Walter Savage Landor – Epitáfio

Não lutei com ninguém; nada valia a lida.
Amei a natureza, e, tanto quanto, a arte;
As mãos, estas aqueci no fogo da vida
Que naufraga; estou pronto para o desate.

Trad.: Nelson Santander

Walter Savage Landor – Dying Speech of an Old Philosopher

I strove with none, for none was worth my strife:
Nature I loved, and, next to Nature, Art:
I warm’d both hands before the fire of Life;
It sinks; and I am ready to depart.

Giuseppe Ungaretti – In Memoriam

  Locvizza, 30 de setembro de 1916

Chamava-se
Moammed Sceab

Descendente
de emires de nômades
suicida
porque não tinha mais
Pátria

Amou a França
e mudou de nome

Foi Marcel
mas não era francês
e já não sabia
viver
na tenda dos seus
onde se escuta a cantilena
do Alcorão
saboreando um café

E não sabia
desatar
o canto
do seu abandono

Acompanhei-o
junto com a dona da pensão
onde vivíamos
em Paris
do número 5 da rue des Carmes
esquálido beco em declive

Descansa
no cemitério de Ivry
subúrbio que parece
sempre
em dia
de
decomposta feira

E talvez apenas eu
ainda saiba
que viveu

Trad.: Geraldo Holanda Cavalcanti

In Memoria

  Locvizza il 30 settembre 1916.

Si chiamava
Moammed Sceab

Discendente
di emiri di nomadi
suicida
perché non aveva più
Patria
Amò la Francia
e mutò nome

Fu Marcel
ma non era Francese
e non sapeva più
vivere
nella tenda dei suoi
dove si ascolta la cantilena
del Corano
gustando un caffè

E non sapeva
sciogliere
il canto
del suo abbandono

L’ho accompagnato
insieme alla padrona dell’albergo
dove abitavamo
a Parigi
dal numero 5 della rue des Carmes
appassito vicolo in discesa.

Riposa
nel camposanto d’Ivry
sobborgo che pare
sempre
in una giornata
di una
decomposta fiera

E forse io solo
so ancora
che visse

Raymond Carver – Vocês não sabem o que é o amor (uma noite com Charles Bukowski)

Vocês não sabem o que é o amor disse Bukowski
Eu tenho 51 anos e olhem pra mim
estou apaixonado por essa garota
estou louco por ela mas ela também está
então tudo bem cara é assim que deve ser
Eu entro no sangue delas e elas não conseguem se livrar
Elas tentam de tudo pra se afastar de mim
mas no fim todas acabam voltando
Todas voltaram pra mim a não ser
aquela que eu enterrei
Por essa eu chorei
mas eu chorava fácil naquele tempo
Não me deixem partir pras bebidas pesadas
porque eu fico mau
Posso sentar aqui e beber cerveja
com vocês hippies a noite toda
Posso beber dez litros dessa cerveja
e nada isso é como água
Mas se me deixarem beber de verdade
vou começar a jogar gente pelas janelas
Vou jogar qualquer um pela janela
já fiz isso antes
Mas vocês não sabem o que é o amor
Vocês não sabem porque nunca
estiveram apaixonados é simples assim
Estou com essa garota sabe ela é bonita
Ela me chama de Bukowski
Bukowski ela diz com aquela vozinha
e eu digo O quê
Mas vocês não sabem o que é o amor
Estou dizendo o que é
mas vocês não estão ouvindo
Nenhum de vocês aqui nesse bar
reconheceria o amor se ele chegasse
e picasse vocês bem no rabo
Eu pensava que leituras de poesia eram uma vergonha
Olhe eu tenho 51 e rodei um bocado
eu sei que elas são uma vergonha
mas eu disse a mim mesmo Bukowski
passar fome é uma vergonha maior ainda
Então aí estão vocês e nada é do jeito que deveria ser
Aquele sujeiro como é mesmo o nome Galway Kinnell
eu via foto dele numa revista
Ele tem uma bela fuça
mas é um professor
Deus vocês podem imaginar
Mas vocês também são professores
e agora eu já estou insultando vocês
Não nunca ouvi falar dele
nem desse outro
São todos cupins
Talvez seja ego eu já não leio muito agora
mas essa gente que constrói
reputações com cinco ou seis livros
cupins
Bukowski ela diz
Por que você escuta música clássica o dia inteiro
Tentem ouvi-la dizendo isso
Bukowski porque você escuta música clássica o dia inteiro
Isso te surpreende não é mesmo
Você não pensaria que um bastardo tosco como eu
poderia ouvir música clássica o dia inteiro
Brahms Rachmaninoff Bartok Telemann
Merda eu nunca poderia escrever aqui
Muito silêncio árvores demais
Eu gosto da cidade lá é o meu lugar
Coloco minha música clássica toda manhã
e sento diante da minha máquina
acendo um charuto e fumo desse jeito veja
e digo Bukowski você é um cara de sorte
Bukowski você já passou por tudo
e é um cara de sorte
e a fumaça azul percorre a mesa
e pela janela eu vejo a avenida Delongpre
e observo as pessoas indo e vindo pela calçada
e trago o charuto assim
e então deixo o charuto no cinzeiro desse jeito
e respiro fundo
e começo a escrever
Bukowski isso é a vida eu digo
é bom ser pobre é bom ter hemorroidas
é bom estar apaixonado
Mas vocês não sabem como é
Vocês não sabem como é estar apaixonado
Se vocês a vissem saberiam o que estou dizendo
Ela pensou que eu vinha aqui pra transar
Ela simplesmente sabia
Merda eu tenho 51 e ela 25
e estamos apaixonados e ela é ciumenta
Deus como é bonito
ela disse que arrancaria meus olhos à unha se eu viesse aqui pra transar
Pois bem isso sim é amor
O que qualquer um de vocês pode saber
Me deixem contar uma coisa
Conheci homens na cadeia que tinham mais estilo
do que as pessoas que vadiam nas universidades
e vão a leituras de poesia
São chupadores de sangue que vêm só pra ver
se as meias do poeta estão sujas
ou se o sovaco dele cheira mal
Acreditem não vou desapontá-los
Mas quero que vocês se lembrem disso
só existe um poeta nesse bar essa noite
só um poeta nessa cidade essa noite
talvez só um poeta de verdade nesse país essa noite
e sou eu
O que qualquer um de vocês sabe sobre a vida
O que qualquer um de vocês sabe sobre sobre qualquer coisa
Quem de vocês já foi demitido de um emprego
ou bateu na sua garota
ou mesmo apanhou da sua garota
Eu fui demitido da Sears & Roebuck cinco vezes
Eles me demitiam e contratavam de novo
Eu trabalhava no estoque deles quando tinha 35
e fui em cana por roubar biscoitos
Eu sei como é eu estive lá
Agora tenho 51 anos e estou apaixonado
Essa garota ela diz
Bukowski
e eu digo O quê e ela diz
Eu acho que você é cheio de merda
e eu digo baby você me entende
Ela é a única mulher no mundo
homem ou mulher
de quem eu ouviria isso
Mas vocês não sabem o que é o amor
Todas elas acabaram voltando pra mim
cada uma delas voltou
a não ser aquela de quem falei
aquela que eu enterrei
Ficamos juntos sete anos
Bebíamos muito
Eu vejo um ou dois datilógrafos nesse bar
Não vejo nenhum poeta
E não me surpreende
Você tem que ter amado pra escrever poesia
e vocês não sabem o que é amar
esse é o problema de vocês
Me dê um pouco desse troço
Isso mesmo sem gelo
Está bom assim está ótimo
Então vamos botar esse show na estrada
Eu sei o que eu disse mas vou tomar um só
Isso é bom
Okay então vamos lá vamos acabar logo com isso
mas depois é melhor ninguém ficar perto
de uma janela aberta

Trad.: Cide Piquet

Raymond Carver – You don’t know what love is (an evening with Charles Bukowski)

You don’t know what love is Bukowski said
I’m 51 years old look at me
I’m in love with this young broad
I got it bad but she’s hung up too
so it’s all right man that’s the way it should be
I get in their blood and they can’t get me out
They try everything to get away from me
but they all come back in the end
They all came back to me except
the one I planted
I cried over that one
but I cried easy in those days
Don’t let me get onto the hard stuff man
I get mean then
I could sit here and drink beer
with you hippies all night
I could drink ten quarts of this beer
and nothing it’s like water
But let me get onto the hard stuff
and I’ll start throwing people out windows
I’ll throw anybody out the window
I’ve done it
But you don’t know what love is
You don’t know because you’ve never
been in love it’s that simple
I got this young broad see she’s beautiful
She calls me Bukowski
Bukowski she says in this little voice
and I say What
But you don’t know what love is
I’m telling you what it is
but you aren’t listening
There isn’t one of you in this room
would recognize love if it stepped up
and buggered you in the ass
I used to think poetry readings were a copout
Look I’m 51 years old and I’ve been around
I know they’re a copout
but I said to myself Bukowski
starving is even more of a copout
So there you are and nothing is like it should be
That fellow what’s his name Galway Kinnell
I saw his picture in a magazine
He has a handsome mug on him
but he’s a teacher
Christ can you imagine
But then you’re teachers too
here I am insulting you already
No I haven’t heard of him
or him either
They’re all termites
Maybe it’s ego I don’t read much anymore
but these people who build
reputations on five or six books
termites
Bukowski she says
Why do you listen to classical music all day
Can’t you hear her saying that
Bukowski why do you listen to classical music all day
That surprises you doesn’t it
You wouldn’t think a crude bastard like me
could listen to classical music all day
Brahms Rachmaninoff Bartok Telemann
Shit I couldn’t write up here
Too quiet up here too many trees
I like the city that’s the place for me
I put on my classical music each morning
and sit down in front of my typewriter
I light a cigar and I smoke it like this see
and I say Bukowski you’re a lucky man
Bukowski you’ve gone through it all
and you’re a lucky man
and the blue smoke drifts across the table
and I look out the window onto Delongpre Avenue
and I see people walking up and down the sidewalk
and I puff on the cigar like this
and then I lay the cigar in the ashtray like this and take a deep breath
and I begin to write
Bukowski this is the life I say
it’s good to be poor it’s good to have hemorrhoids
it’s good to be in love
But you don’t know what it’s like
You don’t know what it’s like to be in love
If you could see her you’d know what I mean
She thought I’d come up here and get laid
She just knew it
She told me she knew it
Shit I’m 51 years old and she’s 25
and we’re in love and she’s jealous
Jesus it’s beautiful
she said she’d claw my eyes out if I came up here
and got laid
Now that’s love for you
What do any of you know about it
Let me tell you something
I’ve met men in jail who had more style
than the people who hang around colleges
and go to poetry readings
They’re bloodsuckers who come to see
if the poet’s socks are dirty
or if he smells under the arms
Believe me I won’t disappoint em
But I want you to remember this
there’s only one poet in this room tonight
only one poet in this town tonight
maybe only one real poet in this country tonight
and that’s me
What do any of you know about life
What do any of you know about anything
Which of you here has been fired from a job
or else has beaten up your broad
or else has been beaten up by your broad
I was fired from Sears and Roebuck five times
They’d fire me then hire me back again
I was a stockboy for them when I was 35
and then got canned for stealing cookies
I know what’s it like I’ve been there
I’m 51 years old now and I’m in love
This little broad she says
Bukowski
and I say What and she says
I think you’re full of shit
and I say baby you understand me
She’s the only broad in the world
man or woman
I’d take that from
But you don’t know what love is
They all came back to me in the end too
every one of em came back
except that one I told you about
the one I planted We were together seven years
We used to drink a lot
I see a couple of typers in this room but
I don’t see any poets
I’m not surprised
You have to have been in love to write poetry
and you don’t know what it is to be in love
that’s your trouble
Give me some of that stuff
That’s right no ice good
That’s good that’s just fine
So let’s get this show on the road
I know what I said but I’ll have just one
That tastes good
Okay then let’s go let’s get this over with
only afterwards don’t anyone stand close
to an open window

Wilfred Owen – Futilidade

Coloquem-no à luz do sol… Em casa
Seu toque gentil o acordava com a lembrança
De campos ainda por plantar…
O sol o acordou sempre, até na França,
Até chegarem a manhã de hoje e a neve que aí está.
Se alguma coisa pode acorda-lo agora,
Só o velho sol saberá.

Lembrem que também acorda sementes…
E que há muito acordou a argila de uma estrela fria…
Então os braços perfeitos e seu corpo
Tão rico em nervos (e ainda quente) rijos demais?
É este o fim que a argila em si encerra?
– Ah, por que, raio de sol insensato, você
Se esmerou tanto para um dia acordar a terra?

Trad.: Jorge Wanderley

Wilfred Owen – Futility

Move him into the sun—
Gently its touch awoke him once,
At home, whispering of fields half-sown.
Always it woke him, even in France,
Until this morning and this snow.
If anything might rouse him now
The kind old sun will know.

Think how it wakes the seeds—
Woke once the clays of a cold star.
Are limbs, so dear-achieved, are sides
Full-nerved, still warm, too hard to stir?
Was it for this the clay grew tall?
—O what made fatuous sunbeams toil
To break earth’s sleep at all?

Andreia C. Faria – “Tenho a pedir-vos que não reutilizeis mais nada”

Tenho a pedir-vos que não reutilizeis mais nada.
Este edifício junto à praia, deixai-o
entregue à ruína,
às folhas do milho,
ao ar salgado.

Que as crianças possam tropeçar nas lajes soltas
e no átrio ecoe, como uma pedreira,
o desejo de muitas mãos.

Deixai dormir as mariposas dentro de lâmpadas partidas
e as formigas engrossarem pelos cantos
como sal.

Não inventeis mais nada,
nem formas eloquentes de evitar que o bronze oxide.
Aceitai o suor do tempo.

Que algumas coisas apodreçam.
Que os elefantes atravessem a planície.
Que as veias rebentem
do esforço de permanecer em pé.

E que nem tudo se sustente como a rosa
se sustenta de florir.

Deixai, deixai os vários pisos incomunicáveis,
o desvão ser cortejado pelo giz dos aviões,
que a lua pouse ali aberto o crânio,
que lhe bata o sol.

Ainda são precisos os templos
onde o pó seja gentil
e incensado
como os pés pela caruma dos pinhais.

Obs.: Republicado, com correções a partir da publicação original

Adam Zagajewski – Conversa com Friedrich Nietzsche

Excelentíssimo Senhor Friedrich,
tenho a impressão de estar a ver agora o senhor,
no terraço do sanatório, ao amanhecer,
com o nevoeiro a cair e o canto a rebentar
nas gargantas dos pássaros.

Não muito alto, a cabeça como um projétil,
o senhor está a escrever um novo livro
e uma estranha energia flui de si:
parece que vejo os seus pensamentos como se fossem
grandes exércitos em parada

O senhor sabe que morreu a morena Anne Frank
e os seus colegas de escola e amigos, rapazes e raparigas,
os coetâneos, e as amigas dos seus amigos
e os seus primos.

Quero perguntar-lhe o que é que são as palavras, o que é
a claridade, porque é que as palavras continuam a queimar
passados cem anos, embora a terra
seja tão pesada.

É óbvio que não existe nexo entre a iluminação
e a obscura dor da crueldade.
Existem pelo menos dois reinos,
mas é possível que haja ainda mais.

No caso, porém, de não haver Deus e de nenhuma força
estabelecer conexões entre elementos antagônicos,
o que é que são então as palavras e qual é a origem
da sua luz interior?

E qual a origem da alegria? E qual o destino do nada?
Qual a morada do perdão?
Porque é que os sonhos pequenos se dissipam ao chegar do dia
enquanto os grandes continuam a crescer?

Trad.: Marco Bruno

Jorge Luis Borges – João 1,14

Não será menos enigmática esta página
que as de Meus livros sagrados nem aquelas outras que repetem
as bocas ignorantes,
por julgá-las de um homem, não espelhos
obscuros do Espírito.
Eu que sou o É, o Foi e o Será
torno a condescender com a linguagem,
que é tempo sucessivo e emblema.
Quem brinca com um menino brinca com algo
próximo e misterioso;
eu quis brincar com Meus filhos.
Estive entre eles com assombro e ternura.
Por obra de magia nasci
curiosamente de um ventre.
Vivi enfeitiçado, encarcerado num corpo
e na humildade de uma alma.
Conheci a memória,
essa moeda que não é nunca a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do incerto futuro.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos, a ignorância, a carne,
os torpes labirintos da razão, a amizade dos homens,
a misteriosa devoção dos cães.
Fui amado, compreendido, louvado e pendi de uma cruz.
Bebi o cálice até as fezes.
Vi por Meus olhos o que nunca havia visto:
a noite e suas estrelas.
Conheci o polido, o arenoso, o díspar, o áspero,
o sabor do mel e da maçã,
a água na garganta da sede,
o peso de um metal na palma,
a voz humana, o rumor de uns passos sobre a relva,
o odor da chuva na Galileia,
o alto grito dos pássaros.
Conheci também a amargura.
Encomendei esta escrita a um homem qualquer;
nunca será o que desejo dizer,
não deixará de ser seu reflexo.
De Minha eternidade caem estes signos.
Que outro, não o que é agora seu amanuense, escreva o poema.
Amanhã serei um tigre entre os tigres
e predicarei Minha lei a sua selva,
ou uma grande árvore na Ásia.
Às vezes penso com nostalgia
no odor dessa carpintaria.

Trad.: Carlos Nejar e Alfredo Jacques.
Revisão de trad.: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz

Conheça outros livros de Jorge Luis Borges clicando nesse link

Jorge Luis Borges – Juan, I, 14

No será menos un enigma esta hoja
que las de Mis libros sagrados
ni aquellas otras que repiten
las bocas ignorantes,
creyéndolas de un hombre, no espejos
oscuros del Espíritu.
Yo que soy el Es, el Fue y el Será,
vuelvo a condescender al lenguaje,
que es tiempo sucesivo y emblema.
Quien juega con un niño juega con algo
cercano y misterioso;
yo quise jugar con Mis hijos.
Estuve entre ellos con asombro y ternura.
Por obra de una magia
nací curiosamente de un vientre.
Viví hechizado, encarcelado en un cuerpo
y en la humildad de un alma.
Conocí la memoria,
esa moneda que no es nunca la misma.
Conocí la esperanza y el temor,
esos dos rostros del incierto futuro.
Conocí la vigilia, el sueño, los sueños,
la ignorancia, la carne,
los torpes laberintos de la razón,
la amistad de los hombres,
la misteriosa devoción de los perros.
Fui amado, comprendido, alabado y pendí de una cruz.
Bebí la copa hasta las heces.
Vi por Mis ojos lo que nunca había visto:
la noche y sus estrellas.
Conocí lo pulido, lo arenoso, lo desparejo, lo áspero,
el sabor de la miel y de la manzana,
el agua en la garganta de la sed,
el peso de un metal en la palma,
la voz humana, el rumor de unos pasos sobre la hierba,
el olor de la lluvia en Galilea,
el alto grito de los pájaros.
Conocí también la amargura.
He encomendado esta escritura a un hombre cualquiera;
no será nunca lo que quiero decir,
no dejará de ser su reflejo.
Desde Mi eternidad caen estos signos.
Que otro, no el que es ahora su amanuense, escriba el poema.
Mañana seré un tigre entre los tigres
y predicaré Mi ley a su selva,
o un gran árbol en Asia.
A veces pienso con nostalgia
en el olor de esa carpintería.

Ian Hamilton – Despertar

Sua cabeça, tão enferma, repousa junto à minha.
Tão sensível. Você não consegue lembrar
Por que está aqui, nem reconhece
Estas mãos prestativas.
Meu amor,
O mundo nos encurrala. Estamos perdendo terreno.

Trad.: Nelson Santander

Awakening

Your head, so sick, is leaning against mine,
So sensible. You can’t remember
Why you’re here, nor do you recognize
These helping hands.
My love,
The world encircles us. We’re losing ground.

Manuel António Pina – Gare du Sud

Tudo o que temos pertence a outros,
desconhecidos de nós, e ainda a outros,
e temo-lo como se o perdêssemos
ficando uma sombra, a nossa sombra.
Estamos longe de casa e essa sombra
é a única morada a que podemos acolher-nos.

A nossa voz não somos capazes já de ouvi-la, balbuciante;
e se a ouvíssemos não a compreenderíamos
porque falamos uma língua estrangeira.
Tivemos um passado mas também ele não nos pertenceu,
lemo-lo, ou ouvimo-lo a
outros mais densos que nós.

Aonde regressamos então?
Ao lado das fluviantes águas,
águas idas e vindas. Noite!,
alguém nos chama mas
não é ninguém que conheçamos
nem ninguém de quem possamos dizer o nome.

Um murmúrio a que alguma razão passada
prende os sentidos e que perdura
no meio da vozearia da solidão e das interrogações,
um olho cego, um animal indecifrável atravessando a
distância e olhando-nos ainda,
a nós que os nossos olhos já não podem ver.