Rubricavam os decretos, as folhas tristes
sobre a mesa dos seus poderes efémeros.
Queriam ser reis, czares, tantas coisas,
e rodeavam-se de pequenos corvos,
palradores e reverentes, dos que repetem:
és grande, ninguém te iguala, ninguém.
Repartiam entre si os tesouros e as dádivas,
murmurando forjadas confidências,
não amando ninguém, nada respeitando.
Encantavam-se com o eco liquefeito
das suas vozes comandando, decretando.
Banqueteavam-se com a pequenez
de tudo quanto julgavam ser grande,
com os quadros, com o fulgor novo-rico
das vênias e dos protocolos. Vinha a morte
e mostrava-lhes como tudo é fugaz
quando, humanamente, se está de passagem,
corpo em trânsito para lado nenhum.
Acabaram sempre a chorar sobre a miséria
dos seus títulos afundados na terra lamacenta.
Arquivos da tag: Morte
Emily Dickinson – Morri pela Beleza
Morri pela Beleza – e assim que no Jazigo
Meu Corpo foi fechado,
Um outro Morto foi depositado
Num Túmulo contíguo –
“Por que morreu?” murmurou sua voz.
“Pela Beleza” – retruquei –
“Pois eu – pela Verdade – É o Mesmo. Nós
Somos Irmãos. É uma só lei” –
E assim Parentes pela Noite, sábios –
Conversamos a Sós –
Até que o Musgo encobriu nossos lábios –
E – nomes – logo após –
Trad.: Augusto de Campos
I died for Beauty – but was scarce
Adjusted in the Tomb
When One who died for Truth, was lain
In an adjoining Room –
He questioned softly “Why I failed”?
“For Beauty”, I replied –
“And I – for Truth – Themself are One –
We Brethren, are”, He said –
And so, as Kinsmen, met a Night –
We talked between the Rooms –
Until the Moss had reached our lips –
And covered up – our names –
Raymond Carver – O que o Médico Disse
Ele disse não parece bom
ele disse parece mau aliás muito mau
ele disse eu contei trinta e dois deles em um pulmão antes
de parar de contar
eu disse fico feliz não ia querer saber
que tem mais do que isso lá
ele disse por acaso você é religioso você se ajoelha
em bosques na floresta e se permite pedir ajuda
quando encontra uma cachoeira
a névoa soprando contra seu rosto seus braços
você para e pede clareza nesses momentos
eu disse não mas pretendo começar hoje mesmo
ele disse sinto muito ele disse
gostaria de ter outro tipo de notícia para dar
eu disse Amém e ele disse algo mais
que eu não entendi e sem saber mais o que fazer
e sem querer que ele precisasse repetir aquilo
e que eu realmente precisasse digeri-lo
apenas olhei para ele
por um minuto e ele olhou de volta foi então
que me ergui num salto e apertei a mão daquele homem que
acabara de me dar
algo que ninguém no mundo jamais tinha me dado
talvez eu tenha até agradecido por força do hábito
Vinícius de Moraes – O Verbo no Infinito
Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar
Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.
E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito
E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito…
Paulo Nunes – A um antianjo
Em memória de Júlio Caixeta
A mais longa distância que pode haver,
esta que agora vai dos teus pés ao chão,
não te fez mais leve:
foi o mundo e nossas vidas que se soltaram.
Armando Freitas Filho – Antiquário
Mil folhas. Mesmo em algumas das mais
passadas, um pouco do sabor, um risco
de doçura e amargo, é remanescente.
Anamnésia construída pelo fato
e pela imaginação: vai do anátema
ao enaltecimento, expressos em alta voz
até ao murmúrio cifrado no coração.
O acervo de uma vida se dispersará
depois de ela parar: alguma coisa
aqui, nesta casa, para lembrar quem se foi
fica, sem roubo nem degradação, sobrando.
O resto, espalhado na desordem dos arquivos
dos sebos e brechós, nós defeitos
na mudança para lugar nenhum
perdido no limbo, reciclável em outro corpo
e destino, longe do clamor da hora
cada vez mais afastado do limiar original
da montagem do dia, à margem do relógio
rasgado por mãos alheias, posto fora
o sonho, que se açucara, perde o gosto, e fere.
Ricardo Silvestrin – Bilhete
Não me parecias frágil,
via-te doce.
Talvez fosses mesmo forte,
é preciso ser valente
pra decretar a própria morte.
Tinha-te por calmo.
Que rio obscuro e discreto
te puxava para o fundo,
sem saber nadar,
sem ninguém saber de nada?
Não deixaste uma carta,
um poema, um bilhete de suicida.
Como se quisesses dizer
que a morte
não deve explicações à vida
Rainer Maria Rilke – Hora Grave
Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.
Quem agora ri em algum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.
Quem agora caminha em algum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.
Quem agora morre em algum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.
Trad.: Paulo Plínio Abreu
Paulo Henriques Britto – de “Uma Doença”
III
Nenhuma posição é natural.
Qualquer ordenação de pé e mão
e tronco é tão-somente parcial
e momentânea, uma constelação
tão arbitrária e pouco funcional
quanto a Ursa Maior ou o Escorpião.
Nenhuma é estritamente indispensável.
Nenhuma é realmente lenitiva.
Nenhuma é propriamente confortável.
Apenas uma é definitiva.
Omar Khayyam – do Rubaiyat (LXI)
LXI
Não temo a morte. Prefiro esse ato inelutável
ao outro que me foi imposto no dia em que nasci.
O que é a vida, afinal? Um bem que me confiaram
sem me consultarem e que entregarei com indiferença.
Trad.: Alfredo Braga