Wislawa Szymborska – A Mulher de Lot

Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.

Trad.: Regina Przybycien

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 02/08/2018

Linda Pastan – Os tordos

Só posso chamá-la de pós-
pós-moderna — esta música

deixada pelos tordos
enquanto voejam para o sul

abandonando as árvores —
estes frondosos cancioneiros —

como enlouquecidas notas
individuais.

E os bosques ressoam
com os primeiros sons

do outono, dissonantes
e sombrios,

antes que uma única
folha se transforme.

Trad.: Nelson Santander

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The Blackbirds

I can only call it post
post modern—this music

let loose by the blackbirds
as they swarm south

abandoning trees—
those leafy songbooks—

like individual notes
gone mad.

And the woods ring
with the first sounds

of autumn, raucous
and dark,

before a single
leaf has changed.

Anna Akhmátova – A Mulher de Lot

A mulher de Lot, que o seguia, olhou
          para trás e transformou-se numa estátua de sal.
               Gênesis

E o homem justo seguiu o enviado de Deus,
alto e brilhante, pelas negras montanhas.
Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:
“Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar
as rubras torres da tua Sodoma natal,
a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,
as janelas vazias da casa elevada
onde destes filhos ao homem amado”.
Ela olhou e – paralisada pela dor mortal -,
seus olhos nada mais puderam ver.
E converte-se o corpo em transparente sal
e os ágeis pés no chão enraizaram-se.
Quem há de chorar por essa mulher?
Não é insignificante demais para que a lamentem?
E, no entanto, meu coração nunca esquecerá
quem deu a própria vida por um único olhar.

Trad.: Lauro Machado Coelho

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 01/08/2018

Samuel Daniel – Soneto XXXVIII (de Delia)

Quando murchar a flor, a glória dessa imagem,
e tu sozinha, o rosto cheio de cuidado,
no espelho que não mente leres a mensagem
de que tua beleza já terá findado:
verás vivas as chagas que fizeste em mim,
e, extinta a chama tua, eu a guardar-lhe o ardor;
que, se antes de fanares eu te amei assim,
em teu declínio aumentará o meu fervor.
Em mim este milagre observará o mundo,
o fogo a arder depois de o lenho consumido;
então verás que o meu afeto foi profundo,
e talvez te arrependas de tão cruel ter sido.
Doer-te-á teres zombado deste pranto puro,
quando nevar o inverno em teu cabelo escuro.

Trad.: Péricles Eugênio da Silva Ramos
Delia - XXXVIII

When men shall find thy flow’r, thy glory pass,
And thou with careful brow sitting alone,
Received had’st this message from thy glass,
That tells the truth, and says that all is gone;
Fresh shalt thou see in me the wounds thou mad’st;
Though spent thy flame, in me the heat remaining;
I that have lov’d thee thus before thou fad’st,
My faith shall wax, when thou art in thy waning.
The world shall find this miracle in me,
That fire can burn when all the matter’s spent;
Then what my faith hath been, thyself shall see;
And that thou wast unkind, thou may’st repent.
Thou may’st repent that thou hast scorn’d my tears,
When winter snows upon thy sable hairs.

Miquel Martí i Pol – Tua Solidão

Enquanto puderes, não desperdices
tua solidão, dedicando-a a uma absurda
busca do nada, nem te persigas
obsessivamente por escuros corredores.
Assustado pela luz dos preceitos.
Sai sob o sol pleno e observa
as coisas difíceis.
Considera que o jogo desmedido das palavras
não te servirá de nada se não te apoiares
naquilo que te rodeia. Há as pedras
e as árvores e as pessoas e tantas coisas
que podes tocar com as mãos!
Que não te apercebas
um dia, com sobressalto, que os anos estão passando
e moves-te apenas em torno de tua sombra.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO com ligeiras alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 22/07/2023

Tu soledad

En cuanto puedas, no malgastes
Tu soledad, dedicándola a una absurda
búsqueda de nada, ni te persigas
obsesivamente por pasadizos oscuros.
Asustado por la luz de los preceptos.
Sal a pleno sol y fíjate
en cosas duras.
Piensa que el juego desmedido de las palabras
no te servirá de nada si no te apoyas
en aquello que te rodea. Están las piedras
y los árboles y la gente y tantas cosas
que puedes tocar con las manos!
Que no te des cuenta
algún día, con sobresalto, que los años te van pasando
y te mueves sólo alrededor de tu sombra.

La teva solitud

En tant que puguis, no malbaratis
La teva solitud, dedicant-la a una absurda
recerca de no-res, ni et persegueixis
tossudament per corredors obscurs,
esporuguit per la llum dels preceptes.
Surt a ple sol i fixa’t
en coses dures. Pensa
que el joc desmesurat de les paraules
no et servirà de res si no el recolzes
damunt d’allò que et volta. Hi ha les pedres
i els arbres i la gent i tantes coses
que pots tocar amb les mans! Que no t’adonis
algun dia, amb espant, que els anys et passen
i et mous només entorn de la teva ombra.

Aqui: http://comandodharma.blogspot.com.br/2010/09/la-teva-solitud-miquel-marti-i-pol.html

Edith Södergran – Nada

Fique tranquilo, meu filho, não há nada,
e tudo é como parece: a floresta, a fumaça
e os trilhos que desaparecem.
Em algum lugar afastado, em países distantes,
existe um céu mais azul e uma parede coberta de rosas
ou uma palmeira e um vento suave —
e isso é tudo.
Não há nada além de neve no ramo do pinheiro.
Não há nada que possamos beijar para aquecer nossos lábios,
e todos os lábios ficarão frios com o tempo.
Mas o que você está dizendo, meu filho? Que seu coração é forte,
e viver em vão é pior do que morrer?
O que você queria da morte? Você sente o nojo que
suas roupas espalham e que
nada é mais repulsivo do que morrer pelas próprias mãos?
Na vida devemos amar as longas horas de enfermidade
e os limitados anos de saudade
assim como os breves momentos em que o deserto floresce.

Trad.: Nelson Santander (a partir de tradução do sueco para o inglês por Malena Mörling e Jonas Ellerström)

Nothing

Be calm, my child, there’s nothing,
and everything is as it appears: the forest, the smoke
and the vanishing rails.
Somewhere far off in distant countries
there’s a bluer sky and a wall with roses
or a palm tree and a tepid wind—
and that’s all.
There’s nothing besides the snow on the branch of the pine tree.
There’s nothing to kiss with warm lips,
and all lips will grow cool with time.
But you’re saying, my child, that your heart is strong,
and to live without meaning is worse than dying.
What do you want from death? Do you feel the disgust
his clothes are spreading
and nothing is more repulsive than death by your own hand.
We should love life’s long hours of illness
and confined years of longing
as much as the brief moments the desert blooms.

Joan Margarit – Quando se perde o sinal

À noite, em um pequeno aeroporto,
vês um avião decolando.
O sinal vai se perdendo.
Sem nenhuma piedade por quem tens sido,
pois a piedade é demasiado efêmera e
não há tempo para edificar nada sobre ela,
sentes-te convencido de que vives,
embora sem esperanças, uns anos
que são os mais felizes de tua vida.
Há uma outra poesia, haverá sempre,
como há outra música. A de Beethoven surdo.
Quando se perde o sinal.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO com ligeiras alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 20/07/2023

Joan Margarit – Se pierde la señal

De noche, en un pequeño aeropuerto,
ves un avión que va elevándose.
Se va perdiendo la señal.
Sin ninguna piedad por lo que has sido,
pues la piedad es demasiado efímera
no hay tiempo a construir nada sobre ella ,
te sientes convencido de vivir,
aunque sin esperanzas, unos años
que son los más felices de tu vida.
Hay otra poesía, la habrá siempre,
como hay otra música. La de Beethoven sordo.
Cuando se pierde la señal.

Thomas Lux – “Ti amo Coração”

Um homem arriscou sua vida para escrever essas palavras.
Um homem pendurado de cabeça para baixo (um amigo idiota
segurando-o pelas pernas?) com tinta spray
escreveu tais palavras em uma viga quinze metros acima
de uma rodovia. E sua amada,
na manhã seguinte, a caminho do trabalho…?
Suas palavras não são (eram pra ser) tão originais.
Ela terá reconhecido a caligrafia dele?
Teria ele sugerido algo à sua porta, na noite anterior,
sobre “algo especial, meu bem, amanhã”?
E ele ligou no trabalho dela esperando
que ela ficasse emocionada
com sua homenagem, sua paixão, seu risco?
Agora ela saberá que a amo,
mundo saberá do meu amor por ela!
Um homem arriscou sua vida para escrever as palavras.
O amor é assim, no âmago, espera-se, o amor
é assim, Coração, todo tolo e doloroso
e perigoso, inflamado, abençoado – sempre,
sempre, sem exceções,
sempre em assuntos ardentes como este: abençoado.

Trad.: Nelson Santander

“I Love You Sweatheart”

A man risked his life to write the words.
A man hung upside down (an idiot friend
holding his legs?) with spray paint
to write the words on a girder fifty feet above
a highway. And his beloved,
the next morning driving to work…?
His words are not (meant to be) so unique.
Does she recognize his handwriting?
Did he hint to her at her doorstep the night before
of “something special, darling, tomorrow”?
And did he call her at work
expecting her to faint with delight
at his celebration of her, his passion, his risk?
She will know I love her now,
the world will know my love for her!
A man risked his life to write the words.
Love is like this at the bone, we hope, love
is like this, Sweetheart, all sore and dumb
and dangerous, ignited, blessed – always,
regardless, no exceptions,
always in blazing matters like these: blessed.

Nuno Júdice – Fotografia

Naquilo a que o jornal chama um nu sulfuroso de
atget (1925) a mulher está de gatas em cima da cama,
e olha para trás, de esguelha, como se quisesse
mostrar-se ao fotógrafo, por um lado, e esconder-se
de nós, por outro. Mas quando a olhamos, adivinha-se
um sorriso que, não se sabe porquê, se esbate com
essa espécie de névoa com que o tempo envolve
as fotografias antigas, a sépia, em que não é
possível disfarçar a certeza que temos de que aquela
mulher, hoje, não passa de cinza nalgum canto
de cemitério de província. Porém, a sua nudez
desafia a morte; e quase que lhe podíamos pedir
que esqueça o fotógrafo, e regresse à realidade
onde ele a foi descobrir, para que a sua vida
retome o curso habitual, e não nos perturbe com
esse sentimento de que a vida é breve, e já foi.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 16/07/2023

Thom Gunn – O atiçador

Quarenta e oito anos atrás —
Já se passaram mesmo quarenta e oito anos
Desde então?— eles forçaram a porta
Que ela havia barricado
Com o peso de uma escrivaninha inteira
Para que ninguém descobrisse, como eles descobriram,
o que ela havia bloqueado.

Ela havia bloqueado a porta
Para manter as crianças do lado de fora.
Em seu roupão vermelho,
Ela fizera anotações, ocupada a noite toda
Empurrando os móveis,
Pensando até ficar atordoada,
Antes de se deitar.

As crianças ficaram indo e vindo
No duro gramado invernal
O irmão mais velho e o mais novo,
Repetindo, um para o outro,
Seus lamentos – um fardo –
Na madrugada de dezembro,
Até entenderem o que aquilo queria dizer.

E eles sabiam tudo o que havia para saber.
Voltando do gramado para
O quarto em que ela se libertara,
Eles, que tinham sido seus tesouros,
Souberam desligar o gás,
Adotar as providências cabíveis,
Telefonar para a polícia.

Uma imagem do fluxo
Mantém-se na mente obstinada:
Uma espécie de flauta invertida.
O atiçador que ela segurava
Soprava nos buracos alinhados
Em sua boca até que, preenchida
Por sua música, ela emudeceu.

Sobre o poema:

“Gunn falou de modo revelador sobre ‘O atiçador a gás’ em entrevista ao crítico James Campbell, que lhe perguntou: ‘Seu novo livro, ‘Boss Cupid’, contém alguns novos poemas sobre sua mãe. É a primeira vez que escreve sobre ela?’ Gunn mencionou ‘My Mother’s Pride’ e continuou: ‘O segundo poema sobre minha mãe se chama ‘O atiçador a gás’. Ela se matou, e meu irmão e eu encontramos o corpo, o que não foi culpa dela porque ela até trancou as portas… Obviamente, esta foi uma experiência bastante traumática; o seria na vida de qualquer pessoa. Eu não fui capaz de escrever sobre isso até poucos anos atrás. Por fim, descobri que a maneira de fazer isso era realmente óbvia: remover a primeira pessoa e escrever sobre isso na terceira pessoa. Aí ficou fácil, porque não era mais sobre mim. Não gosto de dramatizar a mim mesmo.” – in HIRSCH, Edward: 100 Poems to Break Your Heart, Boston-New York, Houghton Mifflin Harcourt, 2021, p. 291

Trad.: Nelson Santander

The Gas-Poker

Forty-eight years ago—
Can it be forty-eight
Since then?—they forced the door
Which she had barricaded
With a full bureau’s weight
Lest anyone find, as they did,
What she had blocked it for.

She had blocked the doorway so,
To keep the children out.
In her red dressing-gown
She wrote notes, all night busy
Pushing the things about,
Thinking till she was dizzy,
Before she had lain down.

The children went to and fro
On the harsh winter lawn
Repeating their lament,
A burden, to each other
In the December dawn,
Elder and younger brother,
Till they knew what it meant.

Knew all there was to know.
Coming back off the grass
To the room of her release,
They who had been her treasures
Knew to turn off the gas,
Take the appropriate measures,
Telephone the police.

One image from the flow
Sticks in the stubborn mind:
A sort of backwards flute.
The poker that she held up
Breathed from the holes aligned
Into her mouth till, filled up
By its music, she was mute.