Wislawa Szymborska – Mapa

Plano como a mesa
na qual está colocado.
Debaixo dele nada se move
nem busca vazão.
Sobre ele – meu hálito humano
não cria vórtices de ar
e deixa toda a sua superfície
em silêncio.

Suas planícies, vales, são sempre verdes,
os planaltos, montanhas, amarelos e marrons
e os mares, oceanos, de um azul delicado
nas margens fendidas.

Tudo aqui é pequeno, próximo, acessível.
Posso tocar os vulcões com a ponta da unha,
acariciar os polos sem luvas grossas.
Com um olhar posso
abarcar cada deserto
junto com o rio logo ali ao lado.

Selvas são assinaladas com arvorezinhas
entre as quais seria difícil se perder.

No Ocidente e Oriente
acima e abaixo do equador –
assentou-se um manso silêncio.
Pontinhos pretos significam
que ali vivem pessoas.
Valas comuns e súbitas ruínas
não cabem nesse quadro.
As fronteiras dos países mal são visíveis
como se hesitassem entre ser e não ser.

Gosto dos mapas porque mentem.
Porque não dão acesso à dura verdade.
Porque, generosos e bem-humorados,
estendem-me na mesa um mundo
que não é deste mundo.

Trad.: Regina Przybycien

Jorge Sousa Braga – Litania

Estava sentado numa sala anexa ao bloco operatório
e uma enfermeira passou com o teu útero num saco de plástico transparente
Com o teu útero com a minha primeira casa e a de meus irmãos
ainda escorrendo sangue
Uma pequena construção toda em pedra
com divisões de tijolo e cal hidráulica
e janelas abrindo para o vale
Com o teu útero
Com a memória do pão depois de levedado e da tua saia comprida cheia de farinha
Com a memória de uma gema de ovo
Com o teu útero
Com a memória de uns sapatos demasiado apertados
Com a memória do giz e do ferro a carvão e dos alinhavos
Na minha alma antes de ser posta à prova
Com o teu útero
Com a memória de uma véspera de Natal das rabanadas e da aletria
E das águas que de súbito inundaram o soalho da cozinha
Com a memória agitada dessas águas
Com o teu útero
Com a memória de uma explosão de mimosas
Com a memória do cheiro a flor de laranjeira e a neroli
Com o teu útero
Que o anátomo-patologista dentro em pouco se encarregaria de retalhar
Com a lâmina do bisturi

Nuno Júdice – Nostalgia de setembro

Quando vinham as nuvens de setembro, já
os pássaros tinham emigrado para além dos mares,
o campo ficava em longos silêncios
que só a passagem dos rebanhos, a caminho
do matadouro, cortava num tropel que ecoava
ainda, depois da paisagem, com os gritos
do pastor e o ladrar dos cães. Eu gostava dessas nuvens
quando começavam as primeiras chuvas, e podia
ouvir o bater dos pingos na janela, empurrados
pelo vento, e o ruído da água a correr nas goteiras,
e a inundar as valetas, arrastando o lixo
e as memórias do verão. Porém, ainda te vejo,
com o vestido encharcado e os cabelos a escorrerem
água para os ombros, como se não te importasses
com a chuva. Nunca soube quem eras, nem
porque passeavas no campo como se estivesse
um dia de sol. Talvez fosses uma sobrevivente do
verão; e ainda hoje me arrependo de não te
ter seguido, para lá da curva do caminho em que
te perdi de vista, para que esse verão continuasse
comigo, para sempre, através da tua imagem.

A. M. Pires Cabral – O Vento

É fácil dizer que o vento
tem gatos na voz
enfurecidos.

Que afaga e despenteia,
traz a chuva.

Que levanta as telhas,
exercita na noite
os nossos mais pesados
pesadelos.

É fácil ser poeta
à custa do vento.

Fingir que não sabemos
que o vento não é senão
o vazio que muda de lugar.

Carlos Bousoño – À distância

Passa a juventude, e passa a vida,
passa o amor, a morte também passa,
o vento, a amargura que trespassa
a pátria espessa, hirta e adormecida.

Adormecida, em sonho eterno, olvida.
Mortos e vivos na mesma argamassa
dormem igual sina e alegria escassa.
Pátria, profundeza, pedra perdida.

Pedra perdida, imersa, vivos, mortos.
Toda Espanha dorme já sua história.
As campinas tristes e os céus hirtos.

Sobre a folha escrita está tua glória:
pretender edificar nos desertos;
ambicionar à luz mais ilusória.

Trad.: Nelson Santander

Desde lejos

Pasa la juventud, pasa la vida,
pasa el amor, la muerte también pasa,
el viento, la amargura que transpasa
la patria densa, inmóvil y dormida.

Dormida, en sueño para siempre, olvida.
Muertos y vivos en la misma masa
duermen común destino y dicha escasa.
Patria, profundidad, piedra perdida.

Piedra perdida, hundida, vivos, muertos.
España entera duerme ya su historia.
Los campos tristes y los cielos yertos.

Sobre el papel escrita está su gloria:
querer edificar en los desiertos;
aspirar a la luz más ilusoria.

David Teles Pereira – Tractatus de Legibus ac Deo Legislatore (Livro III, Capítulo II)

      Ao meu avô

Nunca mais me irás interromper
ao comentar uma passagem do de Legibus de Francisco Suárez,
mas, por agora, a nuvem castanha que te ocupa
o peito sufoca-me a voz.

As nossas leis não chegam para acalmar todos os vícios
e o pior de todos é chorar-te
por não te poder dizer, seguindo Castro, seguindo Suárez,
que nenhum poder pertence a um só homem,
mesmo a um com umas mãos como as tuas
capazes de me virar as costuras aos olhos.

O teu pacto, se é que me diz respeito, chegou invisível,
insípido a escoar entre portas, sem nunca refazer
o fio bruto que nos chegou a prender um ao outro, homem a homem.

Deve ser por causa do sangue, com certeza,
que acentua a intelectualidade da questão,
tal como na poesia, tens de concordar, muito embora
nunca tenhamos entre os dois
esboçado mais que um par de incompreensões a propósito disto.

É uma pena que não possas ver o teu próprio rosto de mármore.
Quase comoves
rindo, como todos nós, ao abandono.

Maria do Rosário Pedreira – À avó

Ficou vazio o teu lugar à mesa. Alguém veio dizer-nos
que não regressarias, que ninguém regressa de tão longe.
E, desde então, as nossas feridas têm a espessura
do teu silêncio, as visitas são desejadas apenas
a outras mesas. Sob a tua cadeira, o tapete
continua engelhado, como à tua ida.
Provavelmente ficará assim para sempre.

No outro Natal, quando a casa se encheu por causa
das crianças e um de nós ocupou a cabeceira,
não cheguei a saber
se era para tornar a festa menos dolorosa,
se para voltar a sentir o quente do teu colo.

Helder Moura Pereira – “Eras mesmo a fonte de tudo…”

Eras mesmo a fonte de tudo, pelo menos
naquele dia a que chamamos perfeito.
Os dias tinham-se entranhado nos dias,
a tal ponto que a vida era só dias, dias
a seguir uns aos outros. Apenas dias.
De olhos vendados e sem bater numa única
parede, pegados a isto, ao cheiro reconhecido
só quando um dos corpos se afasta.
Sente-se a falta, eu farejo como um cão
e depois sento-me triste a um canto
com um livro na mão. Mas naquele dia
que ambos classificamos de perfeito
eu pude ver a vida ali desdobrada em duas
à minha frente. E a tua inocência poderosa
a dizer-me uma vez sem exemplo faz
de mim o que quiseres, dobra o cabo
dos trabalhos e atira-te de cabeça.

Andreia C. Faria – “Espero o dia em que possa…”

Espero o dia em que possa
deixar crescer as unhas
as meias por cerzir
a boca
sem propósito de beijar.

O dia que misture à noite
uma respiração de espelhos,
um registro acidental, mortificado,
ou o livro que se leu na tarde até perder a luz.

Que a natureza avance em mim sem esperança de ressurgimento.
Afagarei um cão
sem medo de guardar mãos ásperas.

E em ti não pensarei. Entre nós uma opressão de mundos,
distâncias sem cura
(do autocarro para os subúrbios, do crente
relativamente a deus),
uma disciplina oposta ao prazer.

Espero o dia em que console e gaste o corpo
um rio sujo à minha porta,
a corrente escura dos teus ombros,
uma paisagem sem apelo
abrindo as mãos dentro de mim.

Juan Vicente Piqueras – Confissão do fugitivo

Só sou feliz partindo.

Não entre quatro paredes, à mercê das espadas,
mas entre aqui e ali, uma e outra casa,
ambas de preferência alheias.

Já não posso, nem quero, estar quieto.
Nem agora nem depois. Nem aqui nem ali.
Em todo caso aí, onde tu estás,
seja tu quem fores, põe o teu nome
nos meus lábios sedentos, insaciáveis.

Eu não sou eu nem posso ter casa.
Não digo já porque foi sempre assim,
nunca a tive, sempre fui estrangeiro
dentro e fora de mim. Sou o que sou:
o mendigo que dorme debaixo da ponte
que une as minhas duas margens e que cruzo
dia e noite sem poder deter-me.

Escrevo porque procuro, porque espero.
Mas já não sei o quê, perdeu-se na memória.
Espero que escrevendo
acabe por lembrar-me. Insisto na intempérie.

Sobrevivo entre parêntesis
no espaço vivo e no tempo morto
da espera de que, entre dois aquis.

Nunca em mas entre. sai de mim,
sejas quem fores, deixa-me em paz
ou acaba já comigo e com o mel
amargo de estar só a falar só.

Decidi que a minha pátria seja
não decidir, não estar em nenhum sítio
mas de passagem, pontes, naves, comboios,
onde eu seja só o passageiro
que sei que sou, sentindo
que me inquieta a paz,
que a quietude me assusta,
que a segurança não me interessa,
que só sou feliz quando me sei fugaz.

Trad.: João Duarte Rodrigues e Manuel Alberto Valente

Confesión del fugitivo

Sólo soy feliz yéndome.

No entre cuatro paredes, con sus sendas espadas,
sino entre aquí y allí, una casa y otra,
ajenas ambas preferiblemente.

No puedo ya, ni quiero, estarme quieto.
Ni ahora ni después. Ni aquí ni allí.
En todo caso ahí, donde estás tú,
seas quien seas tú, ponme tu nombre
en los labios sedientos, insaciables.

Yo no soy yo ni puedo tener casa.
No digo ya porque nunca lo fui,
nunca la tuve, siempre fui extranjero
dentro y fuera de mí. Soy lo que no:
el mendigo que duerme bajo el puente
que une mis dos orillas y yo cruzo
sin poder, día y noche, detenerme.

Escribo porque busco, porque espero.
Pero ya no sé qué, se me ha olvidado.
Espero que escribiendo
llegue a acordarme. Insisto en la intemperie.

Sinvivo entre paréntesis
en el espacio vivo y tiempo muerto
de la espera de qué, entre dos aquíes.

Nunca en sino entre. Sal de mí,
seas quien seas tú, déjame en paz
o acaba ya conmigo y con la miel
amarga de estar solo hablando solo.

He decidido que mi patria sea
no decidir, no estar en ningún sitio
sino de paso, puentes, naves, trenes,
donde yo sea sólo el pasajero
que sé que soy, sintiendo
que me inquieta la paz,
que la quietud me asusta,
que la seguridad no me interesa,
y sólo soy feliz cuando me sé fugaz.