterno.
Aquella habitación, que, acaso, guarda ahora
sólo el recuerdo vivo de un único habitante:
ese que contemplaba, desde un lecho vacío,
la escasa realidad de un destruido fuego.

José Luís Peixoto – Explicação da Eternidade

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 20/09/2016

Linda Pastan – Dor

Mais fiel
do que um amante ou marido
ela se apega a ti,
dando a si própria o teu sobrenome
como se uma cerimônia tivesse acontecido.

À noite, viras e reviras
procurando pela única
posição suportável,
mas mesmo que finalmente consigas dormir,
ela acorda antes de ti.

Como é pesada,
desalojando com seu volume
toda tua energia vital.
Antes tu parecias não pesar nada,
teus braços poderiam ter sido asas.

Agora cada dedo adiciona uma medida;
tu és puxada para baixo pelo peso
de teu próprio cabelo.
E se tua vida desaparecesse antes de ti,
não correrias atrás dela.

Trad.: Nelson Santander

Pain

More faithful
than lover or husband
it cleaves to you,
calling itself by your name
as if there had been a ceremony.

At night you turn and turn
searching for the one
bearable position,
but though you may finally sleep
it wakens ahead of you.

How heavy it is,
displacing with its volume
your very breath.
Before, you seemed to weigh nothing,
your arms might have been wings.

Now each finger adds its measure;
you are pulled down by the weight
of your own hair.
And if your life should disappear ahead of you
you would not run after it.

W. H. Auden – Blues Fúnebre (em duas traduções de Nelson Ascher)

BLUES FÚNEBRE – 1ª Tradução

Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto — um laço no pescoço —
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.

É hora de apagar estrelas — são molestas —
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.

BLUES FÚNEBRE – 2ª Tradução (2008)

Detenham-se os relógios, cale o telefone,
jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,
façam silêncio os pianos e o tambor sancione
o féretro que sai com seu cortejo atrás.

Aviões acima, circulando em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Pombas de luto ostentem crepe no pescoço
e os guardas ponham luvas negras como breu.

Ele era norte, sul, leste, oeste meus e tanto
meus dias úteis quanto o meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto.
Julguei o amor eterno: quem o faz se engana.

Apaguem as estrelas: já nenhuma presta.
Guardem a lua. Arriado, o sol não se levante.
Removam cada oceano e varram a floresta.
Pois tudo mais acabará mal de hoje em diante.

Ambas as traduções de Nelson Ascher

Funeral Blues

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message ‘He is Dead’.
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun,
Pour away the ocean and sweep up the woods;
For nothing now can ever come to any good.

Brigit Pegeen Kelly – A partida

Meu pai disse que eu não conseguiria fazê-lo,
mas por toda noite eu colhi os pêssegos.
O pomar estava silencioso, os canais funcionavam incessantemente.
Eu era uma menina na época, meu peito era seu próprio jardim murado.
Quantas são as escadas para a colheita em um pomar?
Eu tinha apenas uma e uma grande paciência com as mãos acesas
e o olhar das estrelas que se moviam através de mim
como a água se movia pelos canais com uma voz
que parecia falar desta colheita sem luar
e daqueles que colheram antes de mim.
Coloquei os pêssegos na água fria da lagoa,
a noite toda subindo e descendo a escada, a noite toda torcendo
frutas com as mãos como se estivesse entrando em mil portas,
a noite toda minhas costas como uma estrada reta para o céu.
E então, por sua própria bondade,
dos campos distantes das estrelas a manhã veio,
e dentro de mim estava a quietude que um sino possui
logo após ter sido tocado, antes que o metal
comece a ansiar novamente pelo golpe do badalo.
A luz inundou o pomar.
Os canais eram de prata e depois já não eram,
e a lagoa estava – pude ver quando coloquei
o último pêssego na água – cheia de peixes e olhos.

Trad.: Nelson Santander

The Leaving

My father said I could not do it,
but all night I picked the peaches.
The orchard was still, the canals ran steadily.
I was a girl then, my chest its own walled garden.
How many ladders to gather an orchard?
I had only one and a long patience with lit hands
and the looking of the stars which moved right through me
the way the water moved through the canals with a voice
that seemed to speak of this moonless gathering
and those who had gathered before me.
I put the peaches in the pond’s cold water,
all night up the ladder and down, all night my hands
twisting fruit as if I were entering a thousand doors,
all night my back a straight road to the sky.
And then out of its own goodness, out
of the far fields of the stars, the morning came,
and inside me was the stillness a bell possesses
just after it has been rung, before the metal
begins to long again for the clapper’s stroke.
The light came over the orchard.
The canals were silver and then were not.
and the pond was–I could see as I laid
the last peach in the water–full of fish and eyes.

João Cabral de Melo Neto – A Viagem

Quem é alguém que caminha
toda manhã com tristeza
dentro de minhas roupas, perdido
além do sonho e da rua?

Das roupas que vão crescendo
como se levassem nos bolsos
doces geografias, pensamentos
de além do sonho e da rua?

Alguém a cada momento
vem morrer no longe horizonte
de meu quarto, onde esse alguém
é vento, barco, continente.

Alguém me diz toda a noite
coisas em voz que não ouço.
Falemos na viagem, eu lembro.
Alguém me fala na viagem.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 09/09/2016

Ellen Bass – Pelo tempo que quiser

No caminho para o cemitério, eu dormi.
Não na limusine que levava o caixão da minha mãe,
mas apagada em uma van, a família toda falando ao meu redor.
Eu estava exausta do sofrimento dela, de seus apelos —
me ajuda e chega, chega
e tentando fazer com que a morfina permanecesse na vala de suas gengivas.
Como pude não ter estudado isso com antecedência?
A maneira como minha mãe aprendeu a dar injeções no curso de enfermagem,
enfiando a agulha em uma laranja
e praticando nas outras meninas.
Deus só nos dá força para um dia de cada vez.
Quantas vezes eu a ouvi dizer isso?
Pergunte a si própria, eu posso fazer este dia?
E então ela fez seu último dia.
No caminho de volta, o motorista se perdeu. Enquanto circulávamos por entre
campos desconhecidos e árvores com flores estonteantes, começamos a imaginar
que poderíamos comprar algumas terras.
Com cavalos. E um lago. Tudo parecia possível.
E hilário. Estávamos um pouco histéricos,
dirigindo-nos para o luxo do futuro.
Nunca mais retornei ao túmulo da minha mãe.
Mas eu a vejo todos os dias. Ei-la de botas de canos curtos,
voltando da praia com um jarro de água do mar.
Todas as manhãs ela me dá uma colherada. Minerais.
Algo que ela leu no Pleasantville Press.
Aqui ela embrulha canecas e copos no mesmo papel,
depositando-os em sacolas pardas.
Ela está contando moedas nas mãos dos clientes,
cuidando para tocar em suas palmas.
E aqui, em seu roupão numa noite de sábado. A loja acabou de fechar.
Ela morde um sanduíche de carne e cebolas, toma uma cerveja.
Amanhã de manhã ela pode dormir até tarde. Há uma lei
em Nova Jersey que obriga as lojas de bebidas a fechar aos domingos.
Uma lei abençoada que permite que minha mãe durma…
e depois se sente com um cigarro e um café preto,
uma perna robusta cruzada sobre a outra.
Ela pode sentar-se ali pelo tempo que quiser.

Trad.: Nelson Santander

Publicada na revista The New Yorker de 11/04/2022 (https://www.newyorker.com/magazine/2022/04/18/as-long-as-she-likes)

As long as she likes

On the way to the cemetery, I slept.
Not in the limousine that carried my mother’s coffin
but out cold in a van, the family all talking around me.
I was exhausted from her suffering, her pleas—
help me and enough, enough
and trying to get the morphine to stay in the ditch of her gums.
How could I not have studied this in advance?
The way my mother learned to give shots in nursing school,
plunging the needle into an orange
then practicing on the other girls.
God only gives you strength for one day at a time.
How many times did I hear her say this?
Ask yourself, can I make this day?
And then she made her last day.
On the way back, the driver got lost. As we circled unfamiliar
fields and trees dizzy with blossoms, we began to imagine
we could buy some land.
Horses. A lake. Everything seemed possible.
And hilarious. We were a little hysterical,
driving into the luxury of the future.
I’ve never returned to my mother’s grave.
But I see her every day. Here she is in short boots,
coming back from the beach with a jar of seawater.
Each morning she feeds me a spoonful. Minerals.
It’s something she read in the Pleasantville Press.
Here she’s wrapping pints and quarts in that same paper,
sliding them into brown bags.
She’s counting out coins into the customers’ hands,
careful to touch their palms.
And here in her bathrobe on a Saturday night. The store just closed.
She bites into a hoagie, steak and onions, sips a beer.
Tomorrow morning she can sleep late. There’s a law
in New Jersey that liquor stores have to close on Sunday.
A blessed law that lets my mother sleep . . .
and then sit down with a cigarette and black coffee,
one strong leg crossed over the other.
She can sit there as long as she likes.

Lewis Carroll – Jaguadarte

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

“Foge do Jaguadarte, o que não morre!
Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Felfel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassurra!”

Ele arrancou sua espada vorpal
E foi atrás do inimigo do Homundo.
Na árvora Tamtam ele afinal
Parou, um dia, sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta,
Chegou o Jaguadarte, ôlho de fogo,
Sorrelfiflando através da floresta,
E borbulia um riso louco!

Um, dois! Um, dois! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!
Cabeça fere, corta, e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfante.

“Pois então tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!”
Êle se ria jubileu.

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

Trad.: Augusto de Campos

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 08/09/2016

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Jabberwocky

‘Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths outgrabe.

“Beware the Jabberwock, my son!
The jaws that bite, the claws that catch!
Beware the Jubjub bird, and shun
The frumious Bandersnatch!”

He took his vorpal sword in hand:
Long time the manxome foe he sought—
So rested he by the Tumtum tree,
And stood awhile in thought.

And, as in uffish thought he stood,
The Jabberwock, with eyes of flame,
Came whiffling through the tulgey wood,
And burbled as it came!

One, two! One, two! And through and through
The vorpal blade went snicker-snack!
He left it dead, and with its head
He went galumphing back.

“And hast thou slain the Jabberwock?
Come to my arms, my beamish boy!
O frabjous day! Callooh! Callay!”
He chortled in his joy.

‘Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths outgrabe.

Ellen Bass – Pinheiros de Ponary

Pinheiros de Ponary

Cem mil pessoas foram assassinadas pelos nazistas em Ponary, dez quilômetros a sudoeste de Vilnius, onde minha avó nasceu.

Hoje está cinzento, garoa,
mas não o suficiente para que as gotas se acumulem
nas pontas das agulhas de prata
ou para encharcar as cascas dos pinheiros de Ponary –
alguns deles com mais de um século.
Eles estavam aqui quando
os trens circulavam sobre os trilhos
dormentes. E antes de adentrar
três metros na floresta, eu ouço o som.
Claro. Tinha que existir um trem.
Mas eu não esperava que ainda funcionasse
assim, as pessoas
entrando e saindo com seus pacotes.
Eu não havia pensado no cheiro de resina se espalhando na tarde fria. As árvores
avançam até a borda
dos fossos onde os judeus eram abatidos
de forma que seus corpos caíssem
com eficiência. Seus ramos não puderam salvar
ninguém. Suas agulhas ofereceram oxigênio
às vítimas e aos verdugos, da mesma forma.

Trad.: Nelson Santander

Pines at Ponary

One hundred thousand people were murdered by the Nazis at Ponary, ten kilometers southwest of Vilnius, where my grandmother was born.

Today is gray, drizzling,
but not enough for drops to pool
on the tips of the silver needles
or soak the bark of the pines at Ponary –
some of them more than a century old.
They were here when
the trains wheeled on numb
rails. And before I have gone
ten feet into the forest, I hear the sound.
Of course. There would have to be a train.
But I hadn’t expected it still to run
like this, people
getting off and on with their packages.
I hadn’t thought of the scent of resin spilling into the cold afternoon. The trees
step to the rim
of the pits where Jews were shot
so the bodies fell in
efficiently. Their branches could save
no one. Their needles offered oxygen
to victims and executioners, the same.

Ada Limón – Instruções para não desistir

Mais do que os funis fúcsia rompendo
da macieira, mais do que a exibição quase
obscena dos galhos da cerejeira do vizinho enfiando
suas flores cor de algodão doce no céu ardósia
das chuvas de primavera, é o verdejar das árvores
que realmente me comove. Quando todo o embate de branco
e caramelo e os berloques e bugigangas do mundo deixam,
de rescaldo, a calçada repleta de confetes espalhados,
as folhas vêm. Paciente, laboriosa, uma pele verde
cresce sobre o que quer que o inverno nos tenha feito, um retorno
à estranha ideia de uma vida contínua, apesar
do caos entre nós, da dor, do vazio. Tudo bem então,
a árvore parece dizer, eu farei uma folha nova e escorregadia
se desdobrar como um punho aberto, eu o farei.

Trad.: Nelson Santander

Instructions on Not Giving Up

More than the fuchsia funnels breaking out
of the crabapple tree, more than the neighbor’s
almost obscene display of cherry limbs shoving
their cotton candy-colored blossoms to the slate
sky of Spring rains, it’s the greening of the trees
that really gets to me. When all the shock of white
and taffy, the world’s baubles and trinkets, leave
the pavement strewn with the confetti of aftermath,
the leaves come. Patient, plodding, a green skin
growing over whatever winter did to us, a return
to the strange idea of continuous living despite
the mess of us, the hurt, the empty. Fine then,
I’ll take it, the tree seems to say, a new slick leaf
unfurling like a fist to an open palm, I’ll take it all.