Joan Margarit – Aventura Doméstica

Sozinho em casa, vasculhando os armários.
Encontro um antigo mapa rodoviário,
contratos vencidos, canetas-tinteiro
que já não escreverão mais cartas,
calculadoras com pilhas descarregadas
e relógios que o tempo derrotou.
Nas profundezas das gavetas, como um rato triste,
aninha-se o passado. Vazios, os vestidos
pendem como velhos personagens
que nos interpretaram.
De repente, encontro também tua lingerie,
cor de areia, da noite, com pequenos bordados.
Calcinhas, sutiãs, meias que desdobro
e que me fazem voltar à brilhante
– e ao mesmo tempo misteriosa –
essência do amor e do sexo:
o que verdadeiramente dá vida às casas,
assim como se lhe dá aos portos distantes
a luz de seus cafés e de seus barcos

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 17/11/2018

Joan Margarit – Aventura Doméstica

Solo en casa y mirando en los armarios.
Encuentro algún antiguo mapa de carreteras,
contratos que han vencido, estilográficas
que ya no escribirán ninguna carta,
calculadoras con las pilas secas
y relojes que el tiempo ha derrotado.
En los cajones suele, como una rata triste,
anidar el pasado. Vacíos, los vestidos
cuelgan igual que viejos personajes
que nos interpretaron.
Pero encuentro también tu lencería,
color arena, o noche, con pequños bordados.
Bragas, sostenes, medias que despliego
y que me hacen volver hasta el brillante
– y a la vez misterioso – fondo de amor y sexo:
lo que da, de verdad, vida a las casas,
igual que se la da a los puertos lejanos
la luz de sus cafés y de sus barcos.

Louis Macneice – E o amor pairou sobre a cama

E o amor pairou sobre a cama, tranqüilo como cristal.
e encheu os cantos do quarto enorme:
a explosão da manhã que a deixou dormindo, mostrando
as flores refletidas na mesa de mogno.

Ó meu amor, se eu pudesse unicamente
prolongar esta hora de calma depois da paixão,
não racionar a felicidade mas conservar para sempre esta porta
fechada para o mundo e seu próprio mundo fechado por ela.

Mas as ondas da manhã importunam com o minuto efervescente,
os nomes dos livros fazem-se claros em suas prateleiras,
a razão escava a serviço do dever e tu acordarás
com um sobressalto e continuarás vivendo por tua própria conta.

O primeiro trem passa e as janelas gemem,
vozes se jactarão e tua voz se tornará
um tambor em harmonia com as deles: por toda esta noite, contudo,
como seiva a trabalhar através de uma árvore faminta,
ela afirmou nossa identidade de uma noite.

Trad.: Péricles Eugênio da Silva Ramos

And love hung still

And love hung still as crystal over the bed
And filled the corners of the enormous room;
The boom of dawn that left her sleeping, showing
The flowers mirrored in the mahogany table.

O my love, if only I were able
To protract this hour of quiet after passion.
Not ration happiness but keep this door for ever
Closed on the world, its own world closed within

But dawn’s waves trouble with the bubbling minut
The names of books come clear upon their shelves
The reason delves for duty and you will wake
With a start and go on living on your own.

The first train passes and the windows groan,
Voices will hector and your voice become
A drum in tune with theirs, which all last night
Like sap that fingered through a hungry tree
Asserted our one night’s identity.

Kamala Das – O espelho

Ganhar o amor de um homem é fácil
Basta ser honesta sobre o que você deseja como
Mulher. Fique nua diante do espelho na presença dele
Para que ele se veja como o mais forte,
Acredite nisso, e a veja muito mais
Suave, mais jovem, mais encantadora. Demonstre sua
Admiração. Observe a perfeição
Dos membros dele, os olhos avermelhados debaixo
Do chuveiro, o andar vacilante sobre o piso do banheiro,
Deixando cair a toalha, o modo espasmódico dele
Urinar. Todos os detalhes afetuosos que fazem
Dele um homem e o tornam seu único homem. Dê-lhe tudo,
Presenteie-o com tudo o que faz de você uma mulher: o cheiro de
Cabelos compridos, o almíscar de suor entre os seios,
O intenso odor do sangue menstrual, e todos os seus
Infinitos desejos femininos. Sim, ganhar
o amor de um homem é fácil, mas viver
Sem ele depois pode ser algo que precise ser
Enfrentado. Uma vida sem vida quando se
Caminha encontrando estranhos, com olhos que
Já desistiram de procurar, com ouvidos que ouvem apenas
A voz dele chamando seu nome pela última vez, e seu
Corpo que costumava brilhar com o toque dele,
como bronze polido, agora opaco e sem vida.

Trad.: Nelson Santander

The Looking Glass

Getting a man to love you is easy
Only be honest about your wants as
Woman. Stand nude before the glass with him
So that he sees himself the stronger one
And believes it so, and you so much more
Softer, younger, lovelier. Admit your
Admiration. Notice the perfection
Of his limbs, his eyes reddening under
The shower, the shy walk across the bathroom floor,
Dropping towels, and the jerky way he
Urinates. All the fond details that make
Him male and your only man. Gift him all,
Gift him what makes you woman, the scent of
Long hair, the musk of sweat between the breasts,
The warm shock of menstrual blood, and all your
Endless female hungers. Oh yes, getting
A man to love is easy, but living
Without him afterwards may have to be
Faced. A living without life when you move
Around, meeting strangers, with your eyes that
Gave up their search, with ears that hear only
His last voice calling out your name and your
Body which once under his touch had gleamed
Like burnished brass, now drab and destitute

Philip Larkin – Continuar a viver

Continuar a viver – isto é, repetir
Um hábito formado para obter o necessário –
Quase sempre significa perder, ou passar sem.
  É variável.

Essa perda de interesse, cabelos e ambição –
Ah, se o fosse pôquer, sim,
Você poderia descartá-los, fazer um full house!
  Mas é xadrez.

E uma vez que tenha percorrido toda a extensão da mente,
O que você comanda é claro como uma lista de carga.
Nada mais deve, para você, ser considerado
  Como existente.

E qual é o lucro? Apenas que, com o tempo,
Meio que identificamos a marca cega
Que todos os nossos comportamentos carregam, podemos rastreá-la.
  Mas confessar,

Naquele serena tarde em que nossa morte começa,
O que foi, não é totalmente satisfatório,
Já que se aplicou apenas a um homem uma vez,
  E a um agonizante.

Trad.: Nelson Santander

Philip Larkin – Continuing to live

Continuing to live — that is, repeat
A habit formed to get necessaries —
Is nearly always losing, or going without.
It varies.

This loss of interest, hair, and enterprise —
Ah, if the game were poker, yes,
You might discard them, draw a full house!
But it’s chess.

And once you have walked the length of your mind, what
You command is clear as a lading-list.
Anything else must not, for you, be thought
To exist.

And what’s the profit? Only that, in time,
We half-identify the blind impress
All our behavings bear, may trace it home.
But to confess,

On that green evening when our death begins,
Just what it was, is hardly satisfying,
Since it applied only to one man once,
And that one dying.

Dennis Trudell – Conto de Feriado

Uma mulher nunca contou ao marido
ou a qualquer pessoa sobre o bilhete de amor
que recebera há trinta anos. Não havia
assinatura, e depois de tentar adivinhar inúmeras
vezes quem na cidade o enviara, ela
há muito aceitara que nunca o saberia.
O bilhete era breve, com apenas quatro frases: “Eu
a amo profundamente e espero sempre ama-la.
Você tem uma família e por isso vou me manter
afastado. Todo 4 de julho, às 10 da manhã,
eu ligarei e desligarei após um toque,
para que você saiba que isso ainda continua. Se estiver
ocupado, ligarei às 11 e assim por diante.” Estava
datilografado, assim como o nome e o endereço dela,
e fora postado nos arredores. Ela e a família
estiveram fora da cidade algumas vezes naquele
feriado ao longo dos anos, mas nos outros
ela esperou por aquele único
toque, e ele sempre veio. Eles se mudaram após o nascimento
do terceiro filho — o telefone ainda
tocou no 4 de julho seguinte, fazendo-a perceber
o quanto dependia daquilo, sem querer
nada mais dele. Seus filhos
saíram de casa e tiveram seus próprios
filhos. Agora ela tem cinquenta e seis anos
e acordou neste 4 de julho pensando
em um homem, sem dúvida tão velho quanto ela –
ela tem certeza de que é um homem. Ela pode
ter passado por ele novamente esta semana,
tê-lo cumprimentado ou não. Ela não tem certeza
se o telefone tocará; ele pode ter morrido
no ano passado. Ou estar morrendo agora.
Contudo, às 10 da manhã, ela houve o som
e não se preocupa em atender. Sorri
para aquilo que decidiu há anos ser
um presente. Sentirá um leve arrepio
pelo resto do dia. Esta noite, na cama,
ela ficará acordada por mais tempo do que o habitual,
ao lado do marido. E, como sempre,
murmurará “Obrigada” uma única vez.

Trad.: Nelson Santander

Holiday Tale

A woman has never told her husband
nor anyone else about the love note
she received thirty years ago. It was
unsigned, and after guessing often,
often about who in town sent it, she has
long accepted that she’ll never know.
The note was short, four sentences: “I
love you deeply and expect I always will.
You have a family and so I’ll keep my
distance. Each 4th of July I’ll phone
at 10 a.m. and hang up after one ring,
to let you know it’s still true. If it’s
busy, I’ll ring at 11 & so on.” This
was typed, as was her name and address,
postmarked locally. She and family
were out of town a few times on that
holiday over the years, but on the rest
of them she’d waited for that single
ring, and it came. They moved after a
third child was born—the phone still
rang the next 4th, making her realize
how much she counted on that, wanting
nothing more from him. Their children
left home and had children of their
own. Now she is fifty-six years old
and woke on this 4th of July thinking
about a man no doubt at least that old:
she feels certain it’s a man. She may
have walked past him again this week,
greeted him or not. She isn’t positive
the ring will occur; he could have died
in the past year. Or be dying now.
Yet at 10 a.m. she hears the sound
and doesn’t bother to answer. Smiles
at what she’s decided years ago is
a gift. It will tingle faintly inside
for the rest of the day. Tonight in bed
she will lie awake beside her husband
longer than usual. And will murmur
as always, “Thank you” just once.

Ana Martins Marques – Caçada

E o que é o amor
senão a pressa
da presa
em prender-se?

A pressa
da presa
em
perder-se

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 07/11/2018

W. S. Merwin – Separação

Sua ausência me atravessou
Como linha em uma agulha.
Tudo o que faço é costurado com esta cor.

Trad.: Nelson Santander

Separation

Your absence has gone through me
Like thread through a needle.
Everything I do is stitched with its color.

R.I.P Louise Glück

Nós vemos o mundo uma única vez, na infância.
O resto é memória.

Louise Glück (1943-2023)

Juan Ramón Jiménez – Com tua Voz

Quando estiver entre as raízes
chama-me com tua voz.
Sentirei que penetra
tremulando a luz do sol.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado originalmente na página em 23/11/2018

Con tu voz

Cuando esté con las raíces
llámame tú con tu voz.
Me parecerá que entra
temblando la luz del sol.

Alden Nowlan – Grandes coisas aconteceram

Estávamos conversando sobre os grandes eventos
que ocorreram em nossas vidas;
e eu disse: “Ah, acho que o pouso na lua
foi a melhor coisa que aconteceu na minha
época.” Mas, é claro, todos nós estávamos mentindo.
A verdade é que o pouso na lua não significou
nem de longe o mesmo que uma noite em 1963,
quando morávamos em um apartamento de três cômodos no que antes fora
a mansão de algum próspero comerciante vitoriano
(nossa cozinha havia sido um closet, tenho certeza),
em uma rua onde agora não mora ninguém
que tenha dinheiro para viver em qualquer outro lugar.
Naquela noite, nós três, Claudine, Johnnie1 e eu,
acordamos às quatro e meia da manhã
e comemos, juntos, torradas de canela.

“Isso é tudo?”, ouço alguém perguntar.

Ah, mas estávamos tontos de sono
e os garis, sob as nossas janelas,
trabalhavam em suas máquinas e conversavam em italiano,
e tudo parecia estranho sem ser ameaçador,
até mesmo o apito da chaleira era diferente
do que durante o dia: era como a sensação
que se tem às vezes em um país que nunca se visitou
antes, quando o pão não tem o mesmo sabor,
a manteiga é uma pequena aventura, e eles colocam
páprica na mesa em vez de pimenta,
exceto que não havia ninguém neste país
além nós três, meio atordoados pela maravilha
de estarmos vivos, e totalmente envoltos em amor.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: 1. Esposa e filho do poeta, respectivamente.

Great Things Have Happened

We were talking about the great things
that have happened in our lifetimes;
and I said, “Oh, I suppose the moon landing
was the greatest thing that has happened
in my time.” But, of course, we were all lying.
The truth is the moon landing didn’t mean
one-tenth as much to me as one night in 1963
when we lived in a three-room flat in what once had been
the mansion of some Victorian merchant prince
(our kitchen had been a clothes closet, I’m sure),
on a street where by now nobody lived
who could afford to live anywhere else.
That night, the three of us, Claudine, Johnnie and me,
woke up at half-past four in the morning
and ate cinnamon toast together.

“Is that all?” I hear somebody ask.

Oh, but we were silly with sleepiness
and, under our windows, the street-cleaners
were working their machines and conversing in Italian, and
everything was strange without being threatening,
even the tea-kettle whistled differently
than in the daytime: it was like the feeling
you get sometimes in a country you’ve never visited
before, when the bread doesn’t taste quite the same,
the butter is a small adventure, and they put
paprika on the table instead of pepper,
except that there was nobody in this country
except the three of us, half-tipsy with the wonder
of being alive, and wholly enveloped in love.