Carlos Drummond de Andrade – A Mesa

E não gostavas de festa. . .
Ó velho, que festa grande
hoje te faria a gente.
E teus filhos que não bebem
e o que gosta de beber,
em torno da mesa larga,
largavam as tristes dietas,
esqueciam seus fricotes,
e tudo era farra honesta
acabando em confidência.
Ai, velho, ouvirias coisas
de arrepiar teus noventa.
E daí, não te assustávamos,
porque, com riso na boca,
e a nédia galinha, o vinho
português de boa pinta,
e mais o que alguém faria
de mil coisas naturais
e fartamente poria
em mil terrinas da China,
já logo te insinuávamos
que era tudo brincadeira.
Pois sim. Teu olho cansado,
mas afeito a ler no campo
uma lonjura de léguas,
e na lonjura uma rês
perdida no azul azul,
entrava-nos alma adentro
e via essa lama podre
e com pesar nos fitava
e com ira amaldiçoava
e com doçura perdoava
(perdoar é rito de pais,
quando não seja de amantes).
E, pois, tudo nos perdoando,
por dentro te regalavas
de ter filhos assim. . . Puxa,
grandessíssimos safados,
me saíram bem melhor
que as encomendas. De resto,
filho de peixe. . . Calavas,
com agudo sobrecenho
interrogavas em ti
uma lembrança saudosa
e não de todo remota
e rindo por dentro e vendo
que lançaras uma ponte
dos passos loucos do avô
à incontinência dos netos,
sabendo que toda carne
aspira à degradação,
mas numa via de fogo
e sob um arco sexual,
tossias. Hem, hem, meninos,
não sejam bobos. Meninos?
Uns marmanjos cinqüentões,
calvos, vividos, usados,
mas resguardando no peito
essa alvura de garoto,
essa fuga para o mato,
essa gula defendida
e o desejo muito simples
de pedir à mãe que cosa,
mais do que nossa camisa,
nossa alma frouxa, rasgada. . .
Ai, grande jantar mineiro
que seria esse. . . Comíamos,
e comer abria fome,
e comida era pretexto.
E nem mesmo precisávamos
ter apetite, que as coisas
deixavam-se espostejar,
e amanhã é que eram elas.
Nunca desdenhe o tutu.
Vá lá mais um torresminho.
E quanto ao peru? Farofa
há de ser acompanhada
de uma boa cachacinha,
não desfazendo em cerveja,
essa grande camarada.
ind’outro dia. . . Comer
guarda tamanha importância
que só o prato revele
o melhor, o mais humano
dos seres em sua treva?
Beber é pois tão sagrado
que só bebido meu mano
me desata seu queixume,
abrindo-me sua palma?
Sorver, papar: que comida
mais cheirosa, mais profunda
no seu tronco luso-árabe,
que a todos nos une em um
tal centímano glutão,
parlapatão e bonzão!
E nem falta a irmã que foi
mais cedo que os outros e era
rosa de nome e nascera
em dia tal como o de hoje
para enfeitar tua data.
Seu nome sabe a camélia,
e sendo uma rosa-amélia,
flor muito mais delicada
que qualquer das rosas-rosa,
viveu bem mais do que o nome,
porém no íntimo claustrava
a rosa esparsa. A teu lado,
vê: recobrou-se-lhe o viço.
Aqui sentou-se o mais velho.
Tipo do manso, do sonso,
não servia para padre,
amava casos bandalhos;
depois o tempo fez dele
o que faz de qualquer um;
e à medida que envelhece,
vai estranhamente sendo
retrato teu sem ser tu,
de sorte que se o diviso
de repente, sem anúncio,
és tu que me reapareces
noutro velho de sessenta.
Este outro aqui é doutor,
o bacharel da família,
mas suas letras mais doutas
são as escritas no sangue,
ou sobre a casca das árvores.
Sabe o nome da florzinha
e não esquece o da fruta
mais rara que se prepara
num casamento genético,
Mora nele a nostalgia,
citadino, do ar agreste,
e, camponês, do letrado.
Então vira patriarca.
Mais adiante vês aquele
que de ti herdou a, dura
vontade, o duro estoicismo.
Mas, não quis te repetir.
Achou não valer a pena
reproduzir sobre a terra
o que a terra engolirá.
Amou. E ama. E amará.
Só não quer que seu amor
seja uma prisão de dois,
um contrato, entre bocejos
e quatro pés de chinelo.
Feroz a um breve contato,
à segunda vista, seco,
à terceira vista, lhano,
dir-se-ia que ele tem medo
de ser, fatalmente, humano.
Dir-se-ia que ele tem raiva,
mas que mel transcende a raiva,
e que sábios, ardilosos
recursos de se enganar
quanto a si mesmo: exercita
uma força que não sabe
chamar-se, apenas, bondade.
Esta calou-se. Não quis
manter com palavras novas
o colóquio subterrâneo
que num sussurro percorre
a gente mais desatada.
Calou-se, não te aborreças,
Se tanto assim a querias,
algo nela ainda te quer,
à maneira atravessada
que é própria de nosso jeito.
(Não ser feliz tudo explica.)
Bem sei como são penosos
esses lances de família,
e discutir neste instante
seria matar a festa,
matando-te — não se morre
uma só vez, nem de vez.
Restam sempre muitas vidas
para serem consumidas
na razão dos desencontros
de nosso sangue nos corpos
por onde vai dividido.
Ficam sempre muitas mortes
para serem longamente
reencarnadas noutro morto.
Mas estamos todos vivos.
E mais que vivos, alegres.
Estamos todos como éramos
antes de ser, e ninguém
dirá que ficou faltando
algum dos teus. Por exemplo:
ali ao canto da mesa,
não por humilde, talvez
por ser o rei dos vaidosos
e se pelar por incômodas
posições de tipo gauche,
ali me vês tu. Que tal?
Fica tranquilo: trabalho.
Afinal, a boa vida
ficou apenas: a vida
(e nem era assim tão boa
e nem se fez muito má).
Pois ele sou eu. Repara:
tenho todos os defeitos
que não farejei em ti
e nem os tenho que tinhas,
quanto mais as qualidades.
Não importa: sou teu filho
com ser uma negativa
maneira de te afirmar.
Lá que brigamos, brigamos,
opa! que não foi brinquedo,
mas os caminhos do amor,
só amor sabe trilhá-los.
Tão ralo prazer te dei,
nenhum, talvez. . . ou senão,
esperança de prazer,
é, pode ser que te desse
a neutra satisfação
de alguém sentir que seu filho,
de tão inútil, seria
sequer um sujeito ruim.
Não sou um sujeito ruim.
Descansa, se o suspeitavas,
mas não sou lá essas coisas.
Alguns afetos recortam
o meu coração chateado.
Se me chateio? demais.
Esse é meu mal. Não herdei
de ti essa balda. Bem,
não me olhes tão longo tempo,
que há muitos a ver ainda.
Há oito. E todos minúsculos,
todos frustrados. Que flora
mais triste fomos achar
para ornamento de mesa!
Qual nada. De tão remotos,
de tão puros e esquecidos
no chão que suga e transforma,
são anjos. Que luminosos!
que raios de amor radiam,
e em meio a vagos cristais,
o cristal deles retine,
reverbera a própria sombra.
São anjos que se dignaram
participar do banquete,
alisar o tamborete,
viver vida de menino.
São anjos. E mal sabias
que um mortal devolve a Deus
algo de sua divina
substância aérea e sensível,
se tem um filho e se o perde.
Conta: quatorze na mesa.
Ou trinta? serão cinquenta,
que sei? se chegam mais outros,
uma carne cada dia
multiplicada, cruzada
a outras carnes de amor.
São cinquenta pecadores,
se pecado é ter nascido
e provar, entre pecados,
os que nos foram legados.
A procissão de teus netos,
alongando-se em bisnetos,
veio pedir tua bênção
e comer de teu jantar.
Repara um pouquinho nesta,
no queixo, no olhar, no gesto,
e na consciência profunda
e na graça menineira,
e dize, depois de tudo,
se não é, entre meus erros,
uma imprevista verdade.
Esta é minha explicação,
meu verso melhor ou único,
meu tudo enchendo meu nada.
Agora a mesa repleta
está maior do que a casa.
Falamos de boca cheia,
xingamo-nos mutuamente,
rimos, ai, de arrebentar,
esquecemos o respeito
terrível, inibidor,
e toda a alegria nossa,
ressecada em tantos negros
bródios comemorativos
(não convém lembrar agora),
os gestos acumulados
de efusão fraterna, atados
(não convém lembrar agora),
as fína-e-meigas palavras
que ditas naquele tempo ,
teriam mudado a vida
(não convém mudar agora),
vem tudo à mesa e se espalha
qual inédita vitualha.
Oh que ceia mais celeste
e que gozo mais do chão!
Quem preparou? que inconteste
vocação de sacrifício
pôs a mesa, teve os filhos?
quem se apagou? quem pagou
a pena deste trabalho?
Quem foi a mão invisível
que traçou este arabesco
de flor em torno ao pudim,
como se traça uma auréola?
quem tem auréola? quem não
a tem, pois que, sendo de ouro,
cuida logo em reparti-la,
e se pensa melhor faz?
quem senta do lado esquerdo,
assim curvada? que branca,
mas que branca mais que branca
tarja de cabelos brancos
retira a cor das laranjas,
anula o pó do café,
cassa o brilho aos serafins?
quem é toda luz e é branca?
Decerto não pressentias
como o branco pode ser
uma tinta mais diversa
da mesma brancura. . . Alvura
elaborada na ausência
de ti, mas ficou perfeita.
concreta, fria, lunar.
Como pode nossa festa
ser de um só que não de dois?
Os dois ora estais reunidos
numa aliança bem maior
que o simples elo da terra.
Estais juntos nesta mesa
de madeira mais de lei
que qualquer lei da república.
Estais acima de nós,
acima deste jantar
para o qual vos convocamos
por muito — enfim — vos querermos
e, amando, nos iludirmos
junto da mesa
vazia.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 14/08/2016

Jo Shapcott – Observadora de estrelas

Se eu não estou olhando para você,
me perdoe; se pareço
estar esqudrinhando o céu,
cabeça jogada para trás, curiosa,
extática, reservada, andando
aleatoriamente no chão
à sua frente, meu público,
me perdoe, e esqueça o que está
acontecendo em minhas células.
É em você que estou pensando
e, voz lançada para o alto,
é com você que estou falando, você.

Estou tentando manter tudo simples
no tempo que me resta:
felizmente, é uma lenta
e seletiva degeneração.
Espero, principalmente, permanecer atual
e verdadeira, apesar do
impulso indevido que se me apoderou
de dizer tudo,
de uma só vez, para todos, que é
o que eu gostaria de fazer se ao menos
pudesse permanecer além deste momento.

Trad.: Nelson Santander

Stargazer

If I’m not looking at you,
forgive; if I appear
to be scanning the sky,
head thrown back, curious,
ecstatic, shy, strolling
unevenly across the floor
in front of you, my audience,
forgive, and forget what’s
happening in my cells.
It’s you I’m thinking of
and, voice thrown upwards,
to you I’m speaking, you.

I’m trying to keep this simple
in the time left to me:
luckily, it’s a slow
and selective degeneration.
I’m hoping, mainly, to stay present
and straight up despite
the wrong urge that’s taken hold,
to say everything, all
at once, to everyone, which
is what I’d like if only
I could stay beyond this moment.

Robinson Jeffers – Cremação

​Isto quase anula meu medo de morrer, meu amor falou,
Quando eu penso em cremação. Apodrecer na terra
É um fim abominável, mas arder em chamas — além disso, estou habituada,
Eu ardi com amor ou fúria tanto em minha vida,
Não à toa meu corpo está cansado, não à toa está morrendo.
Nós fomos felizes com meu corpo. Espalhe as cinzas.

Trad.: André Caramuru

REPUBLICAÇÃO: poema publicado originalmente no blog em 07/08/2016

Cremation

It nearly cancels my fear of death, my dearest said,
When I think of cremation.  To rot in the earth
Is a loathsome end, but to roar up in flame – besides, I
 am used to it,
I have flamed with love or fury so often in my life,
No wonder my body is tired, no wonder it is dying.
We had a great joy of my body.  Scatter the ashes.

Geoffrey A. Landis – Ondulações no mar de Dirac

Trabalho vencedor do Prêmio Nebula de melhor conto de Ficção Científica de 1989.

Cynthia Huntington – O arrebatamento

Lembro-me de estar na cozinha, misturando ossos para a sopa,
e de que, naquele momento, me tornei outra pessoa.

Era uma noite de início de primavera, o ar da Califórnia estava ameno.
Lá fora, o eucalipto se curvava compulsivamente

sobre o trailer do vizinho, estacionado na entrada da garagem.
A rua estava tranquila, pra variar, e todas as janelas estavam abertas.

Então, meu braço direito formigou, uma palpitação começou sob a pele.
Um fogo desceu pelo nervo da minha perna; meu couro cabeludo explodiu

em pontadas de luz. Eu tremia e sentia vontade de rir;
era emocionante como um terremoto. Uma cidade em chamas

após um terremoto. Então eu tremi e minhas pernas estremeceram,
todos os músculos aprisionados, então eu caí e deitei de lado,

um parafuso cravado em meu crânio, em minha espinha. Minhas pernas
nadavam contra o linóleo, e olhei para a parte de baixo

do fogão, os lugares sujos onde a esponja não alcançava.
Tudo desmoronou ali, em um só lugar, num piscar de olhos.

Ali no meu corpo. Na cozinha, às seis da tarde, abril.
Uma colher de pau presa em minha mão, o cheiro de caldo de galinha.

E naquele momento, eu soube de tudo o que viria depois:
a visão estava completa quando se apoderou de mim. Sem diagnóstico,

sem histórico, eu soube que minha vida havia mudado.
Eu parecia ter-me tornado inteiramente eu mesma naquele instante.

Não foram os testes, exames em laboratórios de especialistas, nem
os procedimentos laboratoriais: IRM, punção lombar, eletrodos

colados em meu couro cabeludo, a agulha raspada na sola do meu pé,
seguir um dedo com os olhos, EEG, PET-scan, mielograma.

Nem as quedas, a cegueira ou os tremores, os tropeços
e o sibilar no sangue, nem o deitar na cama à tarde.

Não o fenobarbitol, amitriptileno, prednisona, amantadine, ACTH,
cortisona, citoxano, copolímero, baclofeno, tegretol, mas isto:

Às seis horas da tarde, em abril, mexendo ossos para a sopa.
Um evento cujo conhecimento chegou por inteiro, cujo significado levou anos

para abrir-se, para parecer um destino. Durou trinta segundos, não mais.
Então meus músculos se soltaram, a onda e o tremor abandonaram meu corpo

e eu fiquei imóvel sob o alto teto branco. Depois eu me pus de pé
e fiquei ali, parada, quieta, sozinha, começando a ter medo.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: o presente poema, no qual a autora – valendo-se da metáfora do arrebatamento (um dos dogmas do cristianismo evangélico) – narra a primeira vez em que foi súbita e drasticamente atingida pela Esclerose Múltipla, venceu o Prêmio Levis de poesia em 2001.

The Rapture

I remember standing in the kitchen, stirring bones for soup,
and in that moment, I became another person.

It was an early spring evening, the air California mild.
Outside, the eucalyptus was bowing compulsively

over the neighbor’s motor home parked in the driveway.
The street was quiet for once, and all the windows were open.

Then my right arm tingled, a flutter started under the skin.
Fire charged down the nerve of my leg; my scalp exploded

in pricks of light. I shuddered and felt like laughing;
it was exhilarating as an earthquake. A city on fire

after an earthquake. Then I trembled and my legs shook,
and every muscle gripped so I fell and lay on my side,

a bolt driven down my skull into my spine. My legs were
swimming against the linoleum, and I looked up at the underside

of the stove, the dirty places where the sponge didn’t reach.
Everything collapsed there in one place, one flash of time.

There in my body. In the kitchen at six in the evening, April.
A wooden spoon clutched in my hand, the smell of chicken broth.

And in that moment I knew everything that would come after:
the vision was complete as it seized me. Without diagnosis,

without history, I knew that my life was changed.
I seemed to have become entirely myself in that instant.

Not the tests, examinations in specialists’ offices, not
the laboratory procedures: MRI, lumbar puncture, electrodes

pasted to my scalp, the needle scraped along the sole of my foot,
following one finger with the eyes, EEG, CAT scan, myelogram.

Not the falling down or the blindness and tremors, the stumble
and hiss in the blood, not the lying in bed in the afternoons.

Not phenobarbitol, amitriptylene, prednisone, amantadine, ACTH,
cortisone, cytoxan, copolymer, baclofen, tegretol, but this:

Six o’clock in the evening in April, stirring bones for soup.
An event whose knowledge arrived whole, its meaning taking years

to open, to seem a destiny. It lasted thirty seconds, no more.
Then my muscles unlocked, the surge and shaking left my body

and I lay still beneath the white high ceiling. Then I got up
and stood there, quiet, alone, just beginning to be afraid.

Jaime Gil de Biedma – Lembre-se

Bela vida que se foi e parece
já não passar
       Desde então, afundo
em sonhos na memória: estremece
eterno o tempo lá no fundo.
E de repente um redemoinho cresce
e me arrasta sugado rumo a um profundo
abismo, para onde vai, despenhado,
para sempre submergindo o passado.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 25/04/2018

Jaime Gil Biedma – Recuerda

Hermosa vida que pasó y parece
ya no pasar...
       Desde este instante, ahondo
sueños en la memoria: se estremece
la eternidad del tiempo allá en el fondo.
Y de repente un remolino crece
que me arrastra sorbido hacia un trasfondo
de sima, donde va, precipitado,
para siempre sumiéndose el pasado.

Nelson Ascher – Visita ao asilo

Subsistem devagar no
jardim da última infância
sorvendo desdentados
de vida (além de dentes)

o caldo-de-galinha
hospitalar dos dias.
Opacas as retinas
e os tímpanos à prova

de som, eles combinam
remorsos de placenta
densos de urina e restos
mortais que, amortalhados

folgadamente em pelo
acima do seu número,
apegam-se obsessivos
aos ossos descalci-

ficados como, à ideia
de podre, os urubus.
Sinapse piedosa
que, entre neurônios secos,

censura todo estímulo,
seu íntimo se ocupa
despreocupadamente
de trâmites de térmita.

Jaime Gil de Biedma – Não Voltarei a ser Jovem

Que é certo a vida passa
só se começa a compreender mais tarde
— como todos os jovens, decidi
levar a minha vida por diante.

Deixar marca eu queria
e partir entre aplausos
— envelhecer, morrer, eram somente
as dimensões do teatro.

Porém, passou o tempo
e a verdade mais amarga assoma:
envelhecer, morrer,
é o argumento único da obra.

Trad.: José Bento

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 13/07/2016

No volveré a ser joven

Que la vida iba en serio
uno lo empieza a comprender más tarde
— como todos los jóvenes, yo vine
a llevarme la vida por delante.

Dejar huella quería
y marcharme entre aplausos
envejecer, morir, eran tan sólo
las dimensiones del teatro.

Pero ha pasado el tiempo
y la verdad desagradable asoma:
envejecer, morir,
es el único argumento de la obra.

Henry Wadsworth Longfellow – Casas assombradas

Todas as casas onde homens viveram e morreram
   São casas mal-assombradas. Pelo aberto portão
As inofensivas almas, em suas tarefas, pairam,
   Com pés que quase nenhum ruído produzem no chão.

Nós as encontramos na escadaria, no corredor,
   Pelas passagens através das quais elas vêm e vão,
impalpável impressão no ar ao nosso derredor,
   Sensação de algo em intensa movimentação.

Há mais convivas na mesa do que os anfitriões
   Chamaram; encontra-se a entrada resplandescente
Apinhada de mansas e inermes aparições,
   Tão silenciosas quanto aqueles quadros na parede.

O estranho na minha lareira não consegue ver
   As formas que eu enxergo, nem ouvir os sons que eu escuto;
Ele apenas os percebe; enquanto que para o meu ser
   Tudo quanto tem sido é visível e impoluto.

Não temos títulos de posse de terras e moradas;
   Proprietários e posseiros de esquecidos jazigos
De eras passadas estiram suas mãos empoeiradas,
   E mantém inalienáveis seus domínios antigos.

O mundo espiritual que circunda o dos sentidos
   Flutua como a atmosfera, e por todo lado
Exala por essas brumas terrestres e densos fluidos
   Um bafejo substancial do ar mais elevado.

Nossas pequenas vidas são mantidas em harmonia
   Por contraditórias atrações e expectativas
A batalha entre a inclinação que se delicia,
   E a mais nobre inclinação, a que objetiva.

Essas perturbações, este perpétuo recipiente
   De elevados desejos e de aspirações mundanas,
Originam-se de uma estrela invisível influente,
   Um ignoto planeta que acima do nosso céu plana.

E enquanto o luar projeta de um portal pardacento
   De nuvem sobre o mar uma ponte de luz flutuante,
Em cujo instável passadiço nossos pensamentos
   Aglomeram-se no reino do mistério e da noite, –

Assim também daquele mundo dos espíritos desce
   Uma passarela de luz, que o conecta ao nosso,
Sobre cujo movente piso, que oscila e se torce,
   Vagueiam nossos pensamentos sobre o escuro fosso.

Trad.: Nelson Santander

Haunted Houses

All houses wherein men have lived and died
  Are haunted houses.  Through the open doors
The harmless phantoms on their errands glide,
  With feet that make no sound upon the floors. 

We meet them at the doorway, on the stair,
  Along the passages they come and go,
Impalpable impressions on the air,
  A sense of something moving to and fro. 

There are more guests at table, than the hosts
  Invited; the illuminated hall
Is thronged with quiet, inoffensive ghosts,
  As silent as the pictures on the wall. 

The stranger at my fireside cannot see
  The forms I see, nor hear the sounds I hear;
He but perceives what is; while unto me
  All that has been is visible and clear. 

We have no title-deeds to house or lands;
  Owners and occupants of earlier dates
From graves forgotten stretch their dusty hands,
  And hold in mortmain still their old estates. 

The spirit-world around this world of sense
  Floats like an atmosphere, and everywhere
Wafts through these earthly mists and vapors dense
  A vital breath of more ethereal air. 

Our little lives are kept in equipoise
  By opposite attractions and desires;
The struggle of the instinct that enjoys,
  And the more noble instinct that aspires. 

These perturbations, this perpetual jar
  Of earthly wants and aspirations high,
Come from the influence of an unseen star,
  An undiscovered planet in our sky. 

And as the moon from some dark gate of cloud
  Throws o’er the sea a floating bridge of light,
Across whose trembling planks our fancies crowd
  Into the realm of mystery and night,– 

So from the world of spirits there descends
  A bridge of light, connecting it with this,
O’er whose unsteady floor, that sways and bends,
  Wander our thoughts above the dark abyss.

Cassiano Ricardo – O Espelho

Um meio-dia nu, numa enorme moldura
de prata.
Parece mais o escudo de um arcanjo de fogo.
Mas não é nada. É apenas um espelho.
Um rico espelho. De extraordinário fulgor.
Próprio pra ser colocado à parede
de um ministério da Fazenda, ou de uma casa
de jogo.

Toda a cidade cabe dentro dele.
Árvores, automóveis, povo, casas de comércio
e vendedores de jornais, principalmente.
Enfim, todo o vaivém instantâneo da rua
salpicado aqui e ali pelo sol matutino.
Resultado de tudo, ele é uma coisa viva,
de gestos súbitos e esplendor repentino.

Quatro operários o conduzem pela rua.
E há uma outra rua nele, ainda mais coletiva,
é a rua oposta, extremamente nítida,
por onde vêm nossos melhores camaradas,
os nós mesmos,
ao nosso encontro, fáceis, momentâneos.

São os nossos irmãos, nascidos de repente
e em grande número.
Imagens conduzindo os nossos rostos,
ao nosso encontro, fáceis, simultâneos.
Enquanto os quatro operários conduzem o espelho
de rua em rua.

Mas não é nada. É apenas um espelho,
terrivelmente nu, que ora é azul no reflexo,
ora vermelho. É, apenas, um espelho.

Afinal, que é um espelho? um mágico de circo
casado com uma grande mulher nua
que é a vida, que é a verdade nua e crua.

Ó loucos, que levais o espelho pela rua,
quem vos encomendou tão estranho transporte?

Quando não haja nada num espelho,
há todas as hipóteses de nudez proibida
que sempre acodem à imaginação do povo.
Há uma população mágica e instantânea que mora,
toda, em sua superfície álgida.

Quando não haja nada num espelho,
há mesas verdes onde os números da fortuna
dançam.
Há duas mãos nervosas segurando um baralho
até clarear o dia.

Há o tresnoitado que, depois de haver perdido tudo,
se mira no cristal e aí se vê tragicamente,
peito engomado e colarinho duro,
mas nu, completamente nu, por dentro.

Há muito rosto, para quem – a uma certa hora –
olhar no espelho é um convite ao suicídio.

Quando não haja nada, nada, num espelho,
há ainda a hipótese
de que ele possa incendiar uma esquadra.

Quando não haja nada, absolutamente nada,
no abismo límpido de um espelho
há a pior nudez, a nudez feérica do Nada!

E o seu reflexo é tão súbito
que fere como ponta de aço os olhos inocentes
das crianças reunidas na calçada
só para o ver passar enormemente oblongo
e rútilo.

Ó loucos, escondei esse esplendor terrífico
pra que as ruas não mais se olhem no espelho
e o povo não se verifique.

Escondei-o até que a noite desça
pois as estrelas serão mais suaves e mansas…

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 03/07/2016