Eugénio de Andrade – Sou fiel ao ardor…

Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos,
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Joan Margarit – Vida Social

Idealizavas esta solidão
para ouvir música ou ler,
e caminhar no inverno junto ao mar.
Mas a solidão é uma chuva
que suja as janelas deste trem dos anos.
A solidão é a palavra cruel
do acre ressentimento familiar.
É a lei do acaso, um labirinto injusto.
É não ter dinheiro, é ter medo.
É o sexo, uma estranha pista falsa
que conduz ao mais cruel dos espelhos.
É não ter desculpas pelo que não viveste.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Joan Margarit – Vida Social

Idealizabas esta soledad
de escuchar música o leer,
de vagar en invierno junto al mar.
Pero la soledad es una lluvia
que ensucia los cristales de este tren de los años.
La soledad es la palabra cruel
del agrio malhumor de la familia.
Es la ley del azar, un laberinto injusto.
Es no tener dinero, es tener miedo.
Es el sexo, una extraña pista falsa
que conduce al más cruel de los espejos.
Es no tener excusa por lo que no has vivido.

Manuel António Pina – A avó

Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pelo dele preto e brando

Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela

Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro

Gregory Corso – Tenho 25

Com um amor louco por Shelley
Chatterton    Rimbaud
e o ganido carente de minha juventude
 passou de orelha a orelha:
  EU ODEIO OS VELHOS POETAS!
Especialmente velhos poetas que se retratam
que consultam outros velhos poetas
que falam de suas juventudes em sussurros,

dizendo: – Eu fiz
  mas isso é passado
  isso é passado –
Oh eu acalmaria aqueles velhos
dizendo-lhes: – Eu sou seu amigo,
    o que você foi outrora, confie em mim
    e você será novamente –
À noite, então, na segurança de seus lares

eu arrancaria suas línguas-evasivas
    e roubaria seus poemas.

Trad.: Nelson Santander

I am 25

With a love a madness for Shelley
Chatterton   Rimbaud
and the needy-yap of my youth
 has gone from ear to ear:
  I HATE OLD POETMEN!
Especially old poetmen who retract
who consult other old poetmen
who speak their youth in whispers,

saying:- I did those then
  but that was then
  that was then –
O I would quiet old men
say to them:–I am your friend
    what you once were, thru me
    you’ll be again–
Then at night in the confidence of their homes

rip out their apology-tongues
    and steal their poems.

Armando Silva Carvalho – Struggle for life

Cheguei há muito à idade filosófica,
Secaram-me os sonetos na tão nervosa pena dos sentidos.
As aves lânguidas e longas do desejo
– Que não eram lânguidas
Nem longas –
Voaram dos meus sonhos para nunca mais.

Houve quem ouvisse os seus gritos românticos,
Seguisse o seu devaneio em círculos voláteis,
Em versos de dez sílabas, em rimas comedidas,
Em rigor panfletário.
Du Heine de deuxième qualité, seguindo o bom-tom
Da época.

Mas isso era num céu do sentimento,
Ousado, sensual, arrebatado.
E eu tinha um coração flamante, um peito erguido
Aos hinos, uma boca eloquente às odes
Às quais por impulso eu chamaria
Modernas.

Tomara para mim todos os astros.
Entrevira a inclinação da bússola do espírito,
Num vasto, inacabado arco erguido
Sobre a luta no mundo pela sobrevivência,
Vida que devora vida, leis naturais e cruéis,
Visões epicuristas, geladas pela razão.

Concedeu-me a Natureza o dom da prosa
E os versos obedecem-lhe.
Se escrevesse a Storck uma vez mais
Talvez lhe acrescentasse estas sextilhas,
Um pouco aborrecidas, mas fieis à minha natureza
Que recusa ficar-se pela Natureza.

Inocentes passos de criança invadiram-me a alma
E nem eu sei dizer se o choro é meu
Ou vem duma catástrofe.
As lágrimas que penso são do possível santo
Ante a aurora dum mundo
De Beleza, de Amor, Justiça e Universo.

Oscar Wilde – Da vaidade

“Por que você chora?”, perguntaram as Oreiades.

“Choro por Narciso”.

“Ah, não nos espanta que você chore por Narciso”, continuaram elas. “Afinal de contas, todas nós sempre corremos atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza”.

“Mas Narciso era belo?”, quis saber o lago.

“Quem melhor do que você poderia saber?”, responderam, surpresas, as Oreiades.

“Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias”.

O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:

“Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que era belo. Choro por ele porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens, eu podia ver, no fundo dos seus olhos, a minha própria beleza refletida”.

André Oviedo – Caixa-Preta

em algum lugar depois do fim
flutuando entre os destroços
encontraremos a caixa-preta
e poderemos finalmente
restituir o passado
palavra por palavra
como chaves perdidas no tempo
a reabrirem as portas
que nos trouxeram até aqui

Walter Savage Landor – Rose Aylmer

Ah, de que vale a régia raça!
E esta forma celeste!
Toda virtude, toda graça!
Rose Aylmer, tudo o que foste.

Rose Aylmer, meus olhos despertos
Eles choram, mas não veem,
Uma noite de dor te oferto,
E de lembranças também.

Trad.: Nelson Santander

Rose Aylmer

Ah, what avails the sceptred race!
Ah, what the form divine!
What every virtue, every grace!
Rose Aylmer, all were thine.

Rose Aylmer, whom these wakeful eyes
May weep, but never see,
A night of memories and sighs
I consecrate to thee.

François Villon – Balada dos Enforcados

Irmãos humanos que ao redor viveis,
Não nos olheis com duro coração,
Pois se aos pobres de nós absolveis
Também a vós Deus vos dará perdão.
Aqui nos vedes presos, cinco, seis:
Quanto era cara viva que comia
Foi devorado e em pouco apodrecia.
Ficamos, cinza e pó, os ossos, sós.
Que de nossa aflição ninguém se ria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.

Se dizemos irmãos, vós não deveis
Sentir desprezo, embora condenados
Tenhamos sido em vida. Bem sabeis:
Nem todos têm os sentidos sentados.
Desculpai-nos, que já estamos gelados,
Perante o filho da Virgem Maria.
Que seu favor não nos falte um só dia
Para livrar-nos do inimigo atroz.
Estamos mortos: que ninguém sorria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.

A chuva nos lavou e nos desfez
E o sol nos fez negros e ressecados,
Corvos furaram nossos olhos e eis-
Nos de pelos e cílios despojados,
Paralíticos, nunca mais parados,
Pra cá, pra lá, como o vento varia,
Ao seu talante, sem cessar, levados,
Mais bicados do que um dedal. A vós
Não ofertamos nossa confraria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.

Meu príncipe Jesus, que a tudo vês,
Não nos entregues à soberania
Do Inferno, que só ouvimos tua voz.
Homens, aqui não cabe zombaria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.

Trad.: Augusto de Campos

Ballade des pendus

Frères humains, qui après nous vivez,
N’ayez les coeurs contre nous endurcis,
Car, si pitié de nous pauvres avez,
Dieu en aura plus tôt de vous mercis.
Vous nous voyez ci attachés, cinq, six :
Quant à la chair, que trop avons nourrie,
Elle est piéça dévorée et pourrie,
Et nous, les os, devenons cendre et poudre.
De notre mal personne ne s’en rie ;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre !

Se frères vous clamons, pas n’en devez
Avoir dédain, quoique fûmes occis
Par justice. Toutefois, vous savez
Que tous hommes n’ont pas bon sens rassis.
Excusez-nous, puisque sommes transis,
Envers le fils de la Vierge Marie,
Que sa grâce ne soit pour nous tarie,
Nous préservant de l’infernale foudre.
Nous sommes morts, âme ne nous harie,
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre !

La pluie nous a débués et lavés,
Et le soleil desséchés et noircis.
Pies, corbeaux nous ont les yeux cavés,
Et arraché la barbe et les sourcils.
Jamais nul temps nous ne sommes assis
Puis çà, puis là, comme le vent varie,
A son plaisir sans cesser nous charrie,
Plus becquetés d’oiseaux que dés à coudre.
Ne soyez donc de notre confrérie ;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre !

Prince Jésus, qui sur tous a maistrie,
Garde qu’Enfer n’ait de nous seigneurie :
A lui n’ayons que faire ne que soudre.
Hommes, ici n’a point de moquerie ;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre !

Nelson Santander – Impermanência

Se há algo mais fascinante do que locais abandonados, desconheço. Toda vez que, em viagem, me deparo com uma casa desabitada há muito tempo, uma estação de trem em desuso ou o esqueleto do que um dia foi uma fábrica, acabo perdendo (ganhando) algum tempo na contemplação do local, tentando adivinhar quem nele pisou, morou ou trabalhou, por quanto tempo aquele espaço perdurou, que dramas humanos ali se desenrolaram.

Tudo nesses recantos em decomposição é desconcertante e belo.

As imagens que ilustram essa postagem1 demonstram o que quero dizer. A devastação preside, mas não é difícil, com um pouco de imaginação, encontrar detalhes que surpreendem pela beleza, pelo inusitado, pelo poético.

Um velho piano que um dia encantou o mundo com acordes de Chopin, Beethoven, Mozart e que já não emite mais um único som há décadas; a igreja decrépita da qual nem Deus mais se lembra; uma estátua decapitada que jamais será uma Vênus de Milo; a piscina seca que hoje não serve de diversão nem mesmo para rãs; um bar no qual apenas velhos fantasmas trocam amenidades e bebem seus uísques cowboy, sem nunca ficarem bêbados; o cinema que outrora exibiu a queda do império romano, longa jornada noite adentro e nunca fomos tão felizes e que agora assiste impassível o próprio the end; trilhos retos e escadas espiraladas que não levam a lugar nenhum; construções sendo devoradas pela vegetação que escala as paredes como labaredas verdes; a cama de casal que testemunhou um amor indomável como o fogo tornar-se fumaça e gelo e cinzas enfim (o que não tem fim sempre acaba assim, diria Humerto Gessinger).

Mas para muito além de tudo isso, esses lugares nos fazem lembrar principalmente de que madeira, ferro, pano, papel, pedra, gente, tudo, absolutamente tudo se transforma, e encontra a decadência e se converte em pó e acaba. Só uma coisa permanece: a impermanência. Que tudo o que começa não se presta para existir, mas para terminar.

Tenham todos um ótimo final de semana! Ou algo parecido.

(postado originalmente na página pessoal do autor no Facebook)

  1. As imagens foram retiradas da internet. ↩︎