Jane Hirshfield – Jasmim

Quase o século vinte e um —
quão rapidamente o pensamento ficará datado,
até mesmo pitoresco?

Nossas esperanças, nosso futuro,
passarão como as esperanças e futuros dos outros.

E todas as nossas ansiedades e terrores,
noites de insônia,
pesares,
se apresentarão então como realmente são —

Abelhas delirantes e trôpegas pelo aroma do chá de jasmim.

In “The lives of the heart (1994-1997)

Trad.: Nelson Santander

Jasmine

Almost the twenty-first century —
how quickly the thought will grow dated,
even quaint.

Our hopes, our future,
will pass like the hopes and futures of others.

And all our anxieties and terrors,
nights of sleeplessness,
griefs,
will appear then as they truly are —

Stumbling, delirious bees in the tea scent of jasmine.

Seán Hewitt – Fantasma

i.

Despertando, quase de manhã, mas ainda
de um escuro metálico, fechado, no quarto:
um som dentro do meu sonho, apenas um lamento
no início, que depois se torna humano, um uivo
que se eleva na rua do lado de fora, fica sem resposta
e então se eleva novamente. De cueca, tremendo
junto à janela de uma só vidraça, mas não vendo ninguém
entre as sombras escuras dos carros estacionados
ou dos arbustos, eu saio seminu: mãos tremendo,
a porta da frente destrancada e depois aberta,
e junto à pilastra do alpendre, sob um cone
de luz laranja, um rapaz caído,
bêbado, soluçando como se sua vida inteira
estivesse se desatando em som.

 
ii.

E agora, eu me lembro de uma tarde,
voltando da escola, meu pai escavando
a raiz de uma conífera no jardim – eu o vi
olhar para cima, subitamente alerta, sair pelo portão do fundo
em direção ao beco atrás dos terraços, e voltar
em pânico com um menino nos braços. Eu o reconheci,
mais ou menos da minha idade, da escola, por seus dreadlocks,
suas mechas turquesas; mas agora pendendo
sob o próprio peso, seus pulsos escorrendo
sobre o jeans enlameado do meu pai e o azulejo do pátio.
Eu conhecia, mesmo então, os rumores sobre ele;
fiquei pensando, enquanto enrolávamos e atávamos lençóis rasgados
em torno de suas veias abertas, em como poderíamos compartilhar,
uma vez que a verdade fosse revelada, um vínculo, um sangue eletivo.

 
iii.

Noites mais tarde, dormi apenas pela metade, esperando
a qualquer momento ouvir de novo alguém do lado de fora,
como se o tempo pudesse ser apanhado em uma espiral,
o mesmo menino percorrendo a rota mapeada
pelas ruas escuras na mesma hora
até a minha porta. De novo, abri a janela,
e fiquei esperando para vê-lo chegar, descalço, talvez,
pelo caminho. Todas as noites, e nenhum sinal, até eu pensar
que talvez fosse só eu, ou um sonho meu,
pedindo, noite após noite, para ser recebido na soleira
e autorizado a retornar para o quarto frio de minha vida.
Mas então, para cada um de nós, uma ferida deve ser dada
ou produzida – há sempre a alma esperando
na porta do corpo, pedindo para ser solta.

Trad.: Nelson Santander

Ghost

i.

Waking, close to morning but still
a shuttered, metal dark in the room:
a sound inside my dream, only a whimper
at first, then becoming human, a howl
raised in the street outside, left unanswered
then raised again. In my boxers, shivering
by the single-paned window, but seeing no one
among the black shapes of the parked cars
or hedges, I went out half-dressed: hands shaking,
front door unlocked then pushed open,
and by the column of the porch, under a cone
of orange light, a young man slumped,
drunk, sobbing like his whole life
was unfurling into sound.

 
ii.

And now, I am reminded of one afternoon,
home from school, my father digging out
the root of a conifer in the garden – I saw him
look up, suddenly alert, leave by the back gate
into the alley behind the terraces, and return
panicked with a boy in his arms. I recognised him,
about my age, from school, by his dreadlocks,
his turquoise streak of hair; but now lolling
under his own weight, his wrists draining
over my father’s mudded jeans and the patio tiles.
I knew, even then, the rumours about him;
thought as we wrapped and pinned torn sheets
around his opened veins, how we might share,
once the truth was out, a bond, an elective blood.

 
iii.

Nights later, I only half-slept, expecting
at any moment to hear someone again outside,
as though time might be caught in a loop,
the same boy walking the mapped route
along the dark streets at the same hour
to my door. Again, I unshuttered the window,
stood waiting to see him come, barefoot, maybe,
down the path. Each night, no sign, until I thought,
perhaps, it was only me, or a dream of myself,
asking nightly to be greeted at the threshold,
allowed back into the cold room of my life.
But then, in each of us, a wound must be made
or given – there is always the soul waiting
at the door of the body, asking to be let out.

Edward Field – Máscara mortuária

Máscara mortuária

           “A velhice é a mais inesperada
            de todas as coisas que acontecem a um homem.“
            –Leon Trotsky.

            “Não me falem
            Da sabedoria dos velhos, mas antes de seu
            delírio,
            De seu medo…”
            –“East Coker,” by T.S. Eliot


                  1

No espelho, agora,
      o que vejo
me lembra
      que eu não estarei aqui para sempre.

Não me sinto nada
      como aquela cara.
Por dentro, protesto,
      eu sou completamente diferente.

É o avô de alguém,
      não eu.

De quem é esse avô?
      Eu vivo bem sem ele.

                  2

Ah, memória, memória…

É terrível

estar perdendo

as palavras.

                  3

Como se vai daqui até lá –
quero dizer, de onde estou
até o lar dos idosos?
Num estalar de dedos,
num piscar de olhos.

Como disse minha mãe,
enquanto era colocada
na ambulância,
Foi tão rápido.

                  4

A vida
          é um preguiçoso tumulto,
então
          a rápida picada.

Um longo suspiro interior,
          então
a súbita
          exalação.

Trad.: Nelson Santander

Death Mask

           “Old age is the most unexpected
            of all the things that happen to a man.“
            –Leon Trotsky.

            “Do not let me hear
            Of the wisdom of old men, but rather of their
            folly,
            Their fear…”
            –“East Coker,” by T.S. Eliot


                  1

In the mirror now,
      what I see
reminds me
      I won’t be here forever.

I don’t feel like
      that face at all.
Inside it, I protest,
      I’m quite different.

It’s somebody’s grandfather,
      not me.

Whose grandfather is that?
      I don’t want him.

                  2

Ah, memory, memory….

terrible,

to be losing

the words.

                  3

How do you get from here to there-
I mean, from where I am
to the nursing home?
In a snap of the fingers,
the blink of an eye.

Like my mother said,
as she was being loaded
into the ambulance,
It went so fast.

                  4

Life
          a lazy buzz,
then
          the quick sting.

A long inward breath,
          then
the sudden
          exhaling.

Carlos Drummond de Andrade – Nudez

Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.

Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estanho,
estanho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.

Nem era dor aquilo que doía;
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)
Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei, e toda sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.

Amador de serpentes, minha vida
passarei, sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende,
ou se contrai e atrai, além da pobre
área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
tais meus pecados, quanto mais fugi
do que enfim capturei, não mais visando
aos alvos imortais.

Ó descobrimento retardado
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve.

David Whyte – Algumas vezes

Algumas vezes,
se você se mover cuidadosamente
pela floresta,
respirando
como os
das velhas histórias,
que podiam atravessar
um resplandescente leito de folhas
sem um som,
você chega a um lugar
cuja única missão
é incomoda-lo
com ínfimas
mas assustadoras exigências,
concebidas do nada
mas neste lugar
que começa a leva-lo para todos os lugares.
Exigências para que você pare
o que está fazendo agora,
e
pare o que você
está se tornando
enquanto o faz,
indagações
que podem criar
ou destruir
uma vida,
indagações
que pacientemente
esperam por você,
indagações
que não tem o direito
de partir.

Trad.: Nelson Santander

Sometimes

Sometimes
if you move carefully
through the forest,
breathing
like the ones
in the old stories,
who could cross
a shimmering bed of leaves
without a sound,
you come to a place
whose only task
is to trouble you
with tiny
but frightening requests,
conceived out of nowhere
but in this place
beginning to lead everywhere.
Requests to stop what
you are doing right now,
and
to stop what you
are becoming
while you do it,
questions
that can make
or unmake
a life,
questions
that have patiently
waited for you,
questions
that have no right
to go away.

Paul Tran – A caverna

Alguém que estava na abertura teve
a ideia de entrar. Ir além do ponto onde

a luz ou a linguagem poderiam
ir. À medida que ele seguia
a ideia, luz e linguagem o acompanhavam

como dois lobos — ofegantes, ouvindo o próprio
resfolegar. Um aroma informe
no ar úmido…

Prossiga, disse a ideia.

Alguém prosseguiu. Cada vez mais fundo, eles viram
que outros tinha estado lá. Outros haviam deixado

objetos que não poderiam ter encontrado o caminho
para aquele lugar sozinhos. Conchas ocre-manchadas. Ossos de pássaros. Hematita
enraizada. Nas paredes,

como se entrasse na história, alguém vislumbrou
o seu propósito: vacas. Touros. Bisontes. Veados. Equinos —
alguns prenhes, outros abatidos.

A vida
selvagem parecia selvagem e viva, movendo-se

quando alguém se movia, lançando suas sombras
nas sombras que se estendiam
em todas as direções. Prossiga,

a ideia disse novamente. Continue…

Alguém continuou. Eles seguiram a ideia tão longe para dentro que
fora era outra ideia.

Trad.: Nelson Santander

The Cave

Someone standing at the mouth had
the idea to enter. To go further

than light or language could
go. As they followed
the idea, light and language followed

like two wolves—panting, hearing themselves
panting. A shapeless scent
in the damp air …

Keep going, the idea said.

Someone kept going. Deeper and deeper, they saw
others had been there. Others had left

objects that couldn’t have found their way
there alone. Ocher-stained shells. Bird bones. Grounded
hematite. On the walls,

as if stepping into history, someone saw
their purpose: cows. Bulls. Bison. Deer. Horses—
some pregnant, some slaughtered.

The wild-
life seemed wild and alive, moving

when someone moved, casting their shadows
on the shadows stretching
in every direction. Keep going,

the idea said again. Go …

Someone continued. They followed the idea so far inside that
outside was another idea.