Giuseppe Ungaretti – Céu claro

  Bosque de Courton, julho de 1918

Depois de tanta
névoa
uma
a uma
se desvelam
as estrelas

Respiro
o frescor
que me deixa
a cor do céu

Me reconheço
imagem
passageira

Presa de um ciclo
imortal

Trad.: Geraldo Holanda Cavalcanti

Giuseppe Ungaretti – Sereno

  Bosco di Courton luglio 1918

Dopo tanta
nebbia
a una
a una
si svelano
le stelle

Respiro
il fresco
che mi lascia
il colore del cielo

Mi riconosco
immagine
passeggera

Presa in un giro
Immortale.

Raymond Carver – A cabine telefônica

Ela desaba na cabine, chorando
no telefone. Perguntando uma coisa
ou outra, e chorando um pouco mais.
Seu companheiro, um camarada mais velho,
usando jeans e camiseta, aguarda em pé
a sua vez de falar, e chorar.
Ela passa o telefone para ele.
Por um minuto eles ficam juntos
na minúscula cabine, as lágrimas dele
rolando junto com as dela. Então
ela vai se encostar no para-choque
do sedan. E fica escutando
enquanto ele toma providências.

Assisto a tudo isso do meu carro.
Eu também não tenho telefone em casa.
Fico sentado atrás do volante,
fumando, esperando para tomar
as minhas próprias providências. Logo depois
ele desliga. Sai da cabine e enxuga o rosto.
Eles entram no carro e se sentam
com as janelas erguidas.
O vidro vai embaçando, enquanto
ela se ampara nele, e ele coloca
o braço em volta de seu ombro.
Os mecanismos do consolo naquele espaço apertado e público.

Eu levo meus trocados até
a cabine, e entro.
Mas deixo a porta aberta, é tão
pequeno ali dentro. O telefone ainda está quente ao toque.
Detesto usar um telefone
que acabou de dar notícias de morte.
Mas preciso, já que é o único telefone
em quilômetros, e um que pode
ouvir sem tomar partido.

Insiro as moedas e aguardo.
As pessoas no carro também aguardam.
Ele dá a partida no motor, depois desliga.
Para onde? Nenhum de nós é capaz
de imaginar. Sem saber onde
o próximo golpe poderá cair,
ou por quê. O telefone para de chamar
quando ela atende do outro lado.
Antes que eu consiga dizer duas palavras, o telefone
começa a gritar: “Eu já disse que acabou!
Está tudo terminado! Por mim
você pode muito bem ir pro inferno!”

Ponho o fone no gancho e passo a mão
pelo rosto. Fecho e abro a porta da cabine.
O casal no sedan abaixa os vidros
das janelas e observa, suas lágrimas pausadas
por um momento em face daquela distração.
Depois sobem os vidros de novo
e se recolhem no carro. Por algum tempo
não vamos a parte alguma.
Depois vamos embora.

Trad.: Cide Piquet

The phone booth

She slumps in the booth, weeping
Into the phone. Asking a question
or two, and weeping some more.
Her companion, an old fellow in jeans
and denim shirt, stands waiting
his turn to talk, and weep.
She hands him the phone.
For a minute they are together
in the tiny booth, his tears
dropping alongside hers. Then
she goes to lean against the fender
of their sedan. And listens
to him talk about arrangements.

I watch all this from my car.
I don’t have a phone at home, either.
I sit behind the wheel,
smoking, waiting to make
my own arrangements. Pretty soon
he hangs up. Comes out and wipes his face.
They get in the car and sit
with the windows rolled up.
The glass grows steamy as she
leans into him, as he puts
his arm around her shoulders.
The workings of comfort in that cramped, public place.

I take my small change over
to the booth, and step inside.
But leaving the door open, it’s
so close in there. The phone still warm to the touch
I hate to use a phone
that’s just brought news of death.
But I have to, it being the only phone
for miles, and one that might
listen without taking sides.

I put in coins and wait.
Those people in the car wait too.
He starts the engine then kills it.
Where to? None of us able
to figure it. Not knowing
where the next blow might fall,
or why. The ringing at the other end
stops when she picks it up.
Before I can say two words, the phone
begins to shout, “I told you it’s over!
Finished! You can go
to hell as far as I’m concerned!”

I drop the phone and pass my hand
across my face. I close and open the door.
The couple in the sedan roll
their windows down and
watch, their tears stilled
for a moment in the face of this distraction.
Then they roll their windows up
and sit behind the glass. We
don’t go anywhere for a while.
And then we go.

Joan Margarit – O ano em que ela morreu

Na fotografia em sépia
és jovem e sorri. Faz-me lembrar
as mulheres dos filmes de guerra
da minha infância:
barcos na neblina, trens noturnos
e grandes cidades sob o alarme aéreo.
Na lápide está escrito que ela se foi
no inverno de 44,
aos vinte anos, quando me apaixonava
pela sufocante escuridão
cruzada por um raio de luz, a heroína
dos sonhos de amor de minha meninice.
A dura pedra
tem uma cavidade com água de chuva
onde os pássaros vão beber quando,
de casaco e cabelos grisalhos
desgrenhados pelo vento,
o narrador se afasta.
Tem o mesmo sonho nos olhos, em uma cidade,
em um cinema onde agora está só.

Trad.: Nelson Santander

El año em que murió

En la fotografía color sepia
es joven y sonríe. Me recuerda
a las muchachas de las películas de guerra
de mi infancia:
barcos entre la niebla, trenes nocturnos
y grandes ciudades bajo la alarma aérea.
En la losa está escrito que murió
en el invierno del cuarenta y cuatro,
a los veinte años, cuando me enamoraba
desde la bochornosa oscuridad
cruzada por un foco, la heroína
de los sueños de amor de mi niñez.
La dura piedra
tiene un hueco con agua de lluvia
donde beberán los pájaros cuando,
abrigo largo y pelo gris
desordenado por el viento,
se aleje el narrador.
Tiene el mismo sueño en los ojos, en una ciudad,
en un cine donde ahora está solo.

Manuel António Pina – Corpo presente

Toda a casa suspendera
a respiração
incapaz de conter
tamanha desproporção,

e eu próprio desaparecera
algures na sala, entre a tua vida e a tua morte.
Atenderam o telefone
falando baixo,

temendo que regressasse
cada coisa do teu lugar
sem estar prontos ainda
para a tua solidão.

Faltava muito
para podermos perceber,
muitos passos para chegarmos
aonde sempre estivéramos:

mais perto do tédio do que da esperança,
da parte do que do todo,
vagueando ainda na tua ausência,
longe do céu e da ideia da morte.

Paulo Henriques Britto – Plaudite, amici

Seria muito bom saber sair de cena
sem fazer cenas, sem roubar a cena, sem
atropelar sequer um figurante. Pena
que nessas horas se improvisa, e que ninguém

respeita nada quando foge do roteiro.
Mesmo os maiores canastrões têm seu momento
de glória, de prima-donismo o mais rasteiro
e o mais justificável. Pois na vida há tempo

mesmo pras coisas mais ridículas, vexames
impensáveis, mas perfeitamente visíveis,
derramamentos nem um pouco cabralinos

mas necessários. (Quem não gostar, que reclame
a seu deus predileto – ex machina, inclusive –
um fim de comédia um pouco menos indigno.)

Nuno Júdice – É isto o amor

Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: “Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?” Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passamos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.

Luís García Montero – Resumo dos fatos

Falei com a morte por telefone
e recebi e-mails de amor que foram apagados
sem deixar uma única lágrima em papel amarelo.
Ninguém esqueça os tempos, mas ninguém se engane:
no final, apenas o amor e a morte importam.

Trad.: Nelson Santander

Resumen de los hechos

He hablado con la muerte por teléfono
y he recibido e-mails de amor que se borraron
sin dejar una lágrima de papel amarillo.
Nadie olvide los tiempos, pero nadie se engañe:
al final sólo importan el amor y la muerte.

Fernando Assis Pacheco – Respiração Assistida

Eu vi a morte
de noite – névoa branca –
entre os frascos do soro
rondar a minha cama

era um trasgo
e como tal metera-se
pelas frinchas; noutra versão
coando-se através
dos nós da madeira
ou noutra ainda
imitando à perfeição
o gorgolejar da água
nos ralos: eu tremia
covardemente enquanto
ela raspava a parede
com unhas muito lentas

eu vi? ouvi a morte?
com toda a probabilidade
e por instantes era ela – luz negra –
tentando cegar-me

Carlos Poças Falcão – A luz coada num pano negro

Lamenta-te, pois já não é alegre
o vento sobre os campos.
Não há descoberta nem transfiguração
quando o calendário vem com as primícias.

Lamenta-te, lamenta-te.
Já não tens a nudez certa
nem a fragrância antiga.

Paul Verlaine – Chanson D’Automne (em seis traduções)

Canção do Outono (Trad.: Alphonsus de Guimaraens)

Os soluços graves
Dos violinos suaves
Do outono
Ferem a minh’alma
Num langor de calma
E sono.

Sufocado, em ânsia,
Ai! quando à distância
Soa a hora,
Meu peito magoado
Relembra o passado
E chora.

Daqui, dali, pelo
Vento em atropelo
Seguido,
Vou de porta em porta,
Como a folha morta
Batido…

Canção do Outono (Trad.: Onestaldo de Pennafort)

Os longos sons
dos violões,
pelo outono,
me enchem de dor
e de um langor
de abandono.

E choro, quando
ouço, ofegando,
bater a hora,
lembrando os dias,
e as alegrias
e ais de outrora.

E vou-me ao vento
que, num tormento,
me transporta
de cá pra lá,
como faz à
folha morta.

Canção de Outono (Trad.: Guilherme de Almeida)

Estes lamentos
Dos violões lentos
Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
De sono.

E soluçando,
Pálido, quando
Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doidos
De outrora.

E vou à toa
No ar mau que voa.
Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
E morta.

Canção de Outono (Trad.: Paulo Mendes Campos)

Os longos trinos
Dos violinos
Do outono
Ferem minh’alma
Com uma calma
Que dá sono.

Ao ressoar
A hora, alvar,
Sufocado,
Choro os errantes
Dias distantes
Do passado.

E em remoinho,
O ar daninho
Me transporta
De cá pra lá,
De lá pra cá,
Folha morta.

~
Canção de Outono (Trad.: Nelson Ascher)

Violinos com
seu choro assom-
bram o outono
e eu, corpo mor-
to de torpor,
me abandono.

Quase sem ar,
desmaio ao soar
da hora enquanto,
lembrando em vão
os dias de então,
caio em pranto.

E o vento cruel
leva-me ao léu
pouco importa
aonde, em vaivém,
vago que nem
folha morta.

Outono (Trad. livre: José Miguel Wisnik)

Os soluços longos dos violões do outono
Ferem meu coração com um langor monótono
Chega de verão outros tons no chão é quando
Vão os sonhos vãos no coração desfolhando.

Os soluços longos dos violões do outono
Enchem todo meu coração de dor e abandono
Chega de verão tudo agora é sombra e sonho
E os sonhos vãos no coração desfolhando.

Chanson D’Automne

Les sanglots longs
Des violons
De l’automne
Blessent mon coeur
D’une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l’heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure.

Et je m’en vais
Au vent mauvais
Qui m’emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.