Rafael Montesinos – Vida

Nasceu. Viveu feliz. Sorveu a vida
de um só e belo trago adolescente.
Buscou a solidão, e se viu frente
a uma atroz, inesperada ferida.

Em desvario, deu para crer em tudo.
“Oh sensatez de não se crer em nada!”,
disse, e depois a alma, entusiasmada
quis sentir a vida de um outro modo.

Farto de falar a um Deus que cala
(oh perigoso coração cansado,
que dá à tua fé uma bengala),

na esperança de outra luz morria.
“Como tarda chegar o novo dia!”,
disse, e passou a dormir do outro lado.

Vida

Nació. Vivió feliz. Sorbió la vida
de un solo y bello trago adolescente.
Buscó su soledad, y hallóse enfrente
de una terrible, inesperada herida.

Dio en la locura de creer en todo.
“¡Oh sensatez de no creer en nada!”,
dijo, y después el alma, ilusionada,
quiso sentir la vida de otro modo.

Harto de hablarle a un Dios sordo a su ruego
(¡oh peligroso corazón cansado,
que le das a tu fe palos de ciego!),

en la esperanza de otra luz moría.
“¡Cuanto tarda en llegar el nuevo día!”,
dijo, y se echó a dormir del otro lado.

Philip Roth – Patrimônio (excerto)

“Quando se visita uma sepultura, todo mundo tem pensamentos mais ou menos iguais, que, abstraída a questão da eloquência, não diferem muito daqueles que Hamlet expressou ao contemplar o crânio de Yorick. Há muito pouco para se pensar ou dizer que não seja uma variante de “Ele me carregou nos ombros mil vezes”. Num cemitério, a gente costuma se dar conta de como são limitados e banais nossos pensamentos sobre o assunto. Ah, pode-se tentar conversar com o morto, caso você acredite que isso possa ser útil; pode-se começar, como fiz naquela manhã, dizendo: “Muito bem, mamãe…”, porém é difícil não pensar – mesmo que se tenha ido além da primeira frase- que você poderia, do mesmo modo, estar conversando com a coluna vertebral pendurada no consultório de alguma osteopata. Você pode fazer promessas a eles, pô-los a par das últimas notícias, implorar que o compreendam, que o desculpem ou que lhe deem seu amor – ou pode optar por uma abordagem oposta, mais efetiva, arrancando as ervas daninhas, ajeitando os cascalhos, passando o dedo pelas letras gravadas na lápide; pode até se abaixar e pôr as mãos diretamente sobre os vestígios deles – tocando a terra, a terra deles, pode fechar os olhos e recordar-se de como eram quando ainda estavam ao seu lado. Mas nada se modifica com tais recordações, exceto que os mortos parecem ainda mais distantes e fora do alcance do que estavam quando você dirigia o carro dez minutos antes. Se não há ninguém no cemitério para observá-lo, você pode fazer algumas coisas bem doidas a fim de conseguir que os mortos pareçam algo mais do que são. Mas, mesmo que você tenha êxito e se motive suficientemente para sentir a presença deles, ainda assim irá embora sem eles. O que os cemitérios provam, ao menos para gente como eu, não é que os mortos estão presentes, mas que se foram de vez. Eles se foram, enquanto nós, por enquanto, não fomos. Isso é fundamental e, embora inaceitável, bem fácil de compreender.”

Manuel António Pina – Sexta-feira Santa

A conversa era sobre Deus,
embora o teólogo estivesse inclinado
a pensar que fosse sobre outra coisa,
pois era hora de jantar.
Pegou num cigarro e perguntou às senhoras se podia fumar.
Tinha devorado o pargo com honesto apetite
e elogiava as virtudes do cozinheiro.
Só Deus, algures, chorava sobre
os despojos da sua pequena criatura na travessa
a caminho da copa, antes da sobremesa.

Ian Hamilton – Admissão

Os lábios rachados do porteiro noturno uniformizado
Murmuram horrivelmente contra o vidro embaçado
De nossa ambulância escura.
Nossa aflição
Inspira um único olhar marcial de desdém
E logo ele nos indica o caminho, para a “Pátria”.

Trad.: Nelson Santander

Admission

The chapped lips of the uniformed night-porter
Mumble horribly against the misted glass
Of our black ambulance.
Our plight
Inspires a single, soldierly, contemptuous stare
And then he waves us on, to Blighty.

Manuel Halpern – Domingo de manhã

Quantos homens
se apaixonam por ti
ao sábado à tarde
enquanto passeiam os filhos
no parque
e se distraem
do balanço
do baloiço
na adivinhação
das partes do corpo
que trazes tapadas

Mal sabem que a tua solidão
não se preenche
com a desventura erótica
de um corpo
que te cubra
sem consolo
Não há falta
de quem se deite
contigo
sábado à noite
apenas quem acorde
ao teu lado
domingo de manhã

Miguel Martins – Sou eu

são as minhas mãos que tremem até não poder segurar os talheres
sou eu sentado na cama, transido de medo de acordar para viver
sou eu a vomitar de medo como desde os tempos da escola primária
sou eu a driblar o futuro, acabando por sair pela linha lateral
sou eu agora em espasmos, assemelhando-me a um campo de minas
sou eu agarrando-me aos poucos que me disseram alguma coisa
eu tentando não cair, não sabendo como vim parar a esta copa
sou eu com a morte nos olhos que trago dentro dos meus olhos
eu, fidelíssimo traidor, não entendendo porque me achei só
eu a fugir de encontrar-me e sempre na exaustão de me encontrar
eu em cada vivo, em cada morto, em cada esquina da cidade
sou eu não conseguindo adormecer e, adormecendo, não dormindo
sou eu sem saber fugir a uma luxúria que jamais me faz feliz
eu a habitar um corpo doloroso, como semáforo amarelo
eu vendo outra coisa em cada coisa e em tudo palavras de papel
eu carregando o peso do passado sobre um futuro inexorável
eu mais mortal que os mortais e defrontando a imortalidade
sou eu com a cara e a alma à venda nos escaparates insensíveis
eu pedindo esmola a quem despreza o que lhe posso dar
sou eu rindo-me de mim para evitar chorar por tudo o mais
sou eu irremediavelmente sozinho para toda a eternidade
sou eu sem música de fundo, vendo-me num espelho desbotado
sou eu a fumar como se me defumasse para me poder comer
sou eu silenciando um grito por minuto e escrevendo no mel
eu vestindo toda esta nudez, só para só amar a verdade do amor

e se isto é difícil de entender, dizendo-te outra coisa não seria eu.

Ángel González – Aniversário

Eu percebo: como estou me tornando
mais incerto, confuso,
dissolvendo-me no ar
cotidiano, bruto
pedaço de mim, desgastado
e em frangalhos.

Eu compreendo: vivi
mais um ano, e isso é muito duro.
Pulsar o coração todos os dias
quase cem vezes por minuto!

Viver um ano requer
morrer muito muitas vezes.

Trad.: Nelson Santander

Cumpleaños

Yo lo noto: cómo me voy volviendo
menos cierto, confuso,
disolviéndome en aire
cotidiano, burdo
jirón de mí, deshilachado
y roto por los puños.

Yo comprendo: he vivido
un año más, y eso es muy duro.
¡Mover el corazón todos los días
casi cien veces por minuto!

Para vivir un año es necesario
morirse muchas veces mucho.

William Butler Yeats – Um aviador irlandês prevê a morte

Encontrarei meu fim no meio
das nuvens de algum céu sobejo;
os que combato, eu não odeio,
também não amo os que protejo;
Kiltartan Cross é meu país,
seus pobres são a minha gente,
nada a fará mais infeliz
do que já era, ou mais contente.
Não é por lei ou por dever,
turba ou políticos, que luto,
mas pelo afã de me entreter,
a sós, nas nuvens em tumulto.
Tudo na mente foi pesado:
nada que espere ou que recorde
vale-me a pena comparado
com esta vida ou esta morte.

Trad.: Nelson Ascher

An Irish airman foresees his death

I know that I shall meet my fate
Somewhere among the clouds above;
Those that I fight I do not hate
Those that I guard I do not love;
My country is Kiltartan Cross,
My countrymen Kiltartan’s poor,
No likely end could bring them loss
Or leave them happier than before.
Nor law, nor duty bade me fight,
Nor public man, nor cheering crowds,
A lonely impulse of delight
Drove to this tumult in the clouds;
I balanced all, brought all to mind,
The years to come seemed waste of breath,
A waste of breath the years behind
In balance with this life, this death.

Jaime Gil de Biedma – Pandêmia e Celeste

      Quan magnus numerus Libyssae arenae
      ……………………………..
      Aut quam sidera multa, cum tacet nox,
      Furtiuos hominum uident amores.
          CATULO, VII

Imagina agora que tu e eu
muito tarde da noite
falamos de homem para homem, enfim.
Imagina-o,
em uma dessas noites memoráveis
de rara comunhão, com a garrafa
meio vazia, os cinzeiros sujos,
depois de esgotado o problema da existência.
Que te vou expor um coração,
um coração infiel,
Nu da cintura pra baixo,
Hipócrita leitor – mon semblablemon frère!

Porque não é a impaciência do caçador de orgasmos
que me arremessa de um corpo para outros corpos
se possível jovens:
eu persigo também o doce amor,
o terno amor que comigo adormeça
e que alegre minha cama quando desperta,
próximo como um pássaro.
Já que não posso mais despir-me,
se nunca mais fui capaz de me abrigar em uns braços
sem sentir – ainda que só por um momento –
o mesmo deslumbramento que aos vinte anos!

Para saber sobre o amor, para aprende-lo,
ter estado só é necessário.
E é necessário em quatrocentas noites
– com quatrocentos corpos diferentes –
ter feito amor. Que seus mistérios,
como disse o poeta, são da alma,
mas um corpo é o livro no qual eles são lidos.

E por isso fico feliz por haver-me esfregado
na areia grossa, os dois meio vestidos,
enquanto procurava esse tendão do ombro.
Comove-me a recordação de tantas ocasiões…
Aquela estrada da montanha
e os bem empregados abraços furtivos
e o instante indefeso, em pé, após a freada,
colados ao muro, ofuscados pelas luzes.
Ou aquele entardecer perto do rio
nus e rindo, de hera coroados.
Ou aquele portal em Roma, na via do Babuíno.
E lembranças de rostos e cidades
pouco conhecidas, de corpos entrevistos,
de escadas sem luz, de camarotes,
de bares, de passagens desertas, de prostíbulos,
e de infinitas saunas,
de fossos de um castelo.
Lembro-me de vós, sobretudo,
ou de noites em motéis,
definitivas noites em sórdidas pensões,
em quartos recém inaugurados,
noites em que devolveis aos vossos hóspedes
um deslembrado sabor para eles mesmos!
A história de corpo e alma, como uma
Imagem partida,
de la languer goutée à cê mal d’être deux.
Sem desprezar
– alegres como feriado na semana –
as experiências da promiscuidade.

Embora eu saiba que de nada me valeriam
esforços de amores dispersos
se não houvesse o verdadeiro amor.
Meu amor,
íntegra imagem de minha vida,
sol das mesmas noites das quais o roubei,
sua juventude, a minha,
– música do meu passado –
sorri ainda na imprecisa graça
de cada corpo jovem,
em cada encontro anônimo,
iluminando-o. Dando-lhe uma alma.
E não há belas coxas
que não me façam pensar em suas belas coxas
quando nos conhecemos, antes de ir para a cama.

Nem paixão de uma noite em claro
que se possa comparar
com a paixão que dá o conhecimento,
os anos de experiência
do nosso amor.
Porque também no amor
é importante o tempo,
e adorável, de alguma forma,
verificar com mão melancólica
sua perceptível passagem pelo corpo
– ao passo que basta um movimento familiar
nos lábios,
ou a ligeira palpitação de um membro,
para fazer-me sentir a maravilha
daquela graciosidade antiga,
fugaz como um reflexo.

Em sua pele manchada,
quando passar mais tempo e estejamos no fim,
quero afinar os lábios invocando
a imagem do seu corpo
e de todos os corpos que um dia amei,
mesmo que só por um instante, desfeitos pelo tempo.
Para pedir a força de poder viver
sem beleza, sem força e sem desejo,
enquanto seguimos juntos
até morrer em paz. Os dois,
como costumam dizer que morrem aqueles que amam muito.

Trad.: Nelson Santander

Pandémica y Celeste

      Quan magnus numerus Libyssae arenae
      ……………………………..
      Aut quam sidera multa, cum tacet nox,
      Furtiuos hominum uident amores.
          CATULO, VII

Imagínate ahora que tú y yo
muy tarde ya en la noche
hablemos de hombre a hombre, finalmente.
Imagínatelo,
en una de esas noches memorables
de rara comunión, con la botella
medio vacía, los ceniceros sucios,
y después de agotado el tema de la vida.
Que te voy a enseñar un corazón,
un corazón infiel,
Desnudo de cintura para abajo,
Hipócrita lector – mon semblable – mon frère!

Porque no es la impaciencia del buscador de orgasmo
quien me tira del cuerpo hacia otros cuerpos
a ser posible jóvenes:
Yo persigo también el dulce amor,
el tierno amor para dormir al lado
y que alegre mi cama al despertarse,
cercano como un pájaro.
¡Si yo no puedo desnudarme nunca,
si jamás he podido entrar en unos brazos
sin sentir -aunque sea nada más que un momento-
igual deslumbramiento que a los veinte años!.

Para saber de amor, para aprenderle,
haber estado solo es necesario.
Y es necesario en cuatrocientas noches
– con cuatrocientos cuerpos diferentes –
haber hecho el amor. Que sus misterios,
como dijo el poeta, son del alma,
pero un cuerpo es el libro en que se leen.

Y por eso me alegro de haberme revolcado
sobre la arena gruesa, los dos medio vestidos,
Mientras buscaba ese tendón del hombro.
Me conmueve el recuerdo de tantas ocasiones…
Aquella carretera de montaña
y los bien empleados abrazos furtivos
y el instante indefenso, de pie, tras el frenazo,
pegados a la tapia, cegados por las luces.
O aquel atardecer cerca del río
desnudos y riéndonos, de hiedra coronados.
O aquel portal en Roma en vía del Babuino.
y recuerdos de caras y ciudades
apenas conocidas, de cuerpos entrevistos,
de escaleras sin luz, de camarotes,
de bares, de pasajes desiertos, de prostíbulos,
y de infinitas casas de baños,
de fosos de un castillo.
Recuerdos de vosotras, sobre todo,
o noches en hoteles de una noche,
definitivas noches en pensiones sórdidas,
en cuartos recién fríos,
noches que devolvéis a vuestros huéspedes
un olvidado sabor a sí mismos!
La historia en cuerpo y alma, como una
imagen rota,
de la langueur goutée a ce mal d’être deux.
Sin despreciar
– alegres como fiesta entre semana –
las experiencias de promiscuidad.

Aunque sepa que nada me valdrían
trabajos de amor disperso
si no existiese el verdadero amor.
Mi amor,
Íntegra imagen de mi vida,
sol de las noches mismas que le robo,
su juventud, la mía,
– música de mi fondo –
sonríe aún en la imprecisa gracia
de cada cuerpo joven,
en cada encuentro anónimo,
iluminándolo. Dándole un alma.
Y no hay muslos hermosos
que no me hagan pensar en sus hermosos muslos
cuando nos conocimos, antes de ir a la cama.

Ni pasión de una noche de dormida
que pueda compararla
con la pasión que da el conocimiento,
los años de experiencia
de nuestro amor.
Porque en amor también
es importante el tiempo,
y dulce, de algún modo,
verificar con mano melancólica
su perceptible paso por un cuerpo
– mientras que basta un gesto familiar
en los labios,
o la ligera palpitación de un miembro,
para hacerme sentir la maravilla
de aquella gracia antigua, fugaz como un reflejo.

Sobre su piel borrosa,
Cuando pasen más años y al final estemos,
quiero aplastar los labios invocando
la imagen de su cuerpo
y de todos los cuerpos que una vez amé
aunque fuese un instante, deshechos por el tiempo.

Para pedir la fuerza de poder vivir
sin belleza, sin fuerza y sin deseo,
mientras seguimos juntos
hasta morir en paz. Los dos,
como dicen que mueren los que han amado mucho.

Eugénio de Andrade – Mulheres de preto

Há muito que são velhas, vestidas
de preto até a alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.