Konstantinos Kaváfis – Ítaca (em três traduções)

ÍTACA
(Trad. José Paulo Paes)

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrarás
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

ÍTACA 
(Trad. Haroldo de Campos)

Quando, de volta, viajares para Ítaca
roga que tua rota seja longa,
repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.
Aos Lestrigões, aos Cíclopes,
ao colério Posêidon, não temas:
tais prodígios jamais encontrará em teu roteiro,
se mantiveres altivo o pensamento e seleta
a emoção que tocar teu alento e teu corpo.
Nem Lestrigões nem Cíclopes,
nem o áspero Posêidon encontrarás,
se não os tiveres imbuído em teu espírito,
se teu espírito não os sucitar diante de si.
Roga que sua rota seja longa,
que, mútiplas se sucedam as manhãs de verão.
Com que euforia, com que júbilo extremo
entrarás, pela primeira vez num porto ignoto!
Faze escala nos empórios fenícios
para arrematar mercadorias belas;
madrepérolas e corais, âmbares e ébanos
e voluptosas essências aromáticas, várias,
tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes achar.
Detém-te nas cidades do Egito -nas muitas cidades-
para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos.
Todo tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.
Tua sina te assina esse destino,
mas não busques apressar sua viagem.
É bom que ela tenha uma crônica longa duradoura,
que aportes velho, finalmente à ilha,
rico do muito que ganhares no decurso do caminho,
sem esperares de Ítaca riquezas.
Ítaca te deu essa beleza de viagem.
Sem ela não a terias empreendido.
Nada mais precisa dar-te.
Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.

ÍTACA 
(Trad. Ísis Borges da Fonseca)

Quando partires em viagem para Ítaca
faz votos para que seja longo o caminho,
pleno de aventuras, pleno de conhecimentos.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o feroz Poseidon, não os temas,
tais seres em teu caminho jamais encontrarás,
se teu pensamento é elevado, se rara
emoção aflora teu espírito e teu corpo.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o irascível Poseidon, não os encontrarás,
se não os levas em tua alma,
se tua alma não os ergue diante de ti.

Faz votos de que seja longo o caminho.
Que numerosas sejam as manhãs estivais,
nas quais, com que prazer, com que alegria,
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
pára em mercados fenícios
e adquire as belas mercadorias,
nácares e corais, âmbares e ébanos
e perfumes voluptuosos de toda espécie,
e a maior quantidade possível de voluptuosos perfumes;
vai a numerosas cidades egípcias,
aprende, aprende sem cessar dos instruídos.

Guarda sempre Ítaca em teu pensamento.
É teu destino aí chegar.
Mas não apresses absolutamente tua viagem.
É melhor que dure muitos anos
e que, já velho, ancores na ilha,
rico com tudo que ganhaste no caminho,
sem esperar que Ítaca te dê riqueza.
Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem ela não te porias a caminho.
Nada mais tem a dar-te.

Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou.
Sábio assim como te tornaste, com tanta experiência,
já deves ter compreendido o que significam as Ítacas.

REPUBLICAÇÃO. Poema originalmente publicado no blog em 24/02/2016

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Agi Mishol – A mártir

“A noite fica cega, e você tem apenas vinte anos.”
– Nathan Alterman, “Late Afternoon in the Market”

Você tem apenas vinte anos
e sua primeira gravidez é uma bomba.
Sob sua folgada saia você está grávida de dinamite
e fragmentos de metal. É assim que você entra no mercado
tiquetaqueando entre as pessoas, você, Andalleb Takatka.

Alguém soltou os parafusos de sua cabeça
e lançou-lhe em direção à cidade;
embora tenha vindo de Belém,
a Casa do Pão, você escolheu uma padaria.
E ali puxou o pino de segurança para fora de si mesma,
e junto com o pão do Sabbat,
sementes de sésamo e gergelim,
você se atirou em direção ao céu.

Juntamente com Rebecca Fink você voou
com Yelena Konre’ev do Cáucaso
e Nissim Cohen do Afeganistão
e Suhila Houshy do Irã
e dois chineses que você também arrastou
para a morte.

Desde então, outros assunto
têm obscurecido a sua história,
sobre a qual eu falo o tempo todo
sem ter nada a dizer.

Trad.: Nelson Santander

 WOMAN MARTYR

“The evening goes blind, and you are only twenty.”
– Nathan Alterman, “Late Afternoon in the Market”

You are only twenty
and your first pregnancy is a bomb.
Under your broad skirt you are pregnant with dynamite
and metal shavings. This is how you walk in the market,
ticking among the people, you, Andaleeb Takatka.

Someone loosened the screws in your head
and launched you toward the city;
even though you come from Bethlehem,
the Home of Bread, you chose a bakery.
And there you pulled the trigger out of yourself,
and together with the Sabbath loaves,
sesame and poppy seed,
you flung yourself into the sky.

Together with Rebecca Fink you flew up
with Yelena Konre’ev from the Caucasus
and Nissim Cohen from Afghanistan
and Suhila Houshy from Iran
and two Chinese you swept along
to death.

Since then, other matters
have obscured your story,
about which I speak all the time
without having anything to say.

Traduzido do hebraico para o inglês por Lisa Katz

Jane Kenyon – Desmontando a árvore

“Deem-me um pouco de luz!” grita o tio
de Hamlet em meio ao assassinato
de Gonzaga. “Luz! Luz!” choram as cortesãs
em dispersão. Aqui, como na Dinamarca,
é escuro às quatro, e até a lua
brilha apenas com a metade de um coração.

Os enfeites vão para a caixa:
o spaniel prateado – com Meu amor
na coleira – da infância de mamãe
no Illinois; o polichinelo de madeira de balsa
pelo qual meu irmão e eu brigamos,
puxando membro por membro. Mamãe
remendou-o novamente com linha
enquanto eu observava, sentindo-me depravada
aos dez anos de idade.

Com algo mais do que cautela
eu os manuseio, e as luzes, com seus
espelhos refletores em forma de estrela, trazidas
de casa em casa, suas caixas de papelão
de brinquedo cada vez mais frágeis.
Tic, tic, fazem as secas agulhas ao cair.

Na hora do jantar, tudo o que resta é o cheiro
do pinheiro. Se é para termos
escuridão, que seja extravagante.

Trad.: Nelson Santander

Taking Down the Tree

“Give me some light!” cries Hamlet’s
uncle midway through the murder
of Gonzago. “Light! Light!” cry scattering
courtesans. Here, as in Denmark,
it’s dark at four, and even the moon
shines with only half a heart.

The ornaments go down into the box:
the silver spaniel, My Darling
on its collar, from Mother’s childhood
in Illinois; the balsa jumping jack
my brother and I fought over,
pulling limb from limb. Mother
drew it together again with thread
while I watched, feeling depraved
at the age of ten.

With something more than caution
I handle them, and the lights, with their
tin star-shaped reflectors, brought along
from house to house, their pasteboard
toy suitcases increasingly flimsy.
Tick, tick, the desiccated needles drop.

By suppertime all that remains is the scent
of balsam fir. If it’s darkness
we’re having, let it be extravagant.

Samuraitiger19 – Nos minutos finais de sua vida, Calvin teve uma última conversa com Haroldo…

“Calvin? Calvin, querido?”

No escuro, Calvin ouviu a voz de Susie, sua esposa de 53 anos. Calvin se esforçou para abrir os olhos. Deus, ele se sentia tão cansado e foi preciso muita força para conseguir. Lentamente a luz espantou as trevas, e ele enxergou novamente. Aos pés de sua cama estava sua esposa. Calvin molhou os lábios ressequidos e falou com voz rouca: “Você… o… encontrou?”

“Sim, querido”, disse Susie, com tristeza na voz. “Ele estava no sótão.”

Susie enfiou a mão dentro de sua grande bolsa e tirou para fora um velho e macio tigre cor de laranja. Calvin não pôde deixar de rir. Havia sido assim por muito tempo. Muito tempo.

“Eu o lavei para você”, disse Susie, sua voz falhando um pouco enquanto ela colocava o tigre de pelúcia ao lado de seu marido.

“Obrigado, Susie”, disse Calvin.

Por algum tempo, Calvin apenas permaneceu deitado em sua cama de hospital, a cabeça virada para o lado, olhando o velho brinquedo com nostalgia.

“Querida”, Calvin disse finalmente, “Você se importaria em me deixar sozinho com o Haroldo por um tempo? Eu gostaria de conversar com ele.”

“Tudo bem”, disse Susie. “Vou pegar algo para comer no restaurante. Volto daqui a pouco.”

Susie beijou seu marido na testa e virou-se para sair. Com força repentina, mas suavemente, Calvin a deteve. Carinhosamente, ele puxou sua esposa e lhe deu um beijo apaixonado nos lábios. “Eu te amo”, disse Susie.

Susie se virou e saiu. Calvin viu as lágrimas que escorriam em seu rosto enquanto ela passava pela porta.

Calvin então se virou para encarar seu mais antigo e querido amigo. “Oi, Haroldo. Já faz muito tempo, não é, velho amigo?”

Haroldo não era mais um boneco de pelúcia, mas o grande e velho tigre peludo de quem Calvin sempre se lembrava. “Muito tempo, Calvin”, disse Haroldo.

“Você… não mudou nem um pouco.” Calvin sorriu.

“Você mudou bastante”, disse Haroldo com tristeza.

Calvin sorriu. “Mesmo? Eu nem percebi.”

Houve uma longa pausa. O som de um relógio tiquetaqueando os segundos ecoou no estéril quarto de hospital.

“Então… Você se casou com a Susie Derkins”, disse Haroldo, finalmente sorrindo. “Eu sempre soube que você gostava dela.”

“Cale a boca!”, Calvin falou, com um imenso sorriso no rosto.

“Conte tudo o que eu perdi. Eu adoraria saber o que você tem feito!”, Haroldo falou, entusiasmado.

E assim Calvin disse-lhe tudo. Contou como ele e Susie se apaixonaram quando ainda estavam na escola e como haviam se casado logo depois de se formar; sobre seus três filhos e quatro netos; sobre como ele transformou o Astronauta Spiff em um dos mais populares romances de ficção científica da década, e assim por diante. Depois de contar tudo para Haroldo houve novamente uma longa pausa.

“Você sabe… Eu visitei você no sótão um monte de vezes.” Calvin disse.

“Eu sei.”

“Mas eu não conseguia vê-lo. Tudo o que eu enxergava era um bicho de pelúcia”. Sua voz estava embargada e lágrimas de arrependimento começaram a jorrar de seus olhos.

“Você cresceu, velho amigo”, disse Haroldo.

Calvin não resistiu mais e soluçou, abraçando seu melhor amigo. “Eu sinto muito! Eu sinto muito! Eu quebrei minha promessa! Eu havia prometido que não iria crescer e que nós ficaríamos juntos para sempre!”

Haroldo acariciou os cabelos de Calvin, ou o pouco que restava deles. “Mas você não a quebrou.”

“Como assim?”

“Estávamos sempre juntos… em nossos sonhos.”

“Estávamos?”

“Sim.”

“Haroldo?”

“Sim, velho amigo?”

“Estou tão feliz por ter visto você assim… uma última vez…”

“Eu também, Calvin. Eu também.”

“Querido?”, a voz de Susie soou atrás da porta.

“Sim, querida?”, respondeu Calvin.

“Posso entrar?”, Susie perguntou.

“Só um minuto.”

Calvin voltou-se para Haroldo pela última vez. “Adeus, Haroldo. Obrigado… por tudo…”

“Não. Eu que agradeço, Calvin”, Haroldo disse.

Calvin voltou-se para a porta e disse: “Pode entrar agora.”

Susie entrou e disse: “Olha quem veio visitá-lo.”

Os filhos e netos de Calvin seguiram Susie quarto adentro. O neto mais novo ultrapassou correndo todos os outros e deu um forte e entusiasmado abraço em Calvin. “Vovô!!”, gritou a criança, visivelmente feliz.

“Francis!”, ralhou a filha de Calvin, “Seja gentil com seu avô.”

A filha de Calvin voltou-se para ele. “Sinto muito, papai. Francis não tem se comportado muito bem nos últimos tempos. Ele só corre e faz bagunça e agora deu pra vir com umas histórias estranhas.”

Calvin sorriu e disse: “Olha só! O mesmo que diziam de mim quando eu tinha a idade dele.”

Calvin e sua família conversaram um pouco mais, até que uma enfermeira disse: “Desculpem, o horário de visitas está quase terminando.”

Os entes queridos de Calvin se despediram, prometendo voltar no dia seguinte. Enquanto eles se preparavam para sair, Calvin disse: “Francis. Venha aqui um pouco.”

Francis chegou perto do avô, “O que é isso, vovô?”

Calvin pegou o tigre de pelúcia que estava em sua cabeceira e, com as mãos trêmulas, o estendeu para seu neto, que olhou para o tigre exatamente como ele fizera muitos anos atrás. “Este é o Haroldo. Ele era o meu melhor amigo quando eu tinha a sua idade. Eu quero que ele seja seu agora.”

“É apenas um tigre de pelúcia”, Francis disse, com as sobrancelhas levantadas.

Calvin sorriu: “Bem, deixe-me contar-lhe um segredo.”

Francis inclinou-se para Calvin. Calvin sussurrou: “Se você capturá-lo com uma armadilha para tigres usando um sanduíche de atum como isca ele se transformará em um tigre de verdade”.

Francis suspirou, com reverente admiração. Calvin continuou: “E não é só isso, ele será seu melhor amigo para sempre.”

“Uau! Obrigado, vovô!” Francis disse, abraçando seu avô com força novamente.

“Francis, precisamos ir agora.”, chamou a filha de Calvin.

“Ok!”, gritou Francis de volta.

“Cuide bem dele”, Calvin disse.

“Sim”, Francis disse, antes de sair correndo atrás dos outros membros da família.

Calvin se deitou de costas e olhou para o teto. A hora de partir estava chegando. Ele podia senti-lo na alma. Calvin tentou se lembrar de uma frase que ele leu em um livro uma vez. Ela dizia algo sobre a morte ser a próxima grande aventura ou algo parecido. Suas pálpebras ficaram pesadas e sua respiração tornou-se mais lenta. Enquanto mergulhava em seu sono final, ele ouviu a voz de Haroldo, como se o tigre estivesse ao seu lado. “Eu vou cuidar dele, Calvin…”

Calvin deu seu primeiro passo em direção a mais uma aventura e seu último suspiro com um sorriso no rosto.

NOTA: Conto publicado no Reddit, escrito por samuraitiger19, e livremente traduzido por mim. Embora se trate de uma história relativamente simples, escrita sem grande apuro literário, seu autor conseguiu – a se crer nos comentários dos leitores – a façanha de fazer chorar um número enorme de visitantes que leram a historieta. Por que será? Eu tenho um palpite. Quem teve a sorte de ter em mãos e ler as tirinhas com as histórias de Calvin e Haroldo, magistralmente escritas e desenhadas por Bill Watterson, ingressou em um universo que remete diretamente à infância que não é apenas a do personagem, mas também a do leitor. Esse talvez seja o segredo do sucesso das tirinhas que, embora tenham sido descontinuadas desde 1995, continuam ganhando fãs até hoje mundo afora: a capacidade de reviver em nós, leitores, nossa infância perdida. Então chega um aspirante a escritor e conta uma história em que são narrados os últimos minutos de vida do adorado personagem, valendo-se de alguns dos inúmeros elementos das tirinhas (o tigre que “ganha vida” aos olhos do personagem principal; a “armadilha para tigres”; a valorização de alguns aspectos da infância, como a imaginação e a amizade; Susie Derkins; o Astronauta Spiff), o que causa uma imediata sensação de identificação, como se o conto fosse mesmo a última história sobre Calvin. E pensamos: “Sim, esses poderiam ser realmente os últimos momentos do Calvin”. E no final, como era de se esperar, Calvin morre. Assim como morreu já há muito tempo nossa infância. E aqui está aquilo que julgo ser o maior mérito do conto: o de nos lembrar que tudo tem um fim e que nem mil tigres de pelúcia conseguiriam impedir a passagem do tempo e toda a transformação que ela provoca.
Tá bom, eu confesso: também chorei quando li a historinha…

Link para a o original:

In the final minutes of his life, Calvin has one last talk with Hobbes.

REPUBLICAÇÃO. Texto publicado originalmente no blog em 28/02/2016.

Henri Cole – Cerejeiras choronas

Em um platô, com pequenas montanhas,
um rio lamacento, perigoso quando a neve derretia,
um vale fértil, criadores de gado, e um conservatório musical,
um povo alto, belo, ágil, de negros cabelos lisos
e um espírito empreendedor, vivia pacificamente. Embora
nunca tenha havido ódio entre as raças,
após uma discussão sobre questões locais, massacres ocorreram.
Homens, mulheres & crianças pilhados & deportados — evacuação,
foi como eles chamaram. Cabeças empaladas em galhos. Montes
de cadáveres, como flores macabras atadas umas às outras.
Um navio que passava transportou alguns deles para um porto distante,
onde mamãe nasceu — embora agora ela também tenha desaparecido
para o universo — e o frio acobreou as cerejeiras choronas,
vermelho vivo mesclado com melancólico azul.

Trad: Nelson Santander

Weeping cherry

On a plateau, with little volcanic mountains,
a muddy river, dangerous when the snow melts,
a fertile valley, cattle breeders, and a music academy,
a tall, handsome, agile people, with straight black hair
and an enterprising spirit, lived peaceably. Though
there had never been hatred between the races,
after a quarrel over local matters, massacres came.
Men, women, & children robbed & deported—an evacuation,
they called it. Heads impaled on branches. Mounds
of corpses, like grim flowers knotted together.
A passing ship transported a few to a distant port,
where Mother was born, though now she, too,
has vanished into the universe, and the cold browns
the weeping cherry, vivid red mixed with blue.

Carlos Drummond de Andrade – Consolo na Praia

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.

REPUBLICAÇÃO. Poema originalmente publicado no blog em 25/02/2016

Robyn Sarah – Ao fechar o apartamento dos meus avós de abençoada memória

E então eu me vi naquela sala pela vez final.
Mantive-me firme, com a chave em minha mão,
e ouvi o silêncio que era como um som,
e percebi como o longo sol da tarde invernal
baixava de maneira oblíqua ao chão
fazendo florir os veios do assoalho. (Tudo o que eles um dia
possuíram estava guardado aqui.) Na janela gemia
um estilhaço de vento. Em breve eu partiria.

Em breve eu partiria; mas primeiro eu permaneci,
ouvindo a passagem dos anos naquela área desabitada
em que a plenitude ecoava. Em que o conhecido cheiro,
de uma vida tranquila, vivida com simplicidade, se agarrava ali
como uma graça duradoura, um sentimento, uma melodia há muito amada.
Então eu fechei tudo e toquei a campainha do porteiro.

/Trad.: Nelson Santander

On Closing the Apartment of my Grandparents of Blessed Memory

And then I stood for the last time in that room.
The key was in my hand. I held my ground,
and listened to the quiet that was like a sound,
and saw how the long sun of winter afternoon
fell slantwise on the floorboards, making bloom
the grain in the blond wood. (All that they owned
was once contained here.) At the window moaned
a splinter of wind. I would be going soon.

I would be going soon; but first I stood,
hearing the years turn in that emptied place
whose fullness echoed. Whose familiar smell,
of a tranquil life, lived simply, clung like a mood
or a long-loved melody there. A lingering grace.
Then I locked up, and rang the janitor’s bell.

Jorge de Sena – Conheço o Sal

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousada em suor noturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

REPUBLICAÇÃO. Originalmente publicado no blog em 25/02/2016

 

Robin Myers – O retorno

Esta é a rua onde
você nasceu. Esta é a chave que você perdeu na neve,
e este é o casaco que vestiu para ir buscá-la.
Este é o céu visto da janelinha do avião na manhã em que deixou
o país. Este é o lugar aonde você pensou que jamais iria.
Este é o sanduíche que você comeu na escadaria de uma igreja,
as migalhas que deu aos pombos. Este é o fundo da almofada
que ainda guarda fios de seus cabelos. Este é o verão.
Este é o continente que você cruzou,
a carta que por engano foi lavar com a roupa,
a faca com que se cortou ao picar a cebola.
Esta é a maravilha de poder reconhecer um amigo pela tosse
no quarto ao lado. Isto, embora você esteja dormindo, é um rato
sob as tábuas de madeira do piso, e esta é a luz que as recobre,
e estas são as sombras que salpicam a coluna vertebral
de alguém que está de costas.
Isto é quase o que você queria dizer.
Este é alguém que toca uma peça de Brahms no andar debaixo,
o copo de água que treme sobre o piano, a água derramada.
Isto é raiva, uma aula de direção, um ano de sua vida;
esta é a parada do ônibus, o lençol, a onda de calor;
estes são os fogos de artifício que você olhava
ao longe, florescendo mudos como flores numa colina escura.
Esta é a forma como você olha as pessoas no trem
para depois sentir saudades delas. Esta é a fé, como um nó na corda
pela qual você sobe, e estes são seus dedos ardidos e ralados
ao redor dela. Isto não é uma desculpa. Isto é o mar, dentro
de uma concha. Isto é o mar.
Isto é, ao que parece, o ponto a que chegamos.
Esta é você, se decidir voltar.
Esta é você, se nunca mais.

Trad.: Carlito Azevedo

The Return

This is the street where you were born.
This is the key you lost in the snow,
and this is the coat you put on to find it.
This is the way the sky looks from the airplane on the morning
you leave home. This is the place you thought you wouldn’t leave.
This is the sandwich you ate on the church steps,
the crumbs you threw to the pigeons. This is the pillowcase
still streaked with your hair. This is summer.
This is the continent you crossed,
the letter you put through the wash by mistake,
the kitchen knife you streaked with blood as you cut onions alone.
This is the astonishment of knowing a friend by his cough
in the next room. This, although you’re sleeping,
is a mouse beneath the floorboards and the light
that spreads across them, and these are the shadows
along the spine of the back that keeps turning away.
This is almost what you meant to say.
This is someone playing Brahms downstairs,
the glass of water that trembles on the piano, the spill.
This is anger, a driving lesson, a year of your life;
this is the bus stop, the bedsheet, the heat wave;
these are the fireworks you watched from a distance,
which bloomed soundless as flowers in the dark hills.
This is the way you look at people on the train
and miss them. This is faith like a knot in the rope
you are climbing, and these are your fingers, hot
and flayed around it. This is not an excuse. This
is the ocean inside a seashell. This is the ocean.
This is, it seems, where things have gotten to.
This is you, if you turn back.
This is you if you don’t come back.

William Ernest Henley – Invictus

No meio da noite que me abraça,
Negra como um Poço em sua inteireza,
Agradeço a cada Deus pela graça
De minha invencível natureza.

Nas terríveis garras das circunstâncias
Não recuei nem alteei meu pranto.
Debaixo dos golpes das contingências
Minha fronte sangra – altiva, no entanto.

Além deste lugar de desenganos,
Somente o Horror das sombras desponta,
E entretanto a ameaça dos anos
Deve me encontrar sem medo, e encontra.

Não importa se o portão é mofino,
Se a Lei é repleta de punição
Eu sou o condutor do meu destino
Eu sou de minha alma o capitão

Trad.: Nelson Santander

Invictus

Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

Republicação