César Vallejo – Paris, Outubro de 1936

De tudo isto eu sou o único que parte.
Deste banco eu me vou, de meus calções,
de minha grande situação, de minhas ações,
de meu número dividido de lado a lado,
de tudo isto eu sou o único que parte.

Dos Campos Elísios ou ao dar a volta
à estranha viela de la Luna,
minha morte se aparta, vai-se minha cuna,
e, rodeada de gente, só, solta,
minha aparência humana se volta
e despacha suas sombras uma a uma.

E me afasto de tudo, porque tudo
permaneceu para criar uma fachada:
meu sapato, seu ilhó, e também seu lodo
e até o vinco agudo
da manga de minha camisa abotoada.

Trad.: Nelson Santander

César Vallejo – París, octubre 1936

De todo esto yo soy el único que parte.
De este banco me voy, de mis calzones,
de mi gran situación, de mis acciones,
de mi número hendido parte a parte,
de todo esto yo soy el único que parte.

De los Campos Elíseos o al dar vuelta
la extraña callejuela de la Luna,
mi defunción se va, parte mi cuna,
y, rodeada de gente, sola, suelta,
mi semejanza humana dase vuelta
y despacha sus sombras una a una.

Y me alejo de todo, porque todo
se queda para hacer la coartada:
mi zapato, su ojal, también su lodo
y hasta el doblez del codo
de mi propia camisa abotonada.

Maria do Rosário Pedreira – Ondas

Dei-te o meu corpo como quem estende
um mapa antes de viagem, para que nele
descobrisses ilhas e paraísos e aí pousasses
os dedos devagar, como fazem as aves
quando encontram o verão. Se me tivesses

tocado, ter-me-ia desmanchado nos teus braços
como uma escarpa pronta a desabar, ou
uma cidade do litoral a definhar nas ondas.

Mas, afinal, foste tu que desenhaste mapas
nas minhas mãos – tristes geografias,
labirintos de razões improváveis, tão curtas
linhas que a minha vida não teve tempo
senão para pressentir-se. Por isso, guardo

dos teus gestos apenas conjecturas, sombras,
muros e regressos – nem sequer feridas
ou ruínas. E, ainda assim, sem eu saber porquê,
as ondas ameaçam o lago dos meus olhos

Denise Emmer – Da Morte

Os mortos não sobem aos céus
nem elevam-se abstratos
tornam-se apenas retratos
lado a lado nas paredes.

Retrato do avô imóvel
austero e silencioso
do tio tuberculoso
que esquivo me espia.

A avó já está fria
mas me olha com ternura
tece uma colcha escura
para as bodas da família,

Mortos não sobem trilhas
de inconsistentes arranjos
não viram anjos nem brisas
nem cristos nem assombrados.

Sequer passam dos telhados
sequer vão a outros mundos
quando morrem se enraízam
e se alastram é pelos fundos.

Não lhes peço algum milagre
também não lhes rogo bênçãos
de dentro de seus quadrados
não podem mover o Tempo.

Quadros em salas quietas
emoldurados cinzentos
memória em fragmentos
— as vezes nem lhes percebo.

Roger Wolfe – O amor, suponho

Tenho andado a pensar em escrever
um poema de amor
dedicado à minha mulher,
a verdade é que não sei
por que mas fico
incrivelmente triste e os poemas
de amor não me têm saído
suficientemente bem – ou talvez eu nunca
me tenha esforçado de forma séria -;
suponho que o amor
deve ser
como esses raríssimos instantes
de felicidade
se por um momento
os vives
eu diria
que não é conveniente
andar a perder tempo
com poemas.

Trad.: Luiz Filipe Parrado

Ian Hamilton – Pai, Morrendo

Seus dedos, tufos de pelos de cobertor
Debaixo das unhas, estendem-se para tocar
As rosas ao lado da cama despetalando com o calor.
Caem pétalas brancas.
           Aprisionadas em suas mão
Elas escurecem, empapadas em suor, depois enrolam,
Desidratam-se e desmoronam.
           Hora após hora
Elas gotejam do ramo. Por fim
Ele está limpo e, quando você o toca, frio.
Você se inclina para observar os espinhos
Produzir brancas macerações em sua pele
Que sangram quando seu punho enrijece.
“Minha mão está em flor”, você diz. “Meu sangue
Anima este resto de pétalas. Vou viver.”

Trad.: Nelson Santander

Ian Hamilton – Father, Dying

Your fingers, wisps of blanket hair
Caught in their nails, extend to touch
The bedside roses flaking in the heat.
           White petals fall.
Trapped on your hand
They darken, cling in sweat, then curl,
Dry out and drop away.
           Hour after hour
They trikle from the branch. At last
It’s clean and, when you touch it, cold.
You lean Forward to watch the thorns
Pluck on your skin white pools
That bleed as your fist tightens.
“My hand’s in flower,” you say. “My blood
Excites this petal dross. I’ll live.”

Paulo Henriques Britto – Heraclitus meets Pascal

Ninguém se molha duas vezes
na mesma tempestade. Mudam
você, a água, nem é o mesmo,
na sua mão, o guarda-chuva;

muda o motivo pelo qual
você houve por bem molhar-se,
oferecendo ao temporal
– por assim dizer – a outra face;

não muda, porém, a consciência
de que os sapatos encharcados
e a calça manchada de lama

terão talvez efeito idêntico
ao que teria ter ficado
em casa, quietinho, na cama.

Manuel António Pina – A Canção dos Adultos

Parece que crescemos mas não.
Somos sempre do mesmo tamanho.
as coisas que à volta estão
é que mudam de tamanho.

Parece que crescemos mas não crescemos.
São as coisas grandes que há,
o amor que há, a alegria que há,
que estão a ficar mais pequenos.

Ficam de nós distantes
que às vezes já mal os vemos.
Por isso parece que crescemos
e que somos maiores que dantes.

Mas somos sempre como dantes.
Talvez até mais pequenos
quando o amor e o resto estão tão distantes
que nem vemos com estão distantes.

Então julgamos que somos grandes.
e já nem isso compreendemos.

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Rui Pires Cabral – Recomeço

O primeiro cigarro do dia é na varanda
quando faz sol: misteriosamente o terraço
do vizinho continua a concentrar a tristeza
do bairro inteiro. Mal acordado, juntas as linhas
que te permitem perceber quem és, onde estás,
o que terás de fazer a seguir. E a angústia
que te abraça é a memória mais antiga
que possuis, vem das casas de Bragança
e Moncorvo, já a conhecias antes de lhe seres
formalmente apresentado. Tu nunca quiseste
pertencer. Só à ponta da navalha. Só no fundo
do beco, encurralado. Meu Deus, que vocação
para o desassossego. Mas será um sinal de resistência
ou uma espécie de defeito anímico? Tanto faz
vamos, põe a cafeteira ao lume. E recomeça.

Francisco Brines – Os Verões

        A Carmen Marí

Foram longos e ardentes os verões!
Ficamos nus juntos ao mar,
e o mar ainda mais nu. Com os olhos,
e em corpos ágeis, praticamos
a mais prazerosa posse do mundo.

Soavam para nós as vozes iluminadas de lua,
e era a vida abrasadora e violenta,
ingratos com o sonho, fluíamos.
O ritmo sombrio das ondas
nos abrasava eternamente, e éramos apenas tempo.
Apagavam-se as estrelas ao amanhecer
e, com a luz que fria regressava,
furioso e delicado se iniciava o amor.

Hoje parece um engano que fôssemos felizes
ao modo imerecido dos deuses.
Que estranha e breve foi a juventude!

Trad.: Nelson Santander

Los Veranos

¡Fueron largos y ardientes los veranos!
Estábamos desnudos junto al mar,
y el mar aún más desnudo. Con los ojos,
y en unos cuerpos ágiles, hacíamos
la más dichosa posesión del mundo.

Nos sonaban las voces encendidas de luna,
y era la vida cálida y violenta,
ingratos con el sueño transcurríamos.
El ritmo tan oscuro de las olas
nos abrasaba eternos, y éramos solo tiempo.
Se borraban los astros en el amanecer
y, con la luz que fría regresaba,
furioso y delicado se iniciaba el amor.

Hoy parece un engaño que fuésemos felices
al modo inmerecido de los dioses.
¡Qué extraña y breve fue la juventud!

Abel Silva – O Poço

A moeda do Acaso
cai tão fundo
no Poço dos Destinos
que vivemos descolados
do viver do outro,
como num contrato de comportamento.
O milagre do viver nos entorpece.
Então a notícia da doença de um amigo,
o convite para a missa de um outro,
um susto, um alarme, uma suspeita
nos vareja no rosto uma aragem de morte.
Às vezes choramos,
ficamos desorientados
mas abrimos os olhos,
levantamos os ombros e seguimos em frente.
A gente é assim.
Como não guardo a esperança
de um encontro feliz
ao final das eras,
valorizo o tempo do aconchego,
abraço, beijo, conforto, aceito, sirvo.
Armo como posso a teia do afeto,
enquanto estamos perto
enquanto estamos vivos.