Helder Moura Pereira – “Chegamos ao fim do dia…”

Chegamos ao fim do dia e cada um
pensa para seu lado que isto não
é vida, deixámos na terra os habituais
sinais com tanto de amor como
de desespero e, de mãos vazias,
de coração ainda com alguma coisa
mas quase vazio, batemos com a força
que nos resta, pela última vez, à porta
das sensações e a porta das sensações
abre-se-nos muito devagar
para uma esplendorosa noite cinzenta.

Josep M. Rodríguez – Talvez Amor

Abro o guarda-chuva
           e é um sol escuro.
Manhã de São João.

O asfalto reluz como uma língua suja

e as gotas de chuva
soam como mosquitos contra o vidro do carro.
Atravesso a rua,

só me cruzo com desconhecidos.

Quantas vezes parado num semáforo,
no balcão de um bar
           ou numa livraria
não teremos coincidido com alguém que mais tarde
se converteu em amigo ou talvez em amor.

Reflicto-me na água das poças.
Não me dou por vencido:

Também para a dor existem limites.

Trad.: Manuel de Freitas

Armando Freitas Filho de “Rol”

150

Ontem, foi-se.
Amanhã, não há.
Ar, somente, o de hoje
no presente, desse dia
que projeta na respiração
sua plataforma insubstituível:
peça única com sua aura esplêndida
longe de qualquer linha de montagem
frágil a qualquer hora, em aberto.
No levante, no meio, no fim
do seu alento, não em si, mas em mim –
sine die – sem vésperas.

         14 VII 2010

Ana Martins Marques – Caçada

E o que é o amor
senão a pressa
da presa
em prender-se?

A pressa
da presa
em
perder-se

Rui Costa – Breve

Esta manhã comecei a esquecer-me de ti.
Acordei mais cedo que nos outros dias
e com o mesmo sono.
A tua boca dizia-me “bom dia” mas não:
não o teu corpo todo como nos outros dias.
As sombras por aqui são lentas e hoje não
comprei o jornal: o mundo que se ocupe da
sua própria melancolia.
ontem. há uma semana. há muitos meses.
um ano ensina ao coração o novo ofício:
a vida toda eu hei-de esquecer-me de ti.

Miguel Martins – Fine

Os sentimentos são paisagens áridas, imprecisas, tremeluzentes, desconfortáveis.

Dito isto, poderia fechar a porta, correr as grades, trancar o cadeado, dar a loja por encerrada, sem previsões de reabertura.

Fechados lá dentro, os sentimentos, bem, seria como se não existissem.

Talvez morressem, se desidratassem, se pulverizassem, talvez deles restasse apenas uma mancha de gordura no chão.

Em qualquer caso, emudeceriam. Ou não seriam escutados, o que vem a dar ao mesmo.

Nunca contemplei esta hipótese por mais de cinco minutos – certamente, nem tanto.

Não consigo. Não sei. Julgo que, no fundo, é o que menos quero. E que essa é a raiz da minha resistência. Crónica e aguda.

Os sentimentos são onde sei viver, onde me sinto menos morto.

Os sentimentos sou eu.
Os melhores.
Os piores.
O beijo.
A bala.
(Ou vice-vresa).
Todos os nomes da intranquilidade.

Paulo Henriques Britto – “Da metafísica”

Ser parte de alguém ou algo
tão grande que não se entenda:
toda crença, ao fim e ao cabo,
se resume a essa lenda –

o mais rematado dislate,
coisa jamais entendida,
que eleva ao sumo quilate
o caco mais reles de vida.

Marianne Moore – Poesia

Eu também não gosto dela: há coisas mais importantes para além
  de toda esta farsa.
 Lendo-a, contudo, com absoluto desprezo,
  descobre-se
 nela, no fim das contas, um lugar para o autêntico.
  Mãos que podem agarrar, olhos
  que podem dilatar-se, pelos que podem eriçar-
   se necessário, essas coisas são importantes não porque uma

grandiloquente interpretação pode ser-lhes atribuída mas sim porque
  elas são
 úteis. Quando se tornam derivadas a ponto de se tornarem
  ininteligíveis,
 o mesmo pode ser dito de todos nós, que
  não admiramos aquilo
  que não podemos entender: o morcego
   aguentando-se de ponta-cabeça ou em busca de algo para

comer, elefantes forcejando, um cavalo xucro num rodopio, um lobo
  incansável sob
 a árvore, o crítico inamovível contraindo a pele como um cavalo
  que sentisse a sarna, o fã de
 beisebol, o estatístico –
  tampouco é válida
   a discriminação contra “documentos comerciais e

livros escolares”; todos esses fenômenos são importantes. Deve-se
  fazer uma distinção
 no entanto: quando trazidos à luz por meios poetas, o
  resultado não é poesia,
 tampouco, até que os poetas dentre nós possam ser
  ”literalistas da
  imaginação” – acima
   da insolência e trivialidade, e possam apresentar

à inspeção “jardins imaginários com sapos de verdade”, nós a
  experimentaremos.
 Neste meio tempo, se você exigir por um lado
  a matéria-prima da poesia em
  toda a sua crueza e
   a qual é por outro lado
    autêntica, você se interessa por poesia.

Trad.: Rodrigo Madeira

Poetry

I, too, dislike it: there are things that are important beyond
  all this fiddle.
 Reading it, however, with a perfect contempt for it, one
  discovers in
 it after all, a place for the genuine.
  Hands that can grasp, eyes
  that can dilate, hair that can rise
   if it must, these things are important no because a

high-sounding interpretation can be put upon them but because
  they are
 useful. When they become so derivative as to become
  unintelligible,
 the same thing may be said for all of us, that we
  do not admire what
  we cannot understand: the bat
   holding on upside down or in quest of something to

eat, elephants pushing, a wild horse taking a roll, a tireless
  wolf under
 a tree, the immovable critic twitching his skin like a horse
  that feels a flea, the base-
 ball fan, the statistician –
  nor is it valid
   to discriminate against “business documents and

school-books”; all these phenomena are important. One must make
  a distinction
 however: when dragged into prominence by half poets, the
  result is not poetry,
 nor till the poets among us can be
  ”literalists of
  the imagination – above
   insolence and triviality and can present

for inspection, “imaginary gardens with real toads in them”,
  shall we have
 it. In the meanwhile, if you demand on the one hand,
 the raw material of poetry in
  all its rawness and
  that which is on the other hand
   genuine, you are interested in poetry.

Miguel-Manso – Na morte da avó

não bastasse a humilhação pública de morrer
espera-se do corpo que cumpra com indiscutível
pompa o intolerável protocolo de ausentar-se

a penosa execução circular e noturna do velório
a presença inconveniente dos agentes funerários
os adereços lutuosos a obscena maquiagem

no dia seguinte, o inventário das orações, a concisa
cerimônia (não há muito a dizer, sejamos honestos
e soa até a insulto que se pronuncie o nome de

Lázaro) o caixão é fechado, o dia põe-se bonito
– é quase tão imoral como alguém ter trazido uma
gravata com motivos facetos, uma camisa florida –

depois, em casa, parece que as vozes ressoam como numa
sala a que tivessem subtraído os móveis e houvesse, por isso
a estranheza de uma extensão desprovida, dissemelhante

o avô vai buscar as memórias da infância (por que
razão obscura omite ele as lembranças de casado?) há
na sua voz qualquer coisa de paciente melancolia

como se aceitasse, com constrangedora submissão, que
o tempo não se detenha nunca, que os anos nos empurrem
para um buraco na terra, nos sujeitem a tão bruta descortesia

a prontidão da morte, a ligeireza do tempo, a estupidez
da vida que nunca vai encontrar cura e razão para ela própria
contra tudo isso eu alardeio o poema, antecipo a derrota

Rui Pires Cabral – Morada

Nós vivemos na cidade quase sempre perdidos
nas nossas pequenas razões. Estas ruas
ainda prometem mais do que podem cumprir?
A breve epifania do amor ou simplesmente
um cúmplice que nos diga, à mesa de um café,
que não faz mal, que pouco importam
as perdas e danos que sofremos.

De qualquer modo o mundo continua.

Entre o medo e a esperança
procuramos a nossa incerta morada
e enquanto isso envelhecemos mais um dia,
colhidos pelo tempo em plena queda. Nas praças,
nos quintais, a noite aparece depois do jantar
cheia de boas promessas, mas já vem condenada
ao tropel dos crentes, ao cego movimentos da manhã.