Iracema Macedo – Dandara

Eu só acreditava em Drummond:
‘o amor chega tarde’
Não conhecia o amor que fulgura sem aviso
esse que se sabe proibido
o amor que já se sabe perdido desde o início
Eu não acreditava no impossível
vinha tão sóbria, tão cheia de medidas
não conhecia o esplendor da queda
nem a violência dos abismos

José Miguel Silva – Tudo coisas mortais para a poesia

A casa, o lume, o sono dobrado
do corpo feliz, a cesta de figos,
a curva do rio, a fotografia
no cimo do monte, a veracidade
das glicínias, o rosto da mãe,
a fava no bolo, o trunfo de copas,
o filme da tarde, a música nova,
o rasto da chuva por entre os pinheiros,
as aves que voltam, os dias que passam
perto de nós.

Juan Vicente Piqueras – Lençóis herdados

A ferida mais íntima é herdada.

O onde, o como, o quando,
a morte, o nascimento,
língua, família, deus, tempo, amor:
o decisivo do que nos acontece,
e quem somos,
não é algo desejado nem escolhido.

E passamos a vida, a despeito disso, ou por isso,
crendo que o desejo é nosso deus,
e não uma rosa rara que em nós cultiva
o acaso
que nos guia, nos cega e nos ignora.

Ninguém escolheu o mundo em que nasceu.
Nem sequer seu nome, sua memória.

O importante se impõe, não se escolhe.

E no entanto somos seres livres
para escolher entre dar e destruir
o que temos, deseja-lo, ama-lo
mais do que o que não há, lutar sem mundo,
aceitar o que ocorre e trabalhar
duro para que ocorra
o que de todo modo vai ocorrer.

Não há mais sabedoria ou remédio
que amar a vida mais que o seu sentido
e deixar-se levar pelas águas indomáveis
de estar aqui e, assim, com sede de partir,
de escolher o que há e, ai de nós,
ser quem somos, pródigos, saber
que não temos mais que o que damos.

Chamamos liberdade a esta tarefa
minuciosa e secreta de bordar,
manchar, romper, lavar, estender, dobrar,
guardar no armário, entre folhas de marmelo,
lençóis herdados da avó
que por sua vez herdou da sua, um estranho enxoval
para essa solidão que me desposou.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Sábanas Heredadas

La más íntima herida es heredada.

El dónde, el cómo, el cuándo,
la muerte, el nacimiento,
lengua, familia, dios, época, amor:
lo decisivo de lo que nos pasa,
y los que somos,
no es algo deseado ni elegido.

Y pasamos la vida, sin embargo o por eso,
creyendo que el deseo es nuestro dios
y no una rosa rara que en nosotros cultiva
el azar
que nos guía, nos ciega y nos ignora.

Nadie ha elegido el mundo en que ha nacido.
Ni siquiera su nombre, su memoria.

Lo importante se impone, no se elige.

Y sin embargo somos seres libres
de escoger entre dar y destruir
lo que tenemos, desearlo, amarlo
más que a lo que no hay, luchar sin mundo,
aceptar lo que ocurre y trabajar
duro para que ocurra
lo que de todos modos va a ocurrir.

No hay más sabiduría ni remedio
que amar la vida más que su sentido
y dejarse llevar por las aguas salvajes
de estar aquí y así, con sed de irse,
de elegir lo que hay y, ay de nosotros,
ser quienes somos, pródigos, saber
que no tenemos más que lo que damos.

Llamamos libertad a esta tarea
minuciosa y secreta de bordar,
manchar, romper, lavar, tender, plegar,
guardar en el armario entre membrillos
sábanas heredadas de la abuela
que a su vez heredó de la suya, extraño ajuar
para esta soledad que me ha esposado.

Czeslaw Milosz – Sobre anjos

Tudo foi tirado de vocês: túnica branca,
asas, até mesmo a existência.
Contudo, ainda acredito em vocês,
mensageiros.

Aqui, onde o mundo está virado do avesso,
uma trama maciça bordada com astros e bestas,
vocês passeiam, inspecionando as suturas confiáveis.

Curta é sua estadia neste lugar:
às vezes na hora matinal, se o céu está claro,
na melodia repetida por um pássaro,
ou no cheiro das maçãs no fim do dia
quando as luzes fazem dos pomares lugares mágicos.

Dizem que alguém os concebeu,
mas para mim isso não parece convincente,
pois os humanos também foram concebidos.

A voz – sem dúvida é uma prova válida,
pois só pode pertencer a criaturas radiantes,
sem peso e aladas (afinal, por que não?),
cingidas pelo raio.

Eu ouvi aquela voz várias vezes quando dormia
e, o que é estranho, percebi mais ou menos
uma ordem ou um apelo em uma língua sobrenatural:

o dia se aproxima
mais um
faça o que puder.

Trad.: Nelson Santander

On angels

All was taken away from you: white dresses,
wings, even existence.
Yet I believe in you,
messengers.

There, where the world is turned inside out,
a heavy fabric embroidered with stars and beasts,
you stroll, inspecting the trustworthy seams.

Short is your stay here:
now and then at a matinal hour, if the sky is clear,
in a melody repeated by a bird,
or in the smell of apples at close of day
when the light makes the orchards magic.

They say somebody has invented you
but to me this does not sound convincing
for the humans invented themselves as well.

The voice — no doubt it is a valid proof,
as it can belong only to radiant creatures,
weightless and winged (after all, why not?),
girdled with the lightening.

I have heard that voice many a time when asleep
and, what is strange, I understood more or less
an order or an appeal in an unearthly tongue:

day draw near
another one
do what you can.

Joan Margarit – Ela me disse

Procuremos uma casa para morrer.
Por exemplo, aquele apartamento
onde começamos a nossa história:
arquitetura vulgar dos anos sessenta,
mas arejado e com flores.

Um bom lugar – e alegre – para nele morrer:
Talvez na sala, sempre com música
e a luz que chegava do mar.
Ou na cozinha, em que recebia
as ordens de avante, a todo vapor,
que emitia o nosso amor.
Morrer talvez no quarto das meninas,
o medo entre os pôsteres e a luz.
Também nas sombras onde chorei
enquanto sentia tua respiração
de madrugada, planejando deixar-me.
Morrer no lugar mais silencioso:
nosso quarto, ali
onde eu te traí e tu me traíste.

Tudo isso ela me disse.
Se eu tivesse conseguido comove-la,
onde estaríamos agora?
Onde estaria o nosso amor,
quanto teria durado, quem sabe se algumas horas?
Quem nos dirá é a última estrela,
a estrela da morte naquele céu
sobre uma praia escura onde ainda te digo:
teus olhos me lembram as noites de verão

Trad.: Nelson Santander

 

https://www.cancioneros.com/nc/18757/0/tus-ojos-me-recuerdan-antonio-machado-paco-ibanez

 

Ella me dice

Busquemos una casa en que morir.
Por ejemplo, aquel ático
en el que comenzamos nuestra historia:
vulgar arquitectura de los años sesenta,
pero con aire y flores.

Un buen sitio — y alegre — para morir en él:
puede que en el salón, siempre con música
y la luz que llegaba desde el mar.
O en la cocina, donde recibía
las órdenes de avante a toda máquina
que daba nuestro amor.
Morir quizá en el cuarto de las niñas,
el miedo entre los pósters y la luz.
También la oscuridad donde lloré
mientras sentía su respiración
de madrugada, planeando irme.
Morir en el lugar más silencioso:
nuestro cuarto, allí
donde yo te engañé y tú me engañaste.

Todo esto me dice.
Si la hubiera logrado conmover,
¿dónde estaríamos ahora?
¿Dónde estaría nuestro amor,
lo que hubiese durado, quién sabe si unas horas?
La que nos lo dirá es la última estrella,
la estrella de la muerte en aquel cielo
sobre una playa a oscuras donde te digo aún:
tus ojos me recuerdan las noches de verano.

W. S. Merwin – A estrada

Parece grande demais para que apenas um homem
Caminhe sobre ela Como se ela e o dia vazio
Fossem tudo o que existisse. E um cachorrinho
Trotando no compasso das ondas de calor, perto
Do horizonte, parecendo nunca avançar.
O sol e todas as coisas
Estão empoçados nos mesmos lugares, e a vala
É sempre a mesma, repleta de todo tipo de
Osso, enquanto o ar vazio continua a zumbir
Aquele som memorizado das coisas que por ali
Passaram. E as placas com cabeças enormes e corpos
Desnutridos, ensaiando passos de dança no calor,
E outras, grandes como casas, todas prometem,
Mas sem nada dentro, apenas uma parede,
E falam de outros lugares onde você pode comer,
Beber, tomar um banho, deitar-se numa cama
Ouvindo música, e sentir-se seguro. Se você
Olhar ao redor, verá que, em sentido contrário,
voltando, é igual; e que agora está mais distante
De onde veio, provavelmente,
Do que dos lugares que poderia alcançar prosseguindo.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Highway

It seems too enormous just for a man to be
Walking on. As if it and the empty day
Were all there is. And a little dog
Trotting in time with the heat waves, off
Near the horizon, seeming never to get
Any farther. The sun and everything
Are stuck in the same places, and the ditch
Is the same all the time, full of every kind
Of bone, while the empty air keeps humming
That sound it has memorized of things going
Past. And the signs with huge heads and starved
Bodies, doing dances in the heat,
And the others big as houses, all promise
But with nothing inside and only one wall,
Tell of other places where you can eat,
Drink, get a bath, lie on a bed
Listening to music, and be safe. If you
Look around you see it is just the same
The other way, going back; and farther
Now to where you came from, probably,
Than to places you can reach by going on.

Mary Oliver – Quando a morte chegar

Quando a morte chegar
como um urso faminto no outono;
Quando a morte chegar e tirar todas as moedas brilhantes de sua bolsa

para me comprar, e fechá-la com um estalo;
quando a morte chegar
como o sarampo-varíola

quando a morte chegar
como um iceberg entre as omoplatas,

quero atravessar o portal cheia de curiosidade, perguntando:
como será essa sombria cabana?

E por isso olho para tudo como uma irmandade,
e vejo o tempo como nada além de uma ideia,
e considero a eternidade como outra possibilidade,

e penso em cada vida como uma flor, tão comum
quanto uma margarida do campo, e ainda assim tão singular,

e em cada nome como uma confortável canção entre os lábios,
que, como toda canção, tende ao silêncio,

e em cada corpo como um leão de coragem, e algo
precioso para a terra.

Quando tudo terminar, quero dizer que por toda minha vida
fui uma noiva desposada pelo assombro.
Fui o noivo, tomando o mundo em meus braços.

Quando tudo terminar, não quero me perguntar
se fiz de minha vida algo especial e verdadeiro.
Não quero me encontrar suspirando e assustada,
ou cheia de argumentos.

Não quero terminar tendo apenas passado por este mundo.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

When death comes

When death comes
like the hungry bear in autumn;
when death comes and takes all the bright coins from his purse

to buy me, and snaps the purse shut;
when death comes
like the measle-pox

when death comes
like an iceberg between the shoulder blades,

I want to step through the door full of curiosity, wondering:
what is it going to be like, that cottage of darkness?

And therefore I look upon everything
as a brotherhood and a sisterhood,
and I look upon time as no more than an idea,
and I consider eternity as another possibility,

and I think of each life as a flower, as common
as a field daisy, and as singular,

and each name a comfortable music in the mouth,
tending, as all music does, toward silence,

and each body a lion of courage, and something
precious to the earth.

When it’s over, I want to say all my life
I was a bride married to amazement.
I was the bridegroom, taking the world into my arms.

When it’s over, I don’t want to wonder
if I have made of my life something particular, and real.
I don’t want to find myself sighing and frightened,
or full of argument.

I don’t want to end up simply having visited this world.

Rainer Maria Rilker – A Morte da Amada

Da morte ele sabia quase nada:
que nos toma e nos cala de repente.
Como a amada não fora arrebatada,
antes se desprendera docemente
do seu olhar para a morada escura,
e como percebeu que à outra vida
como uma lua plena a formosura
da visitante fora concedida,
dos mortos se tornou tão familiar
que os viu como parentes através dela;
deixou os outros a falar,
sem neles crer; chamou esse lugar
bem-vindo, sempre doce, e pelos pés
da amada o começou a palmilhar.

Trad.: Augusto de Campos

Der Tod der Geliebten

Er wußte nur vom Tod was alle wissen:
daß er uns nimmt und in das Stumme stößt.
Als aber sie, nicht von ihm fortgerissen,
nein, leis aus seinen Augen ausgelöst,

hinüberglitt zu unbekannten Schatten,
und als er fühlte, daß sie drüben nun
wie einen Mond ihr Mädchenlächeln hatten
und ihre Weise wohlzutun:

da wurden ihm die Toten so bekannt,
als wäre er durch sie mit einem jeden
ganz nah verwandt; er ließ die andern reden

und glaubte nicht und nannte jenes Land
das gutgelegene, das immersüße—
Und tastete es ab für ihre Füße.

Robert Graves – Através do pesadelo

Jamais se desencante daquele
Lugar no qual algumas vezes você sonha estar,
Deitada muito além de todo sonho,
Ou daqueles que você lá encontra, embora raramente
se sente na companhia deles.

O indomável, o vivo, o gentil.
Você não os conhece? Quem? Eles transportam
O tempo circular como um sábio-rio ao redor de suas casas
E não há como, pelas veredas da história,
Nomeá-los ou numera-los.

Em seus olhos dormentes eu leio a jornada
A que você, incoerentemente, se refere; o que desperta
Minha admiração amorosa, de que você deve viajar,
Através do pesadelo, para uma terra perdida e isolada,
Tímida por natureza.

Trad.: Nelson Santander

Through Nightmare

Never be disenchanted of
That place you sometimes dream yourself into,
Lying at large remove beyond all dream,
Or those you find there, though but seldom
In their company seated –

The untameable, the live, the gentle.
Have you not known them? Whom? They carry
Time looped so river-wise about their house
There’s no way in by history’s road
To name or number them.

In your sleepy eyes I read the journey
Of which disjointedly you tell; which stirs
My loving admiration, that you should travel
Through nightmare to a lost and moated land
Who are timorous by nature.

Aberto Bresciani – Bisões

E seguimos como bisões,
olhando para a frente,
em disparada, fugindo
de absolutamente nada
e de quase tudo.

No caminho, outros bisões
se juntam ao grupo
e continuamos todos,
aos atropelos, na mesma rota.

Corremos, nós os bisões,
para onde não sabemos,
em uma pradaria fictícia,
que, a exemplo dos rios,
é outra a cada migração

Olhamos para a frente
e nos perguntamos,
os olhos bovinos,
se este é mesmo
o nosso lugar.