O funil da ampulheta
apressa, retardando-a,
a queda
da areia.
Nisso imita o jogo
manhoso
de certos momentos
que se vão embora
quando mais queríamos
que ficassem.
Nelson Santander
O funil da ampulheta
apressa, retardando-a,
a queda
da areia.
Nisso imita o jogo
manhoso
de certos momentos
que se vão embora
quando mais queríamos
que ficassem.
Há um ano que os teus gestos andam
ausentes da nossa freguesia
Tu que eras destes campos
onde de novo a seara amadurece
donde és hoje?
Que nome novo tens?
Haverá mais singular fim de semana
do que um sábado assim que nunca mais tem fim?
Que ocupação é agora a tua
que tens todo o tempo livre à tua frente?
Que passos te levarão atrás
do arrulhar da pomba em nossos céus?
Que te acontece que não mais fizeste anos
embora a mesa posta continue à tua espera
e lá fora na estrada as amoreiras tenham outra vez
florido?
Era esta a voz dele assim é que falava
dizem agora as giestas desta sua terra
que o viram passar nos caminhos da infância
junto ao primeiro voo das perdizes
Já só na gravata te levamos morto àqueles caminhos
onde deixaste a marca dos teus pés
Apenas na gravata. A tua morte
deixou de nos vestir completamente
No verão em que partiste bem me lembro
pensei coisas profundas
É de novo verão. Cada vez tens menos lugar
neste canto de nós donde anualmente
te havemos piedosamente de desenterrar
Até à morte da morte
Possuem já os espinhos
verdor novo na colina,
toda de púrpura e neve
pelo ar estremecida.
Quantos céus em flor já viste?
Embora ao encontro eles
serão sempre devotados,
tu não o serás um dia.
Antes que a penumbra caia,
sabe o que a alegria é
junto aos espinhos vermelhos
e alvos em flor. Olha. Vê.
Trad.: Nelson Santander
Los Espinos
Verdor nuevo los espinos
tienen ya por la colina,
toda de púrpura y nieve
en el aire estremecida.
Cuántos cielos florecidos
les has visto; aunque a la cita
ellos serán siempre fieles,
tú no lo serás un día.
Antes que la sombra caiga,
aprende cómo es la dicha
ante los espinos blancos
y rojos en flor. Vé. Mira.
Estamos desperdiçando a páscoa, moças,
Estamos desperdiçando a páscoa!
Moçoilas do meu distrito,
Louquinhas e confiantes,
Que não vos engane o tempo,
a idade e a confiança.
Não deixeis cortejar-vos
o frescor da juventude,
porque de flores caducas
tece o tempo suas grinaldas.
Estamos desperdiçando a páscoa, moças,
Estamos desperdiçando a páscoa!
Voam os velozes anos,
e com pressurosas asas
nos afanam, como harpias,
nossas saborosas carnes.
É a flor da maravilha
Que a verdade nos declara,
Porque subtrai à tarde
O que lhe deu a manhã.
Estamos desperdiçando a páscoa, moças,
Estamos desperdiçando a páscoa!
Notai que quando pensais
que os sinos da vida anun-
ciam os sinais da aurora
já é o fim, e os apartam
de vossa cor e esplendor,
de vossa elegância e graça,
e estais todas perdidas,
além das próprias idades.*
Estamos desperdiçando a páscoa, moças,
Estamos desperdiçando a páscoa!
Sei de uma boa velhinha
Que um dia foi loira e clara
E hoje muito lhe custa
Entrever o próprio rosto,
Porque sua lustrosa face
E suas bochechas estão
Mais murchas e enrugadas
Do que roquete de bispo.
Estamos desperdiçando a páscoa, moças,
Estamos desperdiçando a páscoa!
E sei de outra boa idosa
Com um dente cai-não-cai
Deixou-o no outro dia
Sepultado em chantili,
E com lágrimas lhe disse:
“Dente meu de minha alma,
Eu sei quando foste pérola,
E agora não és mais branco.”
Estamos desperdiçando a páscoa, moças,
Estamos desperdiçando a páscoa!
Por isso, moçoilas loucas,
Antes que a velhice avara
Os loiros cabelos fulvos
Converta em luzente prata,
Amai quando amadas fordes,
Se houver oportunidade.
Trad.: Nelson Santander
¡Que se nos va la Pascua, mozas
¡Que se nos va la Pascua, mozas,
Que se nos va la Pascua!
Mozuelas las de mi barrio,
Loquillas y confiadas,
Mirad no os engañe el tiempo,
La edad y la confianza.
No os dejéis lisonjear
De la juventud lozana,
Porque de caducas flores
Teje el tiempo sus guirnaldas.
¡Que se nos va la Pascua, mozas,
Que se nos va la Pascua!
Vuelan los ligeros años,
Y con presurosas alas
Nos roban, como harpías,
Nuestras sabrosas viandas.
La flor de la maravilla
Esta verdad nos declara,
Porque le hurta la tarde
Lo que le dio la mañana.
¡Que se nos va la Pascua, mozas,
Que se nos va la Pascua!
Mirad que cuando pensáis
Que hacen la señal del alba
Las campanas de la vida,
Es la queda, y os desarman
De vuestro color y lustre,
De vuestro donaire y gracia,
Y quedáis todas perdidas
Por mayores de la marca.*
¡Que se nos va la Pascua, mozas,
Que se nos va la Pascua!
Yo sé de una buena vieja
Que fue un tiempo rubia y zarca,
Y que al presente le cuesta
Harto caro el ver su cara,
Porque su bruñida frente
Y sus mejillas se hallan
Más que roquete de obispo
Encogidas y arrugadas.
¡Que se nos va la Pascua, mozas,
Que se nos va la Pascua!
Y sé de otra buena vieja,
Que un diente que le quedaba
Se lo dejó este otro día
Sepultado en unas natas,
Y con lágrimas le dice:
«Diente mío de mi alma,
Yo sé cuándo fuistes perla,
Aunque ahora no sois caña.»
¡Que se nos va la Pascua, mozas,
Que se nos va la Pascua!
Por eso, mozuelas locas,
Antes que la edad avara
El rubio cabello de oro
Convierta en luciente plata,
Quered cuando sois queridas,
Amad cuando sois amadas,
Mirad, bobas, que detrás
Se pinta la ocasión calva.
¡Que se nos va la Pascua, mozas,
Que se nos va la Pascua!
Nota do tradutor: de acordo com Dámaso Alonso as expressões “mayor es de la marca” ou “de más de lamarca” se referiam a espadas ou outros objetos que excediam o tamanho permitido. Cervantes a emprega inúmeras vezes referindo-se a espadas. A expressão se generalizou e logo passou a significar “o que excedia o permissível ou tolerável” (…) Desta ampliação de significado se vale Góngora para dizer que as moças estarão perdidas, mais velhas do que a própria idade para o amor” (ALONSO, Dámaso. Góngora y el Polifemo. v. 2. Madrid: Gredos, 1967 – https://revistas.ufpr.br/letras/article/download/18945/12265 ).
“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
Os Beatles ainda não tinham surgido, nem haviam abatido Che Guevara.
Nat King Cole cantava ansiedad de tenerte en mis brazos ou solamente una vez se entrega el alma.
e no cinema talvez exibissem Sete noivas para sete irmãos.
O comandante Armstrong ainda não havia deixado sua profana pegada no rosto esburacado da lua.
Os velhos seguiam contando histórias da guerra ao calor da fogueira.
Estavam longe o Vietnã, os hippies, a Primavera, Maio1 e esta discreta liberdade… para fazer o quê?
Trad.: Nelson Santander
Al dorso de una vieja fotografía
Todavía no habían llegado los Beatles, ni habían acribillado a Che Guevara.
Nat King Cole cantaba por la radio ansiedad de tenerte en mis brazos o solamente una vez se entrega el alma.
y en el cine tal vez ponían Siete novias para siete hermanos.
Todavía el comandante Armstrong no había dejado su profana huella sobre el picado rostro de la luna.
Todavía los viejos seguían contando historias de la guerra al calor de la lumbre.
Quedaban lejos Vietnam, los hippies, la Primavera, el Mayo y esta discreta libertad… ¿para hacer qué?
1
Que faz a defunta manhã
na manhã nova?
Que sois vós hoje
alegria de outrora
riso extinta palavra de afeto?
que sois vós
senão fantasmas
senão miasmas
a infectar
de morte
o que está vivo?
2
Se há sol no pátio
e um carro penetra nele
e estaciona
e o chofer desce
bate a porta
e sai andando
se isto é isto
e nada mais
que isto,
te manténs no que vês
e estás feliz:
entendes finalmente
que o passado
é pura doença.
Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
És tu antes de partir,
quando ainda vivias em casa.
O olhar brilhante que nos recompensava.
Teu nome foi ficando para trás,
na foto de onde ainda nos sorris
como se tudo fosse para sempre
e nada tivesse acontecido em outro lugar,
nem no sorriso que hoje desconhecemos,
longe do que teu rosto exibe neste álbum.
Este sorriso, agora, é só para nós:
convive com cartas, bonecas e desenhos,
suvenires que desvelam a manhã
que entra pela tua varanda. Às vezes pronunciamos
teu nome de um jeito mais jovial, como antes.
Talvez assim continues aqui
e teu nome preserve as memórias mais fiéis
para seguir contigo ao nosso lado.
Trad.: Nelson Santander
En El Álbum
Eres tú antes de irte,
cuando vivías todavía en casa.
La mirada brillante que nos recompensó.
Tu nombre se nos fue quedando atrás,
en la fotografía donde aún nos sonríes
como si todo fuese para siempre
y nada sucediera en otro sitio,
ni en la sonrisa que hoy desconocemos,
lejos de la que tiene tu cara en este álbum.
Esta sonrisa, ahora, sólo es para nosotros:
convive con las cartas, muñecas y dibujos,
recuerdos que desvela la mañana
que entra por tu balcón. A veces pronunciamos
tu nombre de una forma más joven, como antes.
Quizá de esta manera continúas aquí
y tu nombre protege los recuerdos más fieles
para vivir contigo a nuestro lado.
Há em todas as coisas uma mais-que-coisa
fitando-nos como se dissesse: “Sou eu”,
algo que já lá não está ou se perdeu
antes da coisa, e essa perda é que é a coisa.
Em certas tardes altas, absolutas,
quando o mundo por fim nos recebe
como se também nós fôssemos mundo,
a nossa própria ausência é uma coisa.
Então acorda a casa e os livros imaginam-nos
do tamanho da sua solidão.
Também nós um dia tivemos um nome
mas, se alguma vez o ouvimos, não o reconhecemos.