Ellen Bass – Miniantologia poética – Apresentação

Há tempos – buscando não descuidar da publicação de poetas brasileiros e portugueses e de poemas traduzidos por outras pessoas – tenho me dedicado a traduzir e publicar no blog poemas de escritores de diversas partes do mundo (em especial, dos Estados Unidos e Espanha) pouco conhecidos ou totalmente desconhecidos do leitor brasileiro. Raras vezes me arrisco a traduzir medalhões da poesia internacional. Por duas razões. Primeiro porque poetas famosos – como Emily Dickinson, Raymond Carver, E. E. Cummings, T. S. Eliot, Rainer Maria Rilke e outros que frequentemente aparecem nas postagens – costumam ser regularmente traduzidos e publicados no Brasil, e meu eventual trabalho de tradução muito pouco acrescentaria à excepcional ourivesaria dos tradutores locais. Por outro lado, é certo que existe muita poesia boa e muitos poetas excepcionais de outros países, desconhecidos do leitor de poesia brasileiro, cujos trabalhos são dignos de serem aqui apreciados.

Com base nesse critério, o blog já publicou trabalhos de Ada Limón, Amalia Bautista, Dorianne Laux, Eiléan Ní Chuilleanáin, Francisco Brines, Gonçalo M. Tavares, Ian Hamilton, Jaime Gil de Biedma, Jane Hishfield, Javier Salvago, Joan Margarit, Juan Vicente Piqueras, Linda Pastan, Lisel Mueller, Louise Glück1, Charles Simic, Luis Alberto de Cuenca, Mary Oliver, Marie Howe, Manuel António Pina, Robinson Jeffers, e inúmeros outros, todos notáveis, mas pouco conhecidos no Brasil.

Em uma postagem anterior, expliquei que meu critério para traduzir e publicar ou não um poema no blog é a qualidade do trabalho a ser traduzido/publicado – com base, é claro, no gosto pessoal e no olhar subjetivo do tradutor. Às vezes, me deparo com um poema excepcional de um poeta desconhecido. Traduzo, publico e fico atento. Na maioria das vezes, apenas um ou dois poemas deste escritor passam pelo filtro subjetivo do meu gosto pessoal e acabam sendo traduzidos/publicados.

Há poetas, no entanto, que têm um trabalho tão consistente e de qualidade tão incontestável que quando me dou conta já separei dezenas de seus poemas para serem traduzidos. Assim foi com a mencionada Louise Glück (de quem, dentre vários outros poemas, traduzi A Íris Selvagem na íntegra, dada a organicidade da obra que, segundo entendi, não comportava a publicação de poemas isolados, sob pena de tornar incompreensível a magnitude do trabalho) e Joan Margarit, que sigo traduzindo e publicando: já foram mais de 90 poemas, dentre os quais sua obra-prima, Joana, traduzida na íntegra.

Dentre esses poetas com os quais tive contato mais recentemente, minha mais nova obsessão é a autora Ellen Bass.

Segue uma breve biografia da poeta, extraída de sua página oficial na web (https://www.ellenbass.com/):

Ellen Bass é chanceler da Academy of american poets. Seu livro mais recente, Indigo, foi publicado pela Copper Canyon Press em 2020. Outras coletâneas de poesia incluem: 
Like a Beggar (Copper Canyon Press, 2014) - que foi finalista do Paterson Poetry Prize, The Publishers Triangle Award, The Milt Kessler Poetry Award, The Lambda Literary Award e o Northern California Book Award; 
The Human Line (Copper Canyon Press, 2007); e  
Mules of Love (BOA Editions, 2002), que ganhou o Lambda Literary Award. 
Ela co-editou (com Florence Howe) a primeira grande antologia de poesia feminina, No More Masks! (Doubleday, 1973). Seus poemas têm aparecido frequentemente na The New Yorker e no The American Poetry Review, bem como na The New York Times Magazine, The Atlantic, The American Poetry Review, The New Republic, The Kenyon Review, Plowshares, The Sun  e muitos outros jornais, revistas e antologias.
Foi premiada com bolsas da Fundação Guggenheim, The National Endowment for the Arts e The California Arts Council e recebeu o Elliston Book Award for Poetry da University of Cincinnati, Nimrod / Hardman's Pablo Neruda Prize, The Missouri Review's  Larry Levis Award, Greensboro Poetry Prize, The New Letters Poetry Prize, the Chautauqua Poetry Prize, e três Pushcart Prizes.
Seus livros de não-ficção incluem Free Your Mind: The Book for Gay, Lesbian and Bisexual Youth (HarperCollins, 1996), I Never Told Nobody: Writings by Women Survivors of Child Sexual Abuse  (HarperCollins, 1983) e  The Courage to Heal:  A Guide for Women Survivors of Child Sexual Abuse (Harper Collins, 1988, 2008), que já venderam mais de um milhão de cópias e foram traduzidos para doze idiomas.
Ellen fundou oficinas de poesia na prisão estadual de Salinas Valley e nas prisões de Santa Cruz, CA. 
Ela atualmente leciona no programa de redação de MFA de baixa residência na Pacific University.

Ellen Bass vive atualmente na cidade de Santa Cruz, ao sul de São Francisco, e trabalha como poetisa e professora em tempo integral. Ela tem uma filha (de seu casamento com um ex-marido já falecido) e um filho de seu relacionamento de mais de trinta anos com a esposa atual, Janet3, musa inspiradora de inúmeros poemas.

Integrante de destaque da novíssima geração de poetas americanos, Ellen Bass pratica um tipo de poesia que a crítica classifica como intimista. De fato, seus poemas são encharcados de suas experiências pessoais e escritos com uma honestidade raramente vista em outros escritores. Tudo em sua vida é passível de virar poema: traições, relacionamentos familiares, o sexo (erótico ou sublime), fracassos pessoais e amorosos, nascimento, maternidade, envelhecimento, morte, etc.

Escritora dotada de recursos poéticos sofisticados (a crítica especializada costuma elogiar o controle que ela consegue exercer sobre cada linha de seus poemas e o uso refinado da metáfora) e de uma dicção clara e precisa, sua poesia – absurdamente honesta e despida de floreios – costuma partir do francamente confessional para, no mais das vezes, atingir uma insuspeita nota universal. Ou o contrário:

Eu tento ver o panorama geral.
O sol, língua ardente
que nos lambe como uma mãe encantada
por sua nova cria, se consumirá.
Tudo é transitório.
Pense no meteoro
que aniquilou os dinossauros.
E antes disso, nos vulcões
do Permiano — todas aquelas samambaias
e répteis, tubarões e peixes ósseos queimados —
que foram extintos em uma escala
que faz com que nossas perdas pareçam um dia difícil no caça-níqueis.
(...)
Quando cheguei em casa,
meu filho estava com dor de cabeça e, embora ele esteja
quase crescido, pediu-me que lhe cantasse uma canção.
Deitamos juntos no sofá irregular
e me pus a cantarolar as velhas melodias, “Night and Day”. . .
“They Can’t Take That Away from Me.”. . . Uma corrente
de prata vulgar cintilava em seu pescoço,
subindo e descendo com sua pulsação. Nunca houve
outra coisa. Apenas estas dolorosamente
insignificantes criaturas que amamos.

(O Panorama Geral)

Ellen Bass escreve comumente sobre a vida cotidiana. É habitual a citação a nomes de ruas, lugares, estabelecimentos comerciais, pessoas. Ao mesmo tempo, sua poesia discursa, de maneira simples e direta, sobre as questões existenciais fundamentais da existência humana: de onde vim? Para onde vamos? Qual é o significado da dor? Qual é o meu lugar no grande plano do universo? Essa capacidade de partir das situações mais comezinhas para saltos existenciais profundos, sem que o poema soe pretensioso, é apontado pela crítica como uma de suas características mais impressionantes:

(...)
Mas em uma tarde quente de verão
minha mãe me deixou arrastar a cama para o telhado.
Lençóis secando nos varais,
a caixa de areia do gato no canto,
deitei-me em uma extensão de azul. O sol ondulava
sobre minha pele como uma brisa sobre a água.
Minhas pálpebras se fecharam.
(...)
O sol estava delicioso, acariciando minha pele.
Senti que recém chegara em um corpo
enquanto a cidade girava ao meu redor —
o Teatro Rialto, a Allen Calçados, a Joalheria Stecher,
todo o centro da cidade com três quarteirões de extensão.
E eu estava no centro do nosso minúsculo
sistema solar jogado na borda
de um braço menor, um esporão de uma galáxia espiralada,
encarcada de luz

(Pleasantville, New Jersey, 1955)

Como fiz quando publiquei as obras de Louise Glück e Joan Margarit, para compor esta miniantologia postarei um poema por dia, de amanhã até o dia 08/12.

A coletânea que organizei contempla poemas publicados nos quatro principais livros de poesia da autora – Mules of Love, The Human Line, Like a Beggar e Indigo – e alguns esparsos na internet e em publicações especializadas3. Aliás, todos os poemas que traduzi e irei postar foram retirados da internet.

Torço para que gostem. Se gostarem, por favor, comentem.

Nelson Santander

  1. Aliás, me orgulho em constatar que o blog foi um dos primeiros difundir no Brasil o trabalho da vencedora do Prêmio Nobel de Literatura do ano de 2020 – hoje publicada no Brasil pela Companhia das Letras. Confira: https://amzn.to/3JuZiGe
  2. Para mais detalhes da biografia da autora, o link que segue é um bom começo:
  3. É sempre bom ressaltar que se trata de uma coletânea baseada nas escolhas absolutamente pessoais do tradutor. As obras das quais os poemas foram extraídos são, individualmente e em seu conjunto, excepcionais. Muita coisa ficou de fora e não será surpresa se no futuro eu vier a traduzir outros poemas extraídos desses mesmos livros.

Ellen Bass – A dor de deus

Grande pai
que deve ter começado
com tantas expectativas.
Que magnitude de sofrimento,
imensidão de culpa,
desconcertante desespero.
Uma mente do tamanho do sol,
ardendo em nostalgia,
um coração enorme como o de uma baleia-cinzenta
rompendo, fluindo
na água do mar contra o céu claro.
Deus homem ou deus animal,
deus que respira em cada folha plissada,
saco vocal de sapo, penugem e raque —
deus do plutônio e da penicilina, bêbado
dormindo na grade do metrô,
deus de Joana d´Arc, deus de Crazy Horse,
de Lady Day1, que nos põe de joelhos,
deus de Houdini com suas mãos
como um rio, de Einstein, o arrependimento
correndo em suas veias,
deus de Stalin, deus de Somoza,
deus da Grande Marcha2,
do Caminho das Lágrimas3,
dos trens,
deus de Allende e deus de Tookie4,
do colhedor de morangos, o incêndio às suas costas,
deus da meia-noite, deus do inverno,
deus das crianças raptadas e vendidas
com uma semana de hospedagem
e passagem aérea para a Tailândia,
deus em apuros, deus no fim de sua corda —
insone, impotente —
deus desesperado, desvairado, coração de baleia
extraviada em águas rasas, encalhada
na areia, ressequida, empolada, esmagada
pelo peso massivo da gravidade.

Trad.: Nelson Santander

Notas

  1. Lady Day era o outro nome artístico da cantora-compositora Billie Holiday.
  2. A autora se refere à retirada das brigadas do Partido Comunista Chinês (o Exército Vermelho dos Operários e Camponeses da China) para fugir à perseguição do exército do Kuomintang.
  3. segundo a Wikipedia: “O Caminho das Lágrimas foi o nome dado pelos nativos às viagens de recolocações e migrações forçadas, impostas pelo governo dos Estados Unidos da América às diversas tribos de índios que seriam reunidas no chamado “Território Indígena” (atual Estado de Oklahoma), consoante à política de remoção indígena. Os índios habitavam as regiões ao sul da União. A referência à “Trilha das Lágrimas” foi retirada de uma descrição de um nativo da Nação Choctaw em 1831.” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Trilha_das_L%C3%A1grimas)
  4. Stanley Tookie Williams III, ou Tookie, foi um dos fundadores da gangue conhecida como Crips, uma das mais violentas gangues de rua dos Estados Unidos.

God’s Grief

Great parent
who must have started out
with such high hopes.
What magnitude of suffering,
the immensity of guilt,
the staggering despair.
A mind the size of the sun,
burning with longing,
a heart huge as a gray whale
breaching, streaming
seawater against the pale sky.
Man god or beast god,
god that breathes in every pleated leaf,
throat sac of frog, pinfeather and shaft—
god of plutonium and penicillin, drunk
sleeping on the subway grate,
god of Joan of Arc, god of Crazy Horse,
Lady Day, bringing us to our knees,
god of Houdini with hands
like a river, of Einstein, regret
running thick in his veins,
god of Stalin, god of Somoza,
god of the long march,
the Trail of Tears,
the trains,
god of Allende and god of Tookie,
the strawberry picker, fire in his back,
god of midnight, god of winter,
god of rouged children sold
with a week’s lodging
and airfare to Thailand,
god in trouble, god at the end of his rope—
sleepless, helpless—
desperate god, frantic god, whale heart
lost in the shallows, beached
on the sand, parched, blistered, crushed
by gravity’s massive weight.

Ellen Bass – A dor de Deus

Ellen Bass – Pelo tempo que quiser

No caminho para o cemitério, eu dormi.
Não na limusine que levava o caixão da minha mãe,
mas apagada em uma van, a família toda falando ao meu redor.
Eu estava exausta do sofrimento dela, de seus apelos —
me ajuda e chega, chega
e tentando fazer com que a morfina permanecesse na vala de suas gengivas.
Como pude não ter estudado isso com antecedência?
A maneira como minha mãe aprendeu a dar injeções no curso de enfermagem,
enfiando a agulha em uma laranja
e praticando nas outras meninas.
Deus só nos dá força para um dia de cada vez.
Quantas vezes eu a ouvi dizer isso?
Pergunte a si própria, eu posso fazer este dia?
E então ela fez seu último dia.
No caminho de volta, o motorista se perdeu. Enquanto circulávamos por entre
campos desconhecidos e árvores com flores estonteantes, começamos a imaginar
que poderíamos comprar algumas terras.
Com cavalos. E um lago. Tudo parecia possível.
E hilário. Estávamos um pouco histéricos,
dirigindo-nos para o luxo do futuro.
Nunca mais retornei ao túmulo da minha mãe.
Mas eu a vejo todos os dias. Ei-la de botas de canos curtos,
voltando da praia com um jarro de água do mar.
Todas as manhãs ela me dá uma colherada. Minerais.
Algo que ela leu no Pleasantville Press.
Aqui ela embrulha canecas e copos no mesmo papel,
depositando-os em sacolas pardas.
Ela está contando moedas nas mãos dos clientes,
cuidando para tocar em suas palmas.
E aqui, em seu roupão numa noite de sábado. A loja acabou de fechar.
Ela morde um sanduíche de carne e cebolas, toma uma cerveja.
Amanhã de manhã ela pode dormir até tarde. Há uma lei
em Nova Jersey que obriga as lojas de bebidas a fechar aos domingos.
Uma lei abençoada que permite que minha mãe durma…
e depois se sente com um cigarro e um café preto,
uma perna robusta cruzada sobre a outra.
Ela pode sentar-se ali pelo tempo que quiser.

Trad.: Nelson Santander

Publicada na revista The New Yorker de 11/04/2022 (https://www.newyorker.com/magazine/2022/04/18/as-long-as-she-likes)

As long as she likes

On the way to the cemetery, I slept.
Not in the limousine that carried my mother’s coffin
but out cold in a van, the family all talking around me.
I was exhausted from her suffering, her pleas—
help me and enough, enough
and trying to get the morphine to stay in the ditch of her gums.
How could I not have studied this in advance?
The way my mother learned to give shots in nursing school,
plunging the needle into an orange
then practicing on the other girls.
God only gives you strength for one day at a time.
How many times did I hear her say this?
Ask yourself, can I make this day?
And then she made her last day.
On the way back, the driver got lost. As we circled unfamiliar
fields and trees dizzy with blossoms, we began to imagine
we could buy some land.
Horses. A lake. Everything seemed possible.
And hilarious. We were a little hysterical,
driving into the luxury of the future.
I’ve never returned to my mother’s grave.
But I see her every day. Here she is in short boots,
coming back from the beach with a jar of seawater.
Each morning she feeds me a spoonful. Minerals.
It’s something she read in the Pleasantville Press.
Here she’s wrapping pints and quarts in that same paper,
sliding them into brown bags.
She’s counting out coins into the customers’ hands,
careful to touch their palms.
And here in her bathrobe on a Saturday night. The store just closed.
She bites into a hoagie, steak and onions, sips a beer.
Tomorrow morning she can sleep late. There’s a law
in New Jersey that liquor stores have to close on Sunday.
A blessed law that lets my mother sleep . . .
and then sit down with a cigarette and black coffee,
one strong leg crossed over the other.
She can sit there as long as she likes.

Ellen Bass – Pinheiros de Ponary

Pinheiros de Ponary

Cem mil pessoas foram assassinadas pelos nazistas em Ponary, dez quilômetros a sudoeste de Vilnius, onde minha avó nasceu.

Hoje está cinzento, garoa,
mas não o suficiente para que as gotas se acumulem
nas pontas das agulhas de prata
ou para encharcar as cascas dos pinheiros de Ponary –
alguns deles com mais de um século.
Eles estavam aqui quando
os trens circulavam sobre os trilhos
dormentes. E antes de adentrar
três metros na floresta, eu ouço o som.
Claro. Tinha que existir um trem.
Mas eu não esperava que ainda funcionasse
assim, as pessoas
entrando e saindo com seus pacotes.
Eu não havia pensado no cheiro de resina se espalhando na tarde fria. As árvores
avançam até a borda
dos fossos onde os judeus eram abatidos
de forma que seus corpos caíssem
com eficiência. Seus ramos não puderam salvar
ninguém. Suas agulhas ofereceram oxigênio
às vítimas e aos verdugos, da mesma forma.

Trad.: Nelson Santander

Pines at Ponary

One hundred thousand people were murdered by the Nazis at Ponary, ten kilometers southwest of Vilnius, where my grandmother was born.

Today is gray, drizzling,
but not enough for drops to pool
on the tips of the silver needles
or soak the bark of the pines at Ponary –
some of them more than a century old.
They were here when
the trains wheeled on numb
rails. And before I have gone
ten feet into the forest, I hear the sound.
Of course. There would have to be a train.
But I hadn’t expected it still to run
like this, people
getting off and on with their packages.
I hadn’t thought of the scent of resin spilling into the cold afternoon. The trees
step to the rim
of the pits where Jews were shot
so the bodies fell in
efficiently. Their branches could save
no one. Their needles offered oxygen
to victims and executioners, the same.

Ellen Bass – Pinheiros de Ponary

Pinheiros de Ponary

Cem mil pessoas foram assassinadas pelos nazistas em Ponary, dez quilômetros a sudoeste de Vilnius, onde minha avó nasceu.

Hoje está cinzento, garoa,
mas não o suficiente para que as gotas se acumulem
nas pontas das agulhas de prata
ou para encharcar as cascas dos pinheiros de Ponary –
alguns deles com mais de um século.
Eles estavam aqui quando
os trens circulavam sobre os trilhos
dormentes. E antes de adentrar
três metros na floresta, eu ouço o som.
Claro. Tinha que existir um trem.
Mas eu não esperava que ainda funcionasse
assim, as pessoas
entrando e saindo com seus pacotes.
Eu não havia pensado no cheiro de resina se espalhando na tarde fria. As árvores
avançam até a borda
dos fossos onde os judeus eram abatidos
de forma que seus corpos caíssem
com eficiência. Seus ramos não puderam salvar
ninguém. Suas agulhas ofereceram oxigênio
às vítimas e aos verdugos, da mesma forma.

Trad.: Nelson Santander

Pines at Ponary

One hundred thousand people were murdered by the Nazis at Ponary, ten kilometers southwest of Vilnius, where my grandmother was born.

Today is gray, drizzling,
but not enough for drops to pool
on the tips of the silver needles
or soak the bark of the pines at Ponary –
some of them more than a century old.
They were here when
the trains wheeled on numb
rails. And before I have gone
ten feet into the forest, I hear the sound.
Of course. There would have to be a train.
But I hadn’t expected it still to run
like this, people
getting off and on with their packages.
I hadn’t thought of the scent of resin spilling into the cold afternoon. The trees
step to the rim
of the pits where Jews were shot
so the bodies fell in
efficiently. Their branches could save
no one. Their needles offered oxygen
to victims and executioners, the same.

Ellen Bass – Ode à repetição

Gosto de fazer a mesma caminhada
pela vasta extensão da Woodrow* até o oceano
e na maioria das vezes viro à esquerda em direção ao farol.
O mar é sempre diferente. Em alguns dias oníricos,
ondas que mal ondulam, apenas uma extensa ondulação
sem nenhuma pressa de chegar. Em outros, a rebentação está bêbada,
colidindo contra os rochedos como um acidente de carro.
E quando chego em casa, gosto
dos mesmos pratos empilhados na mesma despensa
e depois desempilhados e empilhados novamente.
E do rododendro, primavera após primavera,
florescendo em seu róseo ritual.
Eu poderia habitar o reino de Coltrane,
a fricção do ar através de sua palheta
enquanto ele dá forma a cada fraseado de Lush Life,
vezes sem conta até eu morrer. Uma vez tive medo
disso, de abrir as cortinas todas as manhãs
apenas para fecha-las novamente a cada noite.
Você pode se desesperar na imutável vila de sua própria vida.
Mas quando acordo para urinar fico grata
pelo banheiro estar em seu lugar de costume, a pia com sua dádiva de água.
Eu olho para a rua, para os halos dos postes de luz
no nevoeiro ou para a lua banhando os carros estacionados.
Quando volto para cama, encontro
a mulher que dorme lá
todas as noites há trinta anos, só que ela não é
a mesma, seu corpo mais nu
em seu envelhecimento, em sua desordem. Embora eu ainda
vá até ela como um pedinte. Uma manhã,
uma de nós se levantará aturdida
sem a outra e abrirá as cortinas.
Lá estará a mesma desordenada sequoia
no quintal do vizinho e as estrelas irrepreensíveis
apagando-se uma a uma ao longo do dia.

Trad.: Nelson Santander

* Woodrow Avenue, uma das vias da cidade de Santa Cruz, Califórnia, onde a poeta reside atualmente.

Ode to Repetition

I like to take the same walk
down the wide expanse of Woodrow to the ocean
and most days I turn left toward the lighthouse.
The sea is always different. Some days dreamy,
waves hardly waves, just a broad undulation
in no hurry to arrive. Other days the surf’s drunk,
crashing into the cliffs like a car wreck.
And when I get home I like
the same dishes stacked in the same cupboards
and then unstacked and then stacked again.
And the rhododendron, spring after spring,
blossoming its pink ceremony.
I could dwell in the kingdom of Coltrane,
the friction of air through his horn
as he forms each syllable of Lush Life
over and over until I die. Once I was afraid
of this, opening the curtains every morning,
only to close them again each night.
You could despair in the fixed town of your own life.
But when I wake up to pee, I’m grateful
the toilet’s in its usual place, the sink with its gift of water.
I look out at the street, the halos of lampposts
in the fog or the moon rinsing the parked cars.
When I get back in bed I find
the woman who’s been sleeping there
each night for thirty years, only she’s not
the same, her body more naked
in its aging, its disorder. Though I still
come to her like a beggar. One morning
one of us will rise bewildered
without the other and open the curtains.
There will be the same shaggy redwood
in the neighbor’s yard and the faultless stars
going out one by one into the day.

Ellen Bass – O importante é

O importante é

amar a vida, ama-la mesmo
quando você não tem estômago para isso
e tudo o que você guardou afetuosamente
se desfaz feito papel queimado em suas mãos,
sua garganta repleta desse lodo.
Quando a dor se senta ao seu lado, seu calor tropical
condensando o ar, pesado como água,
mais apto para guelras do que para pulmões;
quando a dor pesa sobre você como sua própria carne,
só que um pouco mais, uma obesidade de dor,
você pensa: como pode um corpo suportar isso?
Então você segura a vida como um rosto
entre as palmas das mãos, um rosto banal,
sem sorriso encantador nem olhos violeta,
e você diz, sim, eu a aceitarei,
eu a amarei, novamente.

Trad.: Nelson Santander

The Thing Is

to love life, to love it even
when you have no stomach for it
and everything you’ve held dear
crumbles like burnt paper in your hands,
your throat filled with the silt of it.
When grief sits with you, its tropical heat
thickening the air, heavy as water
more fit for gills than lungs;
when grief weights you down like your own flesh
only more of it, an obesity of grief,
you think, How can a body withstand this?
Then you hold life like a face
between your palms, a plain face,
no charming smile, no violet eyes,
and you say, yes, I will take you
I will love you, again.

Ellen Bass – O panorama geral

Eu tento ver o panorama geral.
O sol, língua ardente
que nos lambe como uma mãe encantada

por sua nova cria, se consumirá.
Tudo é transitório.
Pense no meteoro

que aniquilou os dinossauros.
E antes disso, nos vulcões
do Permiano — todas aquelas samambaias

e répteis, tubarões e peixes ósseos queimados —
que foram extintos em uma escala
que faz com que nossas perdas pareçam um dia difícil no caça-níqueis.

E talvez estejamos destinados a evoluir
para algum tipo de inteligência
que não precisa de corpos, ou água potável, ou mesmo de ar.

Mas não consigo deixar de me afligir
pelos últimos seiscentos Linces-ibéricos
com suas orelhas tufadas,

pelos Peixes-viola brasileiros, os 4
porcento deles ainda pervagando
o leito oceânico, olhos fixos no alto.

E por todos os marsupiais recém-nascidos —
Cangurus-vermelhos com filhotes do tamanho de abelhas —
Trutas-arco-íris, Botos-cor-de-rosa,

e pelas muitas espécies de sapos
respirando através de suas úmidas
membranas permeáveis.

Hoje, no ônibus, uma mulher
em um suéter do tom exato dos cardeais,
e sua alça de sutiã carmesim, exposta

em sua pálida espádua, fez-me sofrer
por aqueles brilhantes flashes na neve.
E pelos ursos polares, o creme e o âmbar

de seus pelos, o longo, oco
pelame pelo qual o sol desliza,
engolido em sua pele escura. Quando cheguei em casa,

meu filho estava com dor de cabeça e, embora ele esteja
quase crescido, pediu-me que lhe cantasse uma canção.
Deitamos juntos no sofá irregular

e me pus a cantarolar as velhas melodias, “Night and Day”. . .
“They Can’t Take That Away from Me.”. . . Uma corrente
de prata vulgar cintilava em seu pescoço,

subindo e descendo com sua pulsação. Nunca houve
outra coisa. Apenas estas dolorosamente
insignificantes criaturas que amamos.

Trad.: Nelson Santander

The big picture

I try to look at the big picture.
The sun, ardent tongue
licking us like a mother besotted

with her new cub, will wear itself out.
Everything is transitory.
Think of the meteor

that annihilated the dinosaurs.
And before that, the volcanoes
of the Permian period — all those burnt ferns

and reptiles, sharks and bony fish —
that was extinction on a scale
that makes our losses look like a bad day at the slots.

And perhaps we’re slated to ascend
to some kind of intelligence
that doesn’t need bodies, or clean water, or even air.

But I can’t shake my longing
for the last six hundred
Iberian lynx with their tufted ears,

Brazilian guitarfish, the 4
percent of them still cruising
the seafloor, eyes staring straight up.

And all the newborn marsupials —
red kangaroos, joeys the size of honeybees —
steelhead trout, river dolphins,

so many species of frogs
breathing through their damp
permeable membranes.

Today on the bus, a woman
in a sweater the exact shade of cardinals,
and her cardinal-colored bra strap, exposed

on her pale shoulder, makes me ache
for those bright flashes in the snow.
And polar bears, the cream and amber

of their fur, the long, hollow
hairs through which sun slips,
swallowed into their dark skin. When I get home,

my son has a headache and, though he’s
almost grown, asks me to sing him a song.
We lie together on the lumpy couch

and I warble out the old show tunes, “Night and Day”. . .
“They Can’t Take That Away from Me.”. . . A cheap
silver chain shimmers across his throat,

rising and falling with his pulse. There never was
anything else. Only these excruciatingly
insignificant creatures we love.