Roo Borson – Livrai-nos

Livrai-nos da noite,
das infindáveis e sombrias
rodovias, e dos oásis
néon dos postos de gasolina,
do ronco dos motores
imortais após a meia-noite,
quando o tempo perde o sentido,
dos cafés da madrugada,
suas tortas macabras,
e do babado alaranjado no
avental da garçonete,
das cadeiras de plástico combinando,
do laranja e do marrom e de
todos os tons sobrenaturais,
banindo-os de volta ao tubo de ensaio,
livrai-nos deles,
daqueles banheiros com um
cenário lunar refletido no espelho,
da fadiga, sua implacável luminosidade,
quando cada célula se arrepia,
e da sensação nos dentes,
e da eterna sentinela da mente,
e da cidade não mapeada
com sua cama fria.
Livrai-nos da insônia,
de sua maratona,
dos sinos da escola e da fábrica,
das salas de estar como tumbas,
seus sofás quadriculados
e constelações de poeira,
das cadeiras sem braços,
de qualquer conjunto de móveis combinados,
das cortinas até o chão que
encerram o mundo,
dos sutiãs acolchoados e dos ternos alugados,
de qualquer objeto onde o horror esteja oculto.
Livrai-nos de acordar após os pesadelos,
livrai-nos dos pesadelos,
de outros mundos,
dos contornos imóveis e mudos
das cômodas e dos sapatos,
de outro dia imensurável, livra-nos.

Trad.: Nelson Santander

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Save Us From

Save us from night,
from bleak open highways
without end, and the fluorescent
oases of gas stations,
from the gunning of immortal
engines past midnight,
when time has no meaning,
from all-night cafes,
their ghoulish slices of pie,
and the orange ruffle on the
apron of the waitress,
the matching plastic chairs,
from orange and brown and
all unearthly colours,
banish them back to the test tube,
save us from them,
from those bathrooms with a
moonscape of skin in the mirror,
from fatigue, its merciless brightness,
when each cell of the body stands on end,
and the sensation of teeth,
and the mind’s eternal sentry,
and the unmapped city
with its cold bed.
Save us from insomnia,
its treadmill,
its school bells and factory bells,
from living rooms like the tomb,
their plaid chesterfields
and galaxies of dust,
from chairs without arms,
from any matched set of furniture,
from floor-length drapes which
close out the world,
from padded bras and rented suits,
from any object in which horror is concealed.
Save us from waking after nightmares,
save us from nightmares,
from other worlds,
from the mute, immobile contours
of dressers and shoes,
from another measureless day, save us.

Czeslaw Milosz – A queda

A morte de um homem é como a queda de uma poderosa nação
Que teve valentes exércitos, capitães e profetas,
E ricos portos e barcos em todos os mares,
Mas agora não socorrerá nenhuma cidade sitiada,
Não entrará em nenhuma aliança,

Porque suas cidades estão vazias, sua população dispersa,
Sua terra que certa vez proveu de colheitas está saturada de cardos,
Sua missão olvidada, sua língua perdida,
O dialeto de um povo posto sobre inacessíveis montanhas.

Trad.: Pedro Gonzaga

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 07/07/2019

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Upadek

Śmierć człowieka jest jak upadek państwa potężnego,
Które miało bitne armie, wodzów i proroków,
I porty bogate, i na wszystkich morzach okręty,
A teraz nie przyjdzie nikomu z pomocą, z nikim nie zawrze przymierzy,

Bo miasta jego puste, ludność w rozproszeniu,
Oset porósł jego ziemie kiedyś dającą urodzaj,
Jego powołanie zapomniane, język utracony,
Dialekt wioski gdzieś daleko w niedostępnych górach.

Adam Zagajewski – Tente louvar o mundo mutilado

Tente louvar o mundo mutilado.
Lembre-se dos longos dias de junho,
dos morangos silvestres e das gotas de vinho rosé.
Das urtigas que metódicas invadem
as propriedades abandonadas dos exilados.
Você deve louvar o mundo mutilado.
Você observou os elegantes iates e navios;
um deles tinha uma longa jornada pela frente,
enquanto o salino esquecimento aguardava os demais.
Você viu os refugiados indo a lugar nenhum,
você ouviu os algozes cantando alegremente.
Você deveria louvar o mundo mutilado.
Lembre-se dos momentos em que estiveram juntos,
em um quarto branco onde a cortina tremulava.
Volte ao concerto onde a música resplandecia.
Você colheu nozes no parque durante o outono
e as folhas rodopiavam sobre as cicatrizes da terra.
Louve o mundo mutilado
e a pena cinza que um tordo perdeu,
e a luz suave que se afasta, e desaparece
e retorna.

Trad.: Nelson Santander, a partir da versão do poema em inglês traduzido por Clare Cavanagh

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Try to Praise the Mutilated World

Try to praise the mutilated world.
Remember June’s long days,
and wild strawberries, drops of rosé wine.
The nettles that methodically overgrow
the abandoned homesteads of exiles.
You must praise the mutilated world.
You watched the stylish yachts and ships;
one of them had a long trip ahead of it,
while salty oblivion awaited others.
You’ve seen the refugees going nowhere,
you’ve heard the executioners sing joyfully.
You should praise the mutilated world.
Remember the moments when we were together
in a white room and the curtain fluttered.
Return in thought to the concert where music flared.
You gathered acorns in the park in autumn
and leaves eddied over the earth’s scars.
Praise the mutilated world
and the gray feather a thrush lost,
and the gentle light that strays and vanishes
and returns.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Quando

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 05/07/2019

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Ada Limón – Antes

Descalça e usando um capacete
vermelho reluzente, eu cavalgava
na garupa da Harley do meu pai
aos sete anos de idade.
Antes do divórcio.
Antes do novo apartamento.
Antes do novo casamento.
Antes da macieira.
Antes das cerâmicas na lixeira.
Antes da corrente do cachorro.
Antes que as carpas fossem todas comidas
pela garça. Antes da estrada
entre nós, havia a estrada
embaixo de nós, e eu era
grande o suficiente para não me soltar:
Henno Road, riacho logo abaixo,
violento vento, pernas em alicate,
e nunca soube que sobreviver
era assim. Se você sobrevive,
olha para trás e implora
por isso novamente: a arriscada
felicidade antes de compreender
o que você perderia.

Trad.: Nelson Santander

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Before

No shoes and a glossy
red helmet, I rode
on the back of my dad’s
Harley at seven years old.
Before the divorce.
Before the new apartment.
Before the new marriage.
Before the apple tree.
Before the ceramics in the garbage.
Before the dog’s chain.
Before the koi were all eaten
by the crane. Before the road
between us, there was the road
beneath us, and I was just
big enough not to let go:
Henno Road, creek just below,
rough wind, chicken legs,
and I never knew survival
was like that. If you live,
you look back and beg
for it again, the hazardous
bliss before you know
what you would miss.

Ian Hamilton – Fantasmas

O caixão lustroso e suntuosamente adornado
Desliza como um novo navio para as profundezas em chamas.
Na terra firme,
A congregação se ajoelha em murmúrios.

Do meu banco no canto
Tenho uma visão livre e desimpedida
de sua partida.
Se você estivesse deitada de lado
Talvez pudesse captar seu olhar insuspeito.

No pátio, ao anoitecer,
Os tributos florais. Eu poderia jurar
Tê-la visto
Aspirando o aroma das coroas de flores
E contando as cabeças inclinadas dos enlutados por você.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 01/07/2019

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Ghosts

The scrubbed, magnificently decked coffin
Skates, like a new ship, into the fiery deep.
On dry land,
The congregation rustles to its knees.

From my corner pew
I command an unobstructed view
Of your departure.
If you had been lying on your side
I might have caught your unsuspecting eye.

Out on the patio, at dusk,
The floral tributes. I could almost swear
That it was you I saw
Sniffing the wreath-scented air
And counting the bowed heads of your bereaved.

Konstantinos Kaváfis – Muros

Sem cuidado nenhum, sem respeito nem pesar
Ergueram à minha volta altos muros de pedra.

E agora aqui estou, em desespero, sem pensar
noutra coisa: o infortúnio a mente me depreda.

E eu que tinha tanta coisa por fazer lá fora!
Quando os ergueram, mal notei os muros, esses.

Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora.
Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.

Trad.: José Paulo Paes

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Joan Margarit – Banheiro

Cuido para que não caias ao banhar-te,
e ao secar-te as costas sigo suavemente
a grande cicatriz da espinha.
O futuro está sempre na janela.
Tua vida é este pequeno espaço
de tua cama e tua música, este céu
de umas poucas pessoas e uma casa.
E pela primeira vez
não estarei mais contigo.
Não virei mesmo que me chames.
Ficarei te olhando
nas fotografias dos álbuns
que folheias amiúde. Teu herói
ainda não aprendeu a lidar com a morte.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 29/06/2019

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Joan Margarit – Cuarto de Baño

Cuido que no te caigas al ducharte,
y al secarte la espalda sigo con suavidad
la larga cicatriz del espinazo.
El futuro está siempre en la ventana.
Tu vida es este pequeño espacio
de tu cama y tu música, este cielo
de unas pocas personas y una casa.
Y por primera vez
ya no estaré contigo.
No vendré aunque me llames.
Me quedaré mirándote
en las fotografía de los álbumes
que hojeas a menudo.
Tu héroe no ha aprendido aún a morir.

Rachel McKibbens — Sem título

Às minhas filhas eu preciso dizer:

Fiquem com quem as ama biblicamente.
Aquele cujo amor ergue a cabeça para vocês,
apesar do pescoço quebrado. Cujo corpo prorrompe
em dezesseis braços elétricos para carrega-las, delicados
como a velha dor é delicada.

Amem o amor que é uma bagunça em todo seu excesso,
o corpo que cavalga melhor o seu corpo, cuja boca
sela o sal nu de seus distantes quadris,
cuja língua traduz a linguagem rochosa de
todas as suas elegantes cicatrizes.

Fiquem com o que clama por suas trágicas irmãs
enquanto racha a lenha do inverno, aquele cuja pele
faz seus corações dispararem para um paraíso de valsas de sangue.

Fiquem com aquele que mais se assemelha ao seu pai.
Não o pai que vocês podem apontar em um mapa,
mas o pai que está aqui, que é o lar de vocês,
a chave de sua porta da frente.

Saibam que seu primeiro amor será apenas o primeiro.
E o segundo, o terceiro e mesmo o quarto
não as prepararão para o mais importante:

O bendito. O bicho. O Último Amor,

que é, claro, o tipo mais terrível.
Porque quem de nós quer ir atrás do que pode nos matar?
Pode revelar o verdadeiro fim de nossos corações e seus trinta anos
gastos na miséria? Pode imitar o som das aves de nossas mães,
replicar o calor dos temperamentos de nossos irmãos?
Pode nos tirar de nós mesmas até que não sejamos mais irmãs
ou filhas ou engolidoras de espadas, mas, em vez disso,
mulheres que dão e lideram e tomam e querem
e querem e querem e querem,
porque não há vergonha em querer.

E vocês ouvirão a si mesmas dizendo:

Último amor, desejo morrer para poder voltar para ti
nova e nunca provada por nenhuma outra boca além da tua.
E quero ser as mãos que tiram teus filhos
de dentro de ti e os guardam profundamente dentro de mim, até estarem
prontos para serem filhos de um amor tão real e impressionante.
Ou vocês vão dizer:

Último Amor, estou velha, e já me consumi com os covardes,
desperdicei tempo demais com homens menos merecedores,
por isso me atiro ao teu trono e me prostro humildemente aos teus pés.

Último Amor, nunca me permitas sair desse pesado sonho que és tu,
permite que o dia em que nasci signifique que minha vida terminará
onde terminas. Permite que o cara atrás da igreja faça
o que fez se isso me trouxer até ti. Permite que as garotas
no vestiário me encurralem de novo se isso me trouxer até ti.
Permite que essa depressão selvagem me jogue sob seus cascos
se isso me trouxer até ti. Permite que eu pronuncie minha alegria acumulada
se isso me trouxer até ti. Permite que meu pai me quebre de novo
e de novo se isso me trouxer até ti.

Último amor, permiti que outros homens tomassem emprestados teus filhos. Perdoa-me.
Último amor, uma vez prometi meu coração a outro. Perdoa-me.
Último amor, permiti que minha mãos cegas e ansiosas vagassem por um quarto
e saíssem vazias. Perdoa-me.

Último amor, amaldiçoei as mulheres que amaste antes de mim. Perdoa-me.
Último amor, invejo o corpo de tua mãe, onde residiste primeiro. Perdoa-me.
Último amor, eu sou tudo o que restou. Perdoa-me.
Último amor, não te vi chegando. Perdoa-me.

Último Amor, cada dia sem ti foi uma vida da qual emergi rastejando. Amém.
Último Amor, tu és meu Último Amor. Amém.
Último Amor, eu sou tudo o que restou. Amém.

Eu sou tudo o que restou.
Amém.

Trad.: Nelson Santander

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Untitled

To my daughters I need to say:

Go with the one who loves you biblically.
The one whose love lifts its head to you
despite its broken neck. Whose body bursts
sixteen arms electric to carry you, gentle
the way old grief is gentle.

Love the love that is messy in all its too much,
The body that rides best your body, whose mouth
saddles the naked salt of your far gone hips,
whose tongue translates the rock language of
all your elegant scars.

Go with the one who cries out for her tragic sisters
as she chops the winter’s wood, the one whose skin
triggers your heart into a heaven of blood waltzes.

Go with the one who resembles most your father.
Not the father you can point out on a map,
but the father who is here, is your home,
is the key to your front door.

Know that your first love will only be the first.
And the second and third and even fourth
will unprepare you for the most important:

The Blessed. The Beast. The Last Love,

which is, of course, the most terrifying kind.
Because which of us wants to go with what can murder us?
Can reveal to us our true heart’s end and its thirty years
spent in poverty? Can mimic the sound of our bird-throated mothers,
replicate the warmth of our brothers’ tempers?
Can pull us out of ourselves until we are no longer sisters
or daughters or sword swallowers but, instead,
women who give and lead and take and want
and want and want and want,
because there is no shame in wanting.

And you will hear yourself say:

Last Love, I wish to die so I may come back to you
new and never tasted by any other mouth but yours.
And I want to be the hands that pull your children
out of you and tuck them deep inside myself until they are
ready to be the children of such a royal and staggering love.
Or you will say:

Last Love, I am old, and have spent myself on the courageless,
have wasted too many clocks on less-deserving men,
so I hurl myself at the throne of you and lie humbly at your feet.

Last Love, let me never roll out of this heavy dream of you,
let the day I was born mean my life will end
where you end. Let the man behind the church
do what he did if it brings me to you. Let the girls
in the locker room corner me again if it brings me to you.
Let this wild depression throw me beneath its hooves
if it brings me to you. Let me pronounce my hoarded joy
if it brings me to you. Let my father break me again
and again if it brings me to you.

Last love, I have let other men borrow your children. Forgive me.
Last love, I once vowed my heart to another. Forgive me.
Last Love, I have let my blind and anxious hands wander into a room
and come out empty. Forgive me.

Last Love, I have cursed the women you loved before me. Forgive me.
Last Love, I envy your mother’s body where you resided first. Forgive me.
Last Love, I am all that is left. Forgive me.
Last Love, I did not see you coming. Forgive me.

Last Love, every day without you was a life I crawled out of. Amen.
Last Love, you are my Last Love. Amen.
Last Love, I am all that is left. Amen.

I am all that is left.
Amen.

Joseph Stroud – Lázaro em Varanasi

De uma pira no flamejante ghat1,
um cadáver se ergue lentamente entre as chamas.
Como se lembrasse de algo importante.
Como se quisesse olhar ao redor uma última vez.
Como se finalmente tivesse algo a dizer.
Como se houvesse uma saída para isso.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 24/06/2019

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Lazarus In Varanasi

From a pyre on the burning ghat
a corpse slowly sits up in the flames.
As if remembering something important.
As if to look around one more time.
As if he has something at last to say.
As if there might be a way out of this.

  1. Os ghats são conjuntos de degraus que levam à beira de rios sagrados na Índia, tradicionalmente usados para banhos rituais, cerimônias religiosas e cremações. Varanasi, mencionada no título do poema, é uma cidade situada às margens do rio Ganges (considerado sagrado pelos indianos), reconhecida por suas cerimônias de cremação e sua profunda ligação com a espiritualidade e os ritos mortuários. ↩︎