Inês Dias – Lei Sálica

As mulheres da família sempre
tiveram um jeito quase póstumo
de existir: guardar o lume
em silêncio, comer depois de
servir os outros, morrer primeiro.

Saíam à hora de ponta do destino
para lerem os caminhos perdidos
e coleccionavam a abdicação
em caixinhas de folha, entre bilhetes
caducados ou dentes de infâncias alheias.

Esperavam a vida toda por uma vida
próxima, de alma presa a alfinetes
no vestido preferido para o enterro,
os passos medidos nas suas varandas
a dar para o fim do mundo.

Retomo-lhes às vezes os gestos
neste meu exílio inventado,
mas acaba aqui: vou encher de corpo
a sombra, mesmo que nem tempo
me reste já para a pesar.

A. M. Pires Cabral – Motes e Voltas

1
Senhor, vão sendo horas.
Sei bem que o teu relógio
não tem de regular-se pelo meu
nem a tua vontade pela minha.

Mas é justo que seja aquele que sofre
do tempo os enxovalhos
a dizer quando vão sendo horas —

e não tu, Senhor, com quem
o tempo não colide
(decerto porque tu mesmo és o tempo
ou a ausência dele,
e não podes portanto avaliar
quando se nos torna o peso do Verão
desmedido, funesto, vexatório.)

2
Como foi longo o Estio. Como se demorou
o Sol nas coisas com cínica indiferença
própria dos deuses.
Como o Sol crestou a erva, a pele.

É tempo de vento à solta nas campinas.
Entorna, Senhor, o bálsamo das sombras
sobre o quadrante dos relógios de sol
e sobre tudo o mais que o Verão escaldou.

Que vigorem as trevas, chuva e frio
com que se tece
o branco lenço da melancolia.

3
Estão colhidas, derramadas
na sua cama de palha,
as maçãs que hão-de perfumar a casa
no Inverno avesso a cheiros.
O vinho já ganhou
doçura e perfídia quanto baste.

Estas são, Senhor, as minhas provisões
para os dias de Estio que aí vêm.

4
Eu fiz a minha casa com uma pedra
que me deste. Usei a tua madeira,
os teus metais. Posso dizer:
tenho uma casa, eu não sou daqueles
para quem o Verão não foi mais que um embuste.

Mas sei de muitos a quem o Sol cegou
e já não podem ver
o esplendor das trevas.
Isto é: já não podem construir
casa nenhuma.

5
Não estou só
Recrutei companheiros para o Inverno
que não o temem como se teme um lobo,
mas apenas como é justo que se tema
o desdobrar das páginas do tempo:
com decoro. Então
aconchegados a mim, e eu a eles.
Somos uma parede.

Mas há quem esteja só
e assim deva ficar.

A esses, tudo aquilo que o nocivo
Inverno lhes trouxer
recordará o que ficou retido
nas levianas demasias do Verão.

As cartas que usarão como recurso
contra a ausência do Sol
ninguém lhas lerá, ser-lhe-ão devolvidas
com um carimbo maquinal: «Desconhecido
neste endereço». Cartas descompostas
de terem ido e voltado.
Cartas que em boa verdade
escreverão a si mesmos
sob outros nomes e moradas. Cartas
semelhantes a ardilosos bumerangues
ou a cães ensinados a voltar para nós,
trazendo na boca, molhado de saliva,
o pau que arremessámos.

6
Mas possa eu, Senhor, não perder nunca
os olhos com que ao frio me enamoro
das folhas que se movem casuais
ao vento outonal das alamedas.

Eugénio de Andrade – Ver Claro

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

Adília Lopes – Arte Poética

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

Inês Dias – Your Funeral, my Trial

O morto fica mais só
quando quem fala lhe rouba
a última memória desse barco
desmesurado da infância,
construído sem vista para o mar.

O morto fica mais só ainda,
quando quem ouve se esquece da música
para escolher o seu próprio funeral,
alinhando convidados e preferindo coroas
de plástico a condizer com as lágrimas.

O morto fica mais só ainda, se possível,
quando me distraio com o mel da luz
nos vitrais ou sigo o gato amarelado
para quem a morte é apenas uma questão de
sobrevivência, talvez um jogo, se algum rato
finge entregar-se com prazer às suas garras.

Hoje, pela primeira vez, não me chegam
os dedos para contar os meus dias de veladora.
Mesmo sabendo que nenhum ritual nos consola,
tento apaziguar a terra que se abre a meus pés,
plantando cravos condenados que nunca voltarão a florir.
E invejo secretamente o morto, porque já não precisa de
conhecer a flor preferida de ninguém:
pode simplesmente deixar-se estar,
na certeza de que o chão não lhe voltará a falhar.

Os mais sós, afinal, são sempre os sobreviventes.

Manuel António Pina – Relatório

É um mundo pequeno,
habitado por animais pequenos
– a dúvida, a possibilidade da morte –
e iluminado pela luz hesitante de

pequenos astros – o rumor dos livros,
os teus passos subindo as escadas,
o gato brincando na sala
com o último raio de sol da tarde.

Dir-se-ia antes uma casa,
um pouco mais alta que um império
e um pouco mais indecifrável
que a palavra “casa”; não fulge.

Em certas noites, porém,
sai de si e de mim
e fica suspensa lá fora
entre a memória e o remorso de outra vida.

Então, com as luzes apagadas,
ouço vozes chamando,
palavras mortas nunca pronunciadas
e a agonia interminável das coisas acabadas.

Vitor Nogueira – Sementes

É claro que me lembro. Havia dois atalhos
pelo meio do pinhal, direcções espantosamente
precisas, animais que não voltei a ver.
 
Enquanto as colheitas amadureciam nos campos,
havia talismãs pendurados nas árvores e mercúrio
para tratar certas lesões, uma peça vital
do equipamento. Havia girassóis à volta da casa
e as palavras imortais dos espantalhos, uma forma
de evitar que endoidecêssemos. E havia um muro
que era preciso saltar, a manhã gloriosa
da escalada, a ciência das grandes migrações.
 
Mas não vale a pena entrar em mais detalhes.
Este é o meu corpo. Esta é a minha mente.
Conhecem-se desde a infância e cumpriram pena juntos.

Do futuro nada sei. Apenas que vem aí.

Jorge Luis Borges – Sobre nós

Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que foi periferia.
Os antigos, que já não podem nos decepcionar
porque são mito e esplendor.
Os seis volumes de Schopenhauer,
que não acabaremos de ler.
A lembrança, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O Oriente que, sem dúvida, não existe para o afegão,
o persa ou o tártaro.
Os mais velhos, com os quais não conseguiríamos conversar
durante um quarto de hora.
As mutáveis formas da memória,
que é feita de esquecimento.
As línguas que mal deciframos.
Algum verso latino ou saxão, que não é mais do que um hábito.
Os amigos que não podem nos faltar
porque já morreram.
O ilimitado nome de Shakespeare.
A mulher que está ao nosso lado e que é tão diversa.
O xadrez e a álgebra, que não compreendo.

Trad.: Nelson Santander

Jorge Luis Borges – Lo nuestro

Amamos lo que no conocemos, lo ya perdido.
El barrio que fue las orillas.
Los antiguos, que ya no pueden defraudarnos,
porque son mito y esplendor.
Los seis volúmenes de Schopenhauer,
que no acabaremos de leer.
El recuerdo, no la lectura, de la segunda parte del Quijote.
El Oriente, que sin duda no existe para el afgano,
el persa o el tártaro.
Nuestros mayores, con los que no podríamos conversar
durante un cuarto de hora.
Las cambiantes formas de la memoria,
que está hecha de olvido.
Los idiomas que apenas desciframos.
Algún verso latino o sajón, que no es otra cosa que un hábito.
Los amigos que no pueden faltarnos,
porque se han muerto.
El ilimitado nombre de Shakespeare.
La mujer que está a nuestro lado y que es tan distinta.
El ajedrez y el álgebra, que no sé.

Ana Martins Marques – de “Três Postais”

São Paulo

Depois de um tempo
todas as coisas ficam marcadas
como se estivessem
impregnadas de veneno

Há um tempo em que os lugares
são limpos e novos
abertos como clareiras
mas já não é este o tempo

Sobre cada lugar se sobrepõe
a experiência do lugar
como um selo
num cartão postal

Por exemplo
hoje sempre que sobrevoo
São Paulo
penso que em algum apartamento
desta cidade interminável
você
fumando
de óculos
exerce seu direito
inalienável
de não mais pensar
em mim

Alberto Caeiro – Quando vier a primavera

Quando vier a primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.