Wislawa Szymborska – Bagagem de volta

Uma quadra de pequenas tumbas no cemitério.
Nós, que vivemos muito, passamos furtivamente,
como os ricos passam pelos bairros dos pobres.

Aqui jazem a Zosia, o Jacek, o Dominik,
prematuramente tirados do sol, da lua,
da mudança das estações, das nuvens.

Não juntaram muito na bagagem de volta.
Fragmentos de vista
não muito no plural.
Um punhado de ar com uma borboleta voando.
Uma colherzinha de saber amargo no sabor amargo do remédio.

Desobediências miúdas,
algumas delas mortais.
Corrida alegre atrás de uma bola na estrada.
Patinação feliz sobre o gelo fino.

Aquela ali e aquela ao lado e aqueles mais além:
antes de alcançarem a altura da maçaneta,
quebrarem o relógio,
estilhaçaram a primeira vidraça.

Malgorzata, de quatro anos,
dois dos quais deitada a fitar o teto.
Rafalek: faltou um mês para completar cinco anos,
e à Zuzia faltou a festa natalina
com a fumacinha da respiração no ar gelado.

Que dizer então de um dia de vida,
de um minuto, um segundo:
escuridão, o fulgor de uma lâmpada, escuridão de novo?

KÓSMOS MAKRÓS
CHRÓNOS PARÁDOKSOS
Só o grego pétreo tem palavras para isto.

Trad.: Regina Przybycien

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 08/11/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Bagaż powrotny

Kwatera małych grobów na cmentarzu.
My, długo żyjący, mijamy ją chyłkiem,
jak mijają bogacze dzielnicę nędzarzy.

Tu leżą Zosia, Jacek, Dominik,
przedwcześnie odebrani słońcu, księżycowi,
obrotom roku, chmurom.

Niewiele uciułali w bagażu powrotnym.
Strzępki widoków
w liczbie nie za bardzo mnogiej.
Garstkę powietrza z przelatującym motylem.
Łyżeczkę gorzkiej wiedzy o smaku lekarstwa.

Drobne nieposłuszeństwa,
w tym któreś śmiertelne.
Wesołą pogoń za piłką po szosie.
Szczęście ślizgania się po kruchym lodzie.

Ten tam i tamta obok, i ci z brzegu,
zanim zdążyli dorosnąć do klamki,
zepsuć zegarek,
rozbić pierwszą szybę.

Małgorzatka, lat cztery,
z czego dwa na leżąco i patrząco w sufit.
Rafałek: do lat pięciu brakło mu miesiąca,
a Zuzi świąt zimowych
z mgiełką oddechu na mrozie.

Co dopiero powiedzieć o jednym dniu życia,
o minucie, sekundzie:
ciemność i błysk żarówki i znów ciemność?

KÓSMOS MAKRÓS
CHRÓNOS PARÁDOKSOS
Tylko kamienna greka ma na to wyrazy.

Mary Oliver – Robert Schumann

Mal passa um dia sem que eu pense nele
no hospício: mais jovem

do que sou agora, trilhando a longa estrada
da loucura em direção à morte.

Sua música explode pelo
mundo todo, de um modo que ele

nunca imaginou. E agora compreendo
algo tão assustador e maravilhoso –

como a mente se apega ao caminho conhecido, precipitando-se
pelos cruzamentos, agarrando-se

como fiapo ao que lhe é familiar. Por isso,
mal passa um dia sem que eu

pense nele: aos dezenove anos, digamos, é
primavera na Alemanha

e ele acaba de conhecer uma garota chamada Clara1 e 2.
Ele vira a esquina,

ele raspa a terra das solas dos sapatos,
ele sobe correndo a escada escura, cantarolando.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.:

1. Clara Schumann, nascida Clara Wieck, foi uma virtuosa pianista e compositora alemã do século XIX, reconhecida por suas contribuições significativas para a música clássica. Ela também foi esposa do compositor Robert Schumann. A relação entre Robert e Clara Schumann foi profundamente inspiradora e desempenhou um papel crucial em suas vidas pessoais e carreiras musicais. Clara foi uma grande apoiadora de Robert, interpretando e promovendo suas obras, além de ser uma compositora talentosa em seu próprio direito. Sua conexão amorosa e intelectual influenciou diretamente a música e a arte do período romântico, tornando-os um dos casais mais icônicos da história da música.

2. O belo poema “Romantics”, de Lisel Mueller, que também traduzi para a página, oferece uma perspectiva sensível sobre o relacionamento entre Johannes Brahms e Clara Schumann, destacando a complexidade e a delicadeza das relações interpessoais no século XIX. Vale também a leitura.

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Robert Schumann

Hardly a day passes I don’t think of him
in the asylum: younger

than I am now, trudging the long road down
through madness toward death.

Everywhere in this world his music
explodes out of itself, as he

could not. And now I understand
something so frightening, and wonderful–

how the mind clings to the road it knows, rushing
through crossroads, sticking

like lint to the familiar. So!
Hardly a day passes I don’t

think of him: nineteen, say, and it is
spring in Germany

and he has just met a girl named Clara.
He turns the corner,

he scrapes the dirt from his soles,
he runs up the dark staircase, humming.

Ferreira Gullar – Morrer no Rio de Janeiro

Se for março
  quando o verão esmerila a grossa luz
  nas montanhas do Rio
teu coração estará funcionando normalmente
entre tantas outras coisas que pulsam na manhã
  ainda que possam de repente enguiçar.

Se for março e de manhã
  as brisas cheirando a maresia
quando uma lancha deixa seu rastro de espumas
no dorso da baía
  e as águas se agitam alegres por existirem
  se for março
nenhum indício haverá
  nas frutas sobre a mesa
  nem nos móveis que estarão ali como agora
  – e depois do desenlace – calados.

Tu de nada suspeitas
  e te preparas para mais um dia no mundo.
Pode ser que de golpe
  ao abrires a janela para a esplêndida manhã
te invada o temor:
  ”um dia não mais estarei presente à festa da vida”.
Mas que pode a morte em face do céu azul?
  do escândalo do verão?

A cidade estará em pleno funcionamento
  com suas avenidas ruidosas
  e aciona este dia
que atravessa apartamentos e barracos
da Barra ao morro do Borel, na Glória
onde mendigos estendem roupas
sob uma passarela do Aterro
e é quando um passarinho
  entra inadvertidamente em tua varanda, pia
saltita e se vai.
Uma saudação? um aviso?

Essas perguntas te assaltam misturadas
  ao jorrar do chuveiro
persistem durante o café da manhã
com iogurte e geleia. Mas o dia
  te convida a viver, quem sabe
um passeio a Santa Teresa para ver do alto
a cidade noutro tempo do agora.
  Em cada recanto da metrópole desigual
nos tufos de capim no Lido
nos matos por trás dos edifícios da rua Toneleros
por toda a parte a cidade
  minuciosamente vive o fim do século,
sua história de homens e de bichos,
de plantas e larvas,
de lesmas e de levas
  de formigas e outros minúsculos seres
transitando nos talos, nos pistilos, nos grelos que se abrem
  como clitóris na floresta.
São sorrisos, são ânus, caramelos,
são carícias de línguas e de lábios
  enquanto
         terminado o café
         passas o olho no jornal.

A morte se aproxima e não o sentes
         nem pressentes
não tens ouvido para o lento rumor que avança escuro
  com as nuvens
  sobre o morro Dois Irmãos
  e dança nas ondas
  derrama-se nas areias do Arpoador
sem que o suspeites a morte
  desafina no cantarolar da vizinha na janela.

Teu coração
(que começou a bater quando nem teu corpo existia)
  prossegue
         suga e expele sangue
  para manter-te vivo
  e vivas
  em tua carne
as tardes e ruas (do Catete,
  da Lapa, de Ipanema)
– as lancinantes vertigens dos poemas
que te mostraram a morte num punhado de pó
  o torso de Apolo
ardendo como pele de fera a boca da carranca
dizendo sempre a mesma água pura na noite
com seus abismos azuis

  Teu coração,
esse mínimo pulsar dentro da Via Láctea,
  em meio a tempestades solares,
  quando se deterá?
Não o sabes pois a natureza ama se ocultar.
  E é melhor que não o saibas
para que seja por mais tempo doce em teu rosto
a brisa deste dia
  e continues a executar
sem partitura
a sinfonia do verão como parte que és
desta orquestra regida pelo sol.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 07/11/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Joan Margarit – A perda a inocência

Não escrevas tuas memórias.
Elas lançarão a teus pés aquele que foste,
como um cadáver inimigo.
Quando o passado se torna mentira
pouco resta para levar contigo:
uma convicção inútil e indigna,
alguma equivocada crueldade. Quase nada
sobre o que tenhas que voltar a falar.
A alegria de um velho é o silêncio.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

La Pérdida de la Ignorancia

No escribas tus memorias.
Lanzarán a tus pies a aquel que fuiste,
como un cadáver enemigo.
Cuando el pasado empieza a ser mentira
queda muy poco ya para llevarse:
una inútil e indigna convicción,
alguna equivocada crueldad. Apenas algo
de lo que tengas que volver a hablar.
La alegría de un viejo es el silencio.

Jules Laforgue – O silêncio azul

Por todo o transcorrido eterno e no vindouro,
A Noite universal povoa-se infinita
E cegamente em coágulos onde se agita
A vida que rabisca em arabescos de ouro.

Eis que um daqueles, tão desassistido e só,
Junto a seus deuses, artes, erros e mania,
Seu lodaçal, miséria e cantos de ironia,
Escreve história, grita ao céu e vira pó.

No tempo, é um minuto; um átomo, no espaço,
E um dia o globo morto, tumba do que fora,
Some no nada, sem deixar o nome – ou traço.

Tudo se vai! E o que lhe fez viver outrora?
Onde encontrar sentido no dolente entrudo?
O céu, eterno e azul: melhor quedar-se mudo.

Trad.: André Valias

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 04/11/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Le silence bleu

Depuis l’éternité passée et pour toujours,
La Nuit universelle en tous sens infinie
Se peuple aveuglément de blocs grouillants de vie,
En paraboles d’or entrelaçant leurs cours.

L’un d’eux, dans ces splendeurs perdu, seul, sans secours, Avec ses dieux, ses arts, ses erreurs, son génie, Ses fanges, sa misère et ses chants d’ironie Déroule son histoire en criant aux cieux sourds.

Minute dans le temps, atome dans l’espace, Un jour ce globe mort, tombeau de ce qu’il fut, S’éparpille. – Plus rien – pas un nom – nulle trace.

Il n’est plus! Et tout va ! Quel était donc son but ? Où chercher le pourquoi de ce poignant mystère? – Les cieux sont éternels et bleus, il faut se taire.

Linda Pastan – Funeral Outonal

Funeral Outonal
                                      Para Ag

O mundo está se despindo
de suas mil peles.
A cobra fica nua,
e as agulhas do pinheiro caem
como dentes de um pente partido.
Os fantasmas das folhas mortas
não assombram ninguém. Impossível
entregá-lo ao tempo,
deixá-lo aprisionado em uma árvore morta.
Nenhuma metafísica nos preparou
para o simples ato de nos virarmos
e partirmos.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

October Funeral
For Ag

The world is shedding
its thousand skins.
The snake goes naked,
and the needles of the pine fall out
like the teeth of a comb I broke
The ghosts of dead leaves
haunt no one. Impossible
to give you to the weather,
to leave you locked in a killed tree.
No metaphysic has prepared us
for the simple act of turning
and walking away.

Karmelo C. Iribarren – A herança

Ultimamente,
quando me vejo no espelho,
é meu avô quem me encara,
mais que meu pai.

Cinquenta anos
para começar a entrar na posse
da única herança que ele me deixou,

e que acabará me matando.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 03/11/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

La herencia

Últimamente,
cuando me asomo al espejo,
es mi abuelo el que me mira,
más que mi padre.

Cincuenta años
para empezar a cobrar
la única herencia que me dejó,

y que acabará matándome.

Partricia McKernon Runkle – Ao encontrar alguém em luto profundo

Descalce os sapatos
e coloque-os junto à porta.

Adentre descalço
nesta capela escura,

esvaziada pela perda,
santificada pela dor,

com suas paredes
e piso de pedra cinzenta.

Você, congregação
de uma pessoa,

está aqui para ouvir,
não para cantar.

Ajoelhe-se no último banco,
fique em silêncio.

Deixe as velas
falarem.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

When you meet someone deep in grief

Slip off your shoes
and set them by the door.

Enter barefoot
this darkened chapel,

hollowed by loss,
hallowed by sorrow,

its grey stone walls
and floor.

You, congregation
of one

are here to listen,
not to sing.

Kneel in the back pew,
make no sound.

Let the candles
speak.

Jorge Valdés Díaz-Vélez – Dia dos Mortos

I

Novembro. Dia dos Mortos. Montamos
o nosso altar de papel. O deste ano
decora-se com mais fotografias
do panteão familiar que povoamos
com paciência, sem pausas. Sem chorarmos,
entre os círios e as flores das
tagetes, colocamos as caveiras,
onde cintila o açúcar dos nomes.
Há uma – sorridente – com o meu.

II

Dar a essa luz a sombra que falta,
e à sombra a música, as vozes
rituais do silêncio, e ao silêncio
a Árvore da vida e dos anos
e apagar outra vela até ardermos
de escuridão. Vamos pedir que nasça
já ferida de morte a manhã
para nunca esquecer que partiremos.

Trad.: Inês Dias

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 02/11/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Sharon Olds – Volto a maio de 1937

Vejo-os parados nos portões solenes de suas faculdades,
vejo meu pai caminhando
sob o ocre arco de arenito, os
azulejos vermelhos brilhando como placas
de sangue atrás de sua cabeça,
vejo minha mãe carregando alguns livros leves
parada ao pé do pilar feito de pequenos tijolos,
o portão de ferro fundido ainda aberto atrás dela, as
pontas afiadas brilhando no ar de maio,
eles estão prestes a se formar, estão prestes a se casar,
eles são crianças, são tolos, tudo o que sabem é que são
inocentes, que nunca machucariam ninguém.
Quero ir até eles e dizer: Parem,
não façam isso — ela é a mulher errada,
ele é o homem errado, vocês vão fazer coisas
que nem imaginam que fariam,
vão fazer coisas ruins com seus filhos,
vão sofrer de maneiras das quais nunca ouviram falar,
vocês vão desejar a morte. Quero ir
até eles, sob a luz do sol de fim de maio, e dizer isso,
o belo e ávido rosto dela se voltando para mim,
seu frágil corpo belo e puro,
o belo e arrogante rosto dele se voltando para mim,
seu frágil corpo belo e puro,
mas não vou. Eu quero viver. Eu
os pego como bonecos de papel masculino
e feminino e os esfrego na altura
da cintura como lascas de sílex, como se
quisesse arrancar faísca deles, e digo:
Façam o que irão fazer, e eu contarei essa história.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

I Go Back to May 1937

I see them standing at the formal gates of their colleges,
I see my father strolling out
under the ochre sandstone arch, the
red tiles glinting like bent
plates of blood behind his head, I
see my mother with a few light books at her hip
standing at the pillar made of tiny bricks,
the wrought-iron gate still open behind her, its
sword-tips aglow in the May air,
they are about to graduate, they are about to get married,
they are kids, they are dumb, all they know is they are
innocent, they would never hurt anybody.
I want to go up to them and say Stop,
don’t do it—she’s the wrong woman,
he’s the wrong man, you are going to do things
you cannot imagine you would ever do,
you are going to do bad things to children,
you are going to suffer in ways you have not heard of,
you are going to want to die. I want to go
up to them there in the late May sunlight and say it,
her hungry pretty face turning to me,
her pitiful beautiful untouched body,
his arrogant handsome face turning to me,
his pitiful beautiful untouched body,
but I don’t do it. I want to live. I
take them up like the male and female
paper dolls and bang them together
at the hips, like chips of flint, as if to
strike sparks from them, I say
Do what you are going to do, and I will tell about it.