Algernon Charles Swinburne – Um Amigo Morto

I.
Não mais, ó puro e meigo coração,
Amigo de esperas fatais,
Aqueles dias prósperos, irmão,
Não mais?Dias brilhantes de cristais
Viram mais, além desse desvão,
O que ninguém verá jamais.
 
Alma’lva como a clara cerração,
Por que, então, cedo demais
Se foi para além de nós, para não,
Não mais?

II.
Irmão de longas horas fugidias,
Que dilacerante emoção
Emanará da boca que dizia
‘Irmão’?
 
Suspiro e canção que mesclam
Louvor com desolada agonia,
Embora ascenda a louvação?

Nada oculta o que de ti irradia:
Por que encerra a escuridão –
Ó dileto e morto – tão cedo o dia,
Irmão?

III.
Caro finado, cumpriste o dever
Ainda em vida, dando amparo
Aos corações que pudeste deter,
Caro

Tempo e acaso podem, claro,
Crestar a fé com dor, e o morrer,
Cindir mãos com seu dom avaro:

A memória, ora cega a planger
A dor, vê, com seu faro raro
Tudo o que de ti se fez para ser
Caro

IV.
Fiel e afável de alma invulgar,
Que deve a memória cruel
Fazer além de ver a fé chorar,
Fiel?

Poucos viram além do véu
Do teu ser, mas quem foi ao teu lar
Dedicou-te amor a granel!

Janus, que faz o novo definhar,
Transforme algo velho em novel;
Um amor honesto a se declarar
Fiel.

V.
Puro tal qual o céu, enquanto ao chão
Tu te mantiveste seguro,
Para os homens deste o teu coração
Puro

Já não te cega mais o escuro
Agora: as horas em mutação
Afagam teu sono futuro

O amor, sentindo ainda a morte tão
Perto, pode, com seu apuro,
Evocar teu doce ser, meu irmão
Puro

VI.
Como, ó amigo, deve ser a vida?
Esquecer o perpétuo sono?
A fé concede à dor do amor guarida,
Como?

É certo, tristes seres somos.
No entanto, mesmo que certa a lida,
Brilha tua testa tal um pomo.

Sim, embora tu estejas de partida,
O amor te encontrará de assomo,
Apesar de não sabermos ainda
Como.

VII.
Passou, como canção que desvanece,
E enquanto era vivo, brilhou;
Como o pio da ave de que se esquece
Passou!

O vento da morte soprou,
O senhor da canção o fornece,
Mas teu amor firme ficou.

O trono vazio de um rei que fenece:
Mas, para a dor que perdurou,
O amor fez canção do que não se esquece.
Passou.

Trad.: Nelson Santander

 

A Dead Friend

I.
Gone, O gentle heart and true,
Friend of hopes foregone,
Hopes and hopeful days with you
Gone?
 
Days of old that shone
Saw what none shall see anew,
When we gazed thereon.
 
Soul as clear as sunlit dew,
Why so soon pass on,
Forth from all we loved and knew
Gone?
 
II.
Friend of many a season fled,
What may sorrow send
Toward thee now from lips that said
‘Friend’?
 
Sighs and songs to blend
Praise with pain uncomforted
Though the praise ascend?
 
Darkness hides no dearer head;
Why should darkness end
Day so soon, O dear and dead
Friend?

III.
Dear in death, thou hast thy part
Yet in life, to cheer
Hearts that held thy gentle heart
Dear.

Time and chance may sear
Hope with grief, and death may part
Hand from hand’s clasp here:

Memory, blind with tears that start,
Sees through every tear
All that made thee, as thou art,
Dear.

IV.
True and tender, single-souled,
What should memory do
Weeping o’er the trust we hold
True?

Known and loved of few,
But of these, though small their fold,
Loved how well were you!

Change, that makes of new things old,
Leaves one old thing new;
Love which promised truth, and told
True.

V.
Kind as heaven, while earth’s control
Still had leave to bind
Thee, thy heart was toward man’s whole
Kind.

Thee no shadows blind
Now: the change of hours that roll
Leaves thy sleep behind.

Love, that hears thy death-bell toll
Yet, may call to mind
Scarce a soul as thy sweet soul
Kind.

VI.
How should life, O friend, forget
Death, whose guest art thou?
Faith responds to love’s regret,
How?

Still, for us that bow
Sorrowing, still, though life be set,
Shines thy bright mild brow.

Yea, though death and thou be met,
Love may find thee now
Still, albeit we know not yet
How.

VII.
Past as music fades, that shone
While its life might last;
As a song-bird’s shadow flown
Past!

Death’s reverberate blast
Now for music’s lord has blown
Whom thy love held fast.

Dead thy king, and void his throne:
Yet for grief at last
Love makes music of his own
Past.

Machado de Assis – Memórias Póstumas (último capítulo)

(Leia também: https://singularidadepoetica.art/2023/06/01/nelson-santander-dois-capitulos-perdidos-de-memorias-postumas-de-bras-cubas-2/)

Pierre Corneille – Estrofes para a bela marquesa

Marquesa, se minha face
A ti parece mais velha,
Espera que o tempo passe
Que verás a que te espelha.
O tempo, contra o vigor
Das coisas belas, protesta,
E há de te fanar a flor
Tal qual enrugou-me a testa.
Noite e dia tudo flui,
Rege-nos a mesma lei,
Se veem em ti o que já fui,
Tu serás o que tornei.
Há, contudo, um certo encanto
Que, dentro de mim, sobeja,
Maior mesmo do que o espanto
Do tempo quanto troveja.
Tens o encanto que hoje apraz,
Mas desprezas este meu
Que pode valer-te mais
quando fenecer o teu.
Este encanto há de reaver
Dos teus olhos a doçura
E, em mil anos, fazer crer
No prazer que ainda depura.
Se o futuro dá certeza
De que alguém há de me ler,
Lembrarão de tua beleza
Somente se eu descrever.
Mesmo se, bela marquesa,
um velho lhe causa horror,
não lhe poupe gentileza
se ele tiver meu valor.

Trad. Marcelo Diniz

Alberto Caeiro – Há Metafísica demais em não Pensar em Nada

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Jorge Luis Borges – O Suicida

Não ficará na noite uma estrela.
Não ficará a noite.
Morrerei e comigo a suma
Do intolerável universo.
Apagarei as pirâmides, as medalhas,
Os continentes e as caras.
Apagarei a acumulação do passado. 
Farei pó a história, pó o pó.
Estou olhando o último poente.
Ouço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.

Trad.: Antonio Cícero

Omar Khayyan/Edward Fitzgerard – do Rubaiyat

image

Omar Khayyam/Edward Fitzgerard – do Rubaiyat

image

Mário Quintana – O Morto

Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco…
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!

Rodrigo Barata – Cilada

image

Omar Khayyam/Edward Fitzgerard – do Rubayat

image