Augusto de Campos – Pós-Tudo

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William Butler Yeats – “No Second Troy” em duas traduções (+ revisão do poema)

Nenhuma Troia a mais – Trad.: Augusto de Campos

Por que culpá-la se ela encheu meus dias
De mágoa, ou se incitou às tropelias
Os ignorantes e jogou com vidas,
Pondo as vielas contra as avenidas,
Quando eles tinham ousadia e flama?
Como fugir a essa pulsão funesta
Que a nobreza fez simples como a chama?
Beleza como um arco tenso, raça
Estranha a uma era como esta,
E cruel, de tão alta e singular?
Que poderia ela contra a graça?
Que Troia a mais teria que incendiar?

 

Sem Segunda Troia – Trad.: Nelson Ascher

Devo culpá-la, pois tanto pesar
trouxe-me aos dias, ou porque ensinava
violência à gente rude e quis lançar
contra os grandes a plebe cuja raiva,
porém, não tinha muito de ousadia?
Por que amaria a paz se, de nobreza,
seu pensamento simplesmente ardia,
se, feito um arco teso, sua beleza,
de um tipo hoje incomum, era severa,
altiva e só? – Mas que outro desafogo
podia ela encontrar, sendo quem era,
sem mais nenhuma Troia em que por fogo?

Introdução a “No Second Troy”

Resumo:

O relacionamento de William Butler Yeats com a bela e desafiadora irlandesa Maud Gonne é uma das grandes histórias de amor da literatura do século 20. Ele era um poeta fechado e com tendências conservadoras; ela era uma atriz de espírito livre que não queria nada menos que uma revolução para o seu país. Talvez ele devesse conhecê-la melhor, mas ei!, isso é amor.

Yeats publicou “No Second Troy”, em 1916, na coletânea “Responsibilities and Other Poems”, depois dele haver pedido Gonne em casamento – e ser rejeitado – inúmeras vezes. (Ei, você tem que admirar sua persistência). Após persegui-la por mais de uma década e de ter dedicado muitos de seus poemas a ela, parece justo afirmar que Yeats era obcecado por ela.

Neste poema, no entanto, Yeats adota uma atitude um tanto severa com ela, como ao compará-la com a terrivelmente bela – e notoriamente maliciosa – Helena de Troia. Helena é uma personagem mitológica da Ilíada de Homero. Como Maud Gonne, Helena foi considerada uma das mais belas mulheres de seu tempo. Ela também foi, em parte, responsável por iniciar a Guerra de Tróia, o que acabou fazendo com que a grande cidade de Troia fosse incendiada. Muitas lendas a retratam como uma sonhadora que trocou seu marido Menelau por Páris, o belo mas covarde príncipe de Troia. Marido furioso + Exércitos Numerosos = Guerra de Tróia.

Ao comparar Maud Gonne com Helena de Troia, Yeats a está acusando de ser parcialmente responsável pela violência de uma Irlanda revolucionária, assim como Helena foi parcialmente responsável pela Guerra de Tróia. De acordo com “No Second Troy,” Maud “incitou às tropelias os ignorantes.”

Gonne sempre foi mais inflamada do que Yeats, e aprovava os esforços revolucionários mais radicais e violentos para garantir a independência da Irlanda da Grã-Bretanha, nas primeiras décadas do século 20. Em 1916, seu marido, John MacBride, participou da violenta “Revolta de Páscoa” contra os britânicos. Na esteira do levante, MacBride e muitos outros foram executados. Yeats não acreditava em rebeliões violentas, e posteriormente escreveu um de seus mais famosos e dolorosos poemas, “Páscoa 1916,” em que declarou: “A terrível beleza nasceu”.

Ok, basta de história. Tudo isso é apenas para dizer que Gonne foi uma presença inflamável na vida de Yeats, e suas emoções conflitantes sobre ela refletem-se neste brilhante poema. É um desastre fascinante, tudo bem, mas no seu estilo característico, Yeats consegue comprimir toda a sua paixão em um curto e controlado espaço. A terrível beleza, de fato.

Por que eu deveria me importar?

Ninguém gosta de histórias de amor simples. Duas pessoas se encontram, se apaixonam, se casam… blablablá. Que tédio. Precisamos de um pouco mais de complicação. Mais drama. Além disso, muitas histórias de amor não têm um final feliz.

O amor de W. B. Yeats por Maud Gonne é uma dessas histórias de amor não correspondido. A história em si já é fascinante o suficiente (em um dado momento, Yeats teria proposto casamento à filha de Gonne e de novo foi rejeitado!), mas quando você a mistura com política revolucionária, estamos como que diante de um jogo eletrizante. Amor e política é sempre uma combinação irresistível, seja entre Helena e Páris, Antonio e Cleópatra, Romeu e Julieta, ou Rick e Ilsa, em Casablanca.

“No Second Troy” expressa aquele momento de um atormentado caso de amor quando o amante não correspondido, farto de todos os jogos e manobras feitas por baixo do pano, finalmente descarrega todas as suas emoções em um rompante brutal de honestidade. Você quer saber o que eu realmente penso de você? Prepare-se … Você não pode fazer nada, mas observa tudo com a respiração suspensa.

O que Yeats realmente pensava de Gonne – pelo menos por volta de 1916, quando escreveu este poema – é que ela era uma mulher corajosa e devastadoramente bela. Ela também era uma amante cruel e uma ativista descaradamente irresponsável. Ela usava sua beleza e seus elevados ideais para convencer as pessoas menos nobres e inteligentes a fazer coisas que Yeats considerava muito imprudentes – como, por exemplo, se opor à força dos poderes das colônias britânicas. O amor de Yeats por Gonne e seu amor por seu país colidem de forma dramática, confundindo-o. No final, o seu amor de irlandês e sua não-violência ganharam o dia, e ele esteve perto de condenar Gonne através da comparação contundente com Helena de Troia.
Embora a luta pela independência na Irlanda possa ter acabado, nós suspeitamos que histórias de amor como aquela que inspirou este poema continuarão a ocorrer no contexto dos conflitos políticos de todo o mundo. Venha para a aula de história, fique para as censuras amargas de um amor atormentado. (in: https://www.shmoop.com/no-second-troy-yeats/ )

No second Troy

Why should I blame her that she filled my days
With misery, or that she would of late
Have taught to ignorant men most violent ways,
Or hurled the little streets upon the great,
Had they but courage equal to desire?
What could have made her peaceful with a mind
That nobleness made simple as a fire,
With beauty like a tightened bow, a kind
That is not natural in an age like this,
Being high and solitary and most stern?
Why, what could she have done being what she is?
Was there another Troy for her to burn?

John Keats – Ode sobre a Indolência

I

Numa certa manhã eu vi as três as figuras,
   Curvadas, de perfil, mãos juntas, uma a uma,
Seguindo atrás da outra, mudas e seguras,
   Sandálias suaves, vestes alvas, pés de pluma;
Como formas de mármore em alto-relevo
  Sobre uma urna, foram-se, ao girar a face
   Do vaso; mas voltando ao ângulo anterior,
Mostraram-se mais uma vez como as descrevo,
 E eram-me tão estranhas como se as achasse
   Numa ânfora de Fídias um pesquisador.

II

Como é possível, Sombras, que eu não as conheça,
  Máscaras mudas que se movem para mim?
Que plano silencioso tinham na cabeça
  Para a minha indolência arrebatar assim?
Era a hora madura e eu já me comprazia
  Na abençoada nuvem de ócio do verão.
   Pesado o olhar, a pulsação quase parada,
Os prazeres sem cor e a vida já vazia.
  Ah! por que não desaparecem e se vão,
   E me deixam em paz, sozinho, com meu – nada?

III

Uma terceira vez romperam minha paz as
  Figuras mudas; cada qual por um momento
Me olhou de frente, e eu só queria era ter asas
  Para segui-las e saber do seu intento;
A primeira, uma bela moça, era o Amor;
  A segunda, de rosto pálido e sem viço
   E olhos cansados, a Ambição que a tudo via.
A última, a que eu mais amo, e a quem o desfavor
  Persegue, era uma jovem com ar insubmisso;
   Essa era o meu demônio – a Poesia.

IV

Foram-se as três e eu só queria asas ainda;
  Loucura! O que é o Amor? Quem sabe onde ele mora?
Quanto à Ambição! – é desprezível, porque vinda
  De um coração pequeno, a febre de uma hora;
À Poesia! – não doa uma só alegria, –
  Ao menos para mim, – de dia imersa em suas
   Cismas; à noite, no ópio do seu tédio imenso;
Pudesse eu ter uma era livre de agonia,
  Sem conhecer jamais a mutação das luas
   Nem ouvir nunca a voz penosa do bom-senso!

V

E uma vez mais vieram; – ah! por que razão?
  Meu sono se adornava de secretos sonhos,
Minha alma era uma relva, flores pelo chão,
  Com sombras sugestivas e raios risonhos;
A névoa da manhã não me trazia chuva;
  Nas pálpebras de maio, só lágrimas prestes;
   Calor, botões em flor, um tordo ia cantar,
E da janela aberta eu via a vide e a uva;
  Sombras, a hora do adeus chegou; em suas vestes
   Nenhuma lágrima desceu do meu olhar.

VI

Adeus, meus três fantasmas! Não há quem me faça
  Erguer esta cabeça da relva e das flores.
Não quero ser a ovelha-guia de uma farsa,
  Nem seguirei uma dieta de louvores.
Voltem a ser figuras-máscaras de urna.
  Adeus! deixem morrer de tedio a minha mente.
   Visões? Já tenho a minha provisão noturna,
E outras, mais tênues, para as horas matinais.
  Retirem-se, de vez, do meu ser indolente,
   Para as nuvens dos céus, e não voltem jamais.

Trad.: Augusto de Campos

 

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Ode on Indolence

I

One morn before me were three figures seen,
With bowèd necks, and joinèd hands, side-faced;
And one behind the other stepp’d serene,
In placid sandals, and in white robes graced;
They pass’d, like figures on a marble urn,
When shifted round to see the other side;
They came again; as when the urn once more
Is shifted round, the first seen shades return;
And they were strange to me, as may betide
With vases, to one deep in Phidian lore.

II

How is it, Shadows! that I knew ye not?
How came ye muffled in so hush a mask?
Was it a silent deep-disguisèd plot
To steal away, and leave without a task
My idle days? Ripe was the drowsy hour;
The blissful cloud of summer-indolence
Benumb’d my eyes; my pulse grew less and less;
Pain had no sting, and pleasure’s wreath no flower:
O, why did ye not melt, and leave my sense
Unhaunted quite of all but—nothingness?

III

A third time pass’d they by, and, passing, turn’d
Each one the face a moment whiles to me;
Then faded, and to follow them I burn’d
And ached for wings, because I knew the three;
The first was a fair Maid, and Love her name;
The second was Ambition, pale of cheek,
And ever watchful with fatiguèd eye;
The last, whom I love more, the more of blame
Is heap’d upon her, maiden most unmeek,—
I knew to be my demon Poesy.

IV

They faded, and, forsooth! I wanted wings:
O folly! What is Love? and where is it?
And for that poor Ambition! it springs
From a man’s little heart’s short fever-fit;
For Poesy!—no,—she has not a joy,—
At least for me,—so sweet as drowsy noons,
And evenings steep’d in honey’d indolence;
O, for an age so shelter’d from annoy,
That I may never know how change the moons,
Or hear the voice of busy common-sense!

V

And once more came they by:—alas! wherefore?
My sleep had been embroider’d with dim dreams;
My soul had been a lawn besprinkled o’er
With flowers, and stirring shades, and baffled beams:
The morn was clouded, but no shower fell,
Tho’ in her lids hung the sweet tears of May;
The open casement press’d a new-leaved vine,
Let in the budding warmth and throstle’s lay;
O Shadows! ’twas a time to bid farewell!
Upon your skirts had fallen no tears of mine.

VI

So, ye three Ghosts, adieu! Ye cannot raise
My head cool-bedded in the flowery grass;
For I would not be dieted with praise,
A pet-lamb in a sentimental farce!
Fade softly from my eyes, and be once more
In masque-like figures on the dreamy urn;
Farewell! I yet have visions for the night,
And for the day faint visions there is store;
Vanish, ye Phantoms! from my idle spright,
Into the clouds, and never more return!

John Keats – Do Endymion

O que é belo há de ser eternamente
Uma alegria, e há de seguir presente.
Não morre; onde quer que a vida breve
Nos leve, há de nos dar um sono leve,
Cheio de sonhos e de calmo alento.
Assim, cabe tecer cada momento
Nessa grinalda que nos entretece
À terra, apesar da pouca messe
De nobres naturezas, das agruras,
Das nossas tristes aflições escuras,
Das duras dores. Sim, ainda que rara,
Alguma forma de beleza aclara
As névoas da alma. O sol e a lua estão
Luzindo e há sempre uma árvore onde vão
Sombrear-se as ovelhas; cravos, cachos
De uvas num mundo verde; riachos
Que refrescam, e o bálsamo da aragem
Que ameniza o calor; musgo, folhagem,
Campos, aromas, flores, grãos, sementes,
E a grandeza do fim que aos imponentes
Mortos pensamos recobrir de glória,
E os contos encantados na memória:
Fonte sem fim dessa imortal bebida
Que vem do céus e alenta a nossa vida.

From Endymion

A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quiet breathing.
Therefore, on every morrow, are we wreathing
A flowery band to bind us to the earth,
Spite of despondence, of the inhuman dearth
Of noble natures, of the gloomy days,
Of all the unhealthy and o’er-darkened ways::
Made for our searching: yes, in spite of all,
Some shape of beauty moves away the pall
From our dark spirits. Such the sun, the moon,
Trees old and young, sprouting a shady boon
For simple sheep; and such are daffodils
With the green world they live in; and clear rills
That for themselves a cooling covert make
Gainst the hot season; the mid forest brake,
Rich with a sprinkling of fair musk-rose blooms:
And such too is the grandeur of the dooms
We have imagined for the mighty dead;
All lovely tales that we have heard or read:
An endless fountain of immortal drink,
Pouring unto us from the heaven’s brink.

Byron e Keats: entreversos; traduções de Augusto de Campos – Campinas, SP; Editora da Unicamp, 2009. p. 168-169.

Lewis Carroll – Jaguadarte

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

“Foge do Jaguadarte, o que não morre!
Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Felfel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassurra!”

Ele arrancou sua espada vorpal
E foi atrás do inimigo do Homundo.
Na árvora Tamtam ele afinal
Parou, um dia, sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta,
Chegou o Jaguadarte, ôlho de fogo,
Sorrelfiflando através da floresta,
E borbulia um riso louco!

Um, dois! Um, dois! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!
Cabeça fere, corta, e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfante.

“Pois então tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!”
Êle se ria jubileu.

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

Trad.: Augusto de Campos

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Jabberwocky

Lewis Carroll

‘Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths outgrabe.

“Beware the Jabberwock, my son!
The jaws that bite, the claws that catch!
Beware the Jubjub bird, and shun
The frumious Bandersnatch!”

He took his vorpal sword in hand:
Long time the manxome foe he sought—
So rested he by the Tumtum tree,
And stood awhile in thought.

And, as in uffish thought he stood,
The Jabberwock, with eyes of flame,
Came whiffling through the tulgey wood,
And burbled as it came!

One, two! One, two! And through and through
The vorpal blade went snicker-snack!
He left it dead, and with its head
He went galumphing back.

“And hast thou slain the Jabberwock?
Come to my arms, my beamish boy!
O frabjous day! Callooh! Callay!”
He chortled in his joy.

‘Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths outgrabe.

Jules Laforgue – Spleen

Tudo é tédio. Manhã. Olho pela janela.

No alto, risca-se o céu no giz da chuva fria.
Em baixo, a rua. Sob a cerração sombria
Vultos deslizam na água turva de barrela.

Olho sem ver (até meu cérebro regela)
Maquinalmente sobre o vidro que embacia
Meu dedo faz rabiscos de caligrafia.
Bah! Saiamos. Quem sabe, alguma coisa bela.

Nenhum livro. Perfis estúpidos. Ninguém.
Fiacres, lama, e ainda a chuva nos telhados…
Enfim a noite, o gás, volto com pés pesados…

Janto, bocejo, leio, nada me convém…
Bah! Dormir. – Meia noite. Uma. É sem remédio.
Só eu não durmo, só. E tudo é tédio.

Trad.: Augusto de Campos

Emily Dickinson – Nesta Vida Tão Breve…

Rainer Maria Rilke – Conclusão

A Morte é grande.
Nós, sua presa,
vamos sem receio.
Quando rimos, indo, em meio à correnteza,
chora de surpresa
em nosso meio.

Trad.: Augusto de Campos

Jorge Luis Borges – Poema dos Dons

Ninguém rebaixe a lágrima ou censura
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Me deu mil livros e uma noite escura.

Desta terra de livros fez senhores
A olhos sem luz, que apenas se concedem
Sonhar com bibliotecas e com cores
De insensatos parágrafos que cedem

As manhãs ao seu fim. Em vão o dia
Lhes oferta seus livros infinitos,
Árduos como esses árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e sede (narra a história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu erro sem cessar pelos confins
Dessa alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, eras, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.

Lento nas sombras, a penumbra e o nada
Exploro com o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Como uma biblioteca refinada.

Algo, que nomear ninguém se atreva
Com a palavra acaso, arma os eventos;
Outro já recebeu noutros cinzentos
Ocasos os mil livros e esta treva.

Ao errar pelas lentas galerias
Chego a sentir com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, tendo dado
Os mesmos passos pelos mesmos dias.

Qual de nós dois escreve este poema
De um eu plural e de uma mesma mente?
Que importa o verbo que me faz presente
Se é uno e indivisível o dilema?

Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Em uma pálida poeira vaga
Que se parece ao sonho e ao olvido.

Trad.: Augusto de Campos

William Butler Yeats – Bizâncio

As imagens febris do dia se desfazem;
Os guardas imperiais, bêbados, jazem;
Noite sem som, sombras noctívagas se alongam
Da catedral e do seu gongo;
À luz de estrela ou lua um domo desmerece
Tudo o que é humanidade,
Mera complexidade
As veias, fúria e lama, em toda humana espécie.

Diante de mim a imagem, homem ou fantasma,
Mais sombra que homem, mais imagem que fantasma:
Pois a bobina de Hades, múmia desatada,
Solta as curvas da estrada;
Boca sem hausto, boca ressequida,
Chama boca sem som;
Eu louvo o sobre-humano;
Eu o nomeio vida-em-morte ou morte-em-vida.

Milagre, artesanato de ouro ou ave,
Mais milagre que artesanato ou ave,
Plantado em ramo de ouro halo- estrelado,
Canta alto, como os galos de Hades,
Ou pela luz amargurado infama,
Em metal esplendor,
Ave comum ou flor,
Complexidades naturais de sangue e lama.

À meia-noite o chão do Imperador se inflama.
Chamas que ninguém viu nascer, flamas sem chama,
Que a água não calma, chamas que se chamam
Às sangue-natas almas clamam.
Da fúria e da complexidade elas se alteiam
E morrem dessa dança,
Nesse transe em que as lança
A agonia das chamas que nunca incendeiam.

No dorso de um golfinho em sangue e lama,
Alma após alma! Irrompem na onda em flama,
Forjas do Imperador – o seu tesouro!
Mármores dançam no chão de ouro
E às fúrias da complexidade vêm domar,
Essas imagens que eram,
E outras imagens geram,
Golfinho-roto, gongo-amargurado mar.

Trad.: Augusto de Campos