Joan Margarit – Final

Teu enterro, na primavera: foi essa
a mensagem final de tua bondade.
Nada melhor em torno de ti do que o ruído
desta cidade e, em frente,
a eternidade do mar.
Que rude fachada a do Montjuïc: vai
até onde o pensamento deseja.

O carrinho sobe os caminhos de areia
e os automóveis o seguem,
fazendo crepitar o cascalho ao pé
dos ciprestes na tranquila praça pela manhã.
Já posso sentir o teu sorriso que passa
por entre as brancas aves no céu,
agora que tudo volta ao seu princípio,
como quando tu não estavas.
Restou um aroma de flores junto à parede,
entre verdes escuros e fugidios.
As canções do sol do teu silêncio
iluminam o ferro do amanhã.
O que digo sobre ti não faz mais sentido
do que a enferrujada fechadura
de uma porta que não abre para lado algum.

4 de junho de 2001

Trad.: Nelson Santander

FINAL

Tu entierro, en primavera: ése fue
el mensaje final de tu bondad.
Nada mejor en torno a ti que el ruido
de esta ciudad y, enfrente,
la eternidad del mar.
Qué ruda proa Montjuïc: alcanza
tan lejos como quiera el pensamiento.

El furgón va subiendo por caminos de arena
y tras él van los coches,
que hacen crujir al pie de los cipreses
la grava en la tranquila plaza de la mañana.
Siento ya tu sonrisa que atraviesa
los claros pájaros del aire,
ahora que todo vuelve a su principio,
como cuando no estabas.
Ha quedado un olor a flores junto al muro,
entre verdes oscuros y huidizos.
Las canciones del sol de tu silencio
iluminan el hierro del mañana.
Lo que digo de ti no tiene más sentido
que la herrumbrosa cerradura
de una puerta que no abre a ningún sitio.

4 de junio de 2001

Joan Margarit – Teu lobo

Mira-o antes de ir-te
e dize-lhe adeus: ele foi
preso outras vezes
sem jamais se render.
Contempla-o, amarrado
no pátio nevado:
a corrente lhe roça
o pescoço, já sem pelos,
do qual pendem ainda
cordas gastas,
as que outrora ele partiu
em outros cativeiros.

Ele dorme quase
o tempo todo.
Tem manchas escuras
como de quando cai
o reboco de uma parede.
Infestado de pulgas,
na rosada língua
que pende avidamente
há pretas estrias
deixadas pela idade.
A pelagem do ventre,
das patas e da cauda
foi endurecida por uma lama
de terra e excrementos.
Penduram-se nele uma par de
folhas amarelas e secas,
caídas de alguma bananeira:
como dois crisântemos
de seu outono que, tristes,
compreensivos, o adornam.

Hoje, antes de partir, tu
soltaste a coleira.
A coleira caiu
— uma serpente negra —
sobre a neve gelada.
Mas já não se move.
O lobo permanece
imóvel, silencioso,
no pátio em silêncio.

Trad.: Nelson Santander

TU LOBO

Míralo antes de irte
y dile adiós: estuvo
amarrado otras veces
sin rendirse jamás.
Contémplalo, sujeto
en el patio nevado:
la cadena le roza
el cuello ya sin pelo
del que cuelgan aún
cuerdas deshilachadas,
las que antaño rompió
en otros cautiverios.

Yace medio dormido
a casi todas horas.
Tiene manchas oscuras
como cuando se cae
el estuco de un muro.
Infestado de pulgas,
en la rosada lengua
que le cuelga con ansia
se ven rayas negruzcas
dejadas por la edad.
El pelaje del vientre,
las patas y la cola,
lo ha endurecido un barro
de tierra y excrementos.
Le cuelgan un par de hojas
amarillas y secas,
caídas de algún plátano:
como dos crisantemos
de su otoño que, tristes,
comprensivos, le adornan.

Hoy, tú, antes de irte,
le has abierto el candado.
La cadena ha caído
—una serpiente negra—
sobre la nieve helada.
Pero ya no se mueve.
El lobo se ha quedado
inmóvil, silencioso,
en el patio en silencio.

Joan Margarit – O dia depois da morte

Hoje te vi e levavas tuas muletas azuis,
feliz como sempre e protegida
por aquele jovem pai entre as tensas
cordas do enorme violoncelo da chuva.
Jamais tu e eu lembraremos
de termos sido pai e filha
neste mesmo pátio, onde o loureiro
molhado balança ao anoitecer.

Trad.: Nelson Santander

EL DÍA DESPUÉS DE LA MUERTE

Hoy te he visto y llevabas tus muletas azules,
contenta como siempre y protegida
por aquel joven padre entre las tensas
cuerdas del cello enorme de la lluvia.
Jamás ni tú ni yo recordaremos
haber sido un padre y una hija
en este mismo patio, donde el laurel mojado
se está meciendo al anochecer.

Joan Margarit – Um pobre instante

A morte nada mais é do que isto: o quarto,
a luminosa tarde na janela,
e este toca-fitas na mesinha
– tão silencioso como o teu coração –
com todas as tuas canções tocadas para sempre.
Teu último suspiro segue dentro de mim
ainda em suspenso: não deixo que acabe.
Sabes qual é, Joana, o próximo concerto?
Ouves como brincam as crianças
no pátio da escola?
Sabes, ao final da tarde,
como será esta noite,
noite de primavera? As pessoas virão.
A casa acenderá todas as suas luzes.

Trad.: Nelson Santander

UN POBRE INSTANTE

La muerte no es más que esto: el dormitorio,
la luminosa tarde en la ventana,
y este radiocasete en la mesita
tan apagado como tu corazón
con todas tus canciones cantadas para siempre.
Tu último suspiro sigue dentro de mí
todavía en suspenso: no dejo que termine.
¿Sabes cual es, Joana, el próximo concierto?
¿Oyes como en el patio de la escuela
están jugando los niños?
¿Sabes, al acabar la tarde,
cómo serà esta noche,
noche de primavera? Vendrá gente.
La casa encenderá todas sus luces.

Joan Margarit – Última caminhada

Já não comia. Caíam meus cabelos.
Ficava o dia todo de olhos fechados.
Mas saí para a varanda de madrugada
e alguém da calçada, sob uma árvore,
falou-me com uma voz como a de minha mãe,
que dormia em sua cama ao lado da minha.
De repente, não estava mais cansada
e desci sem muletas até a rua.
Nunca fora capaz de andar assim.
Senti minha alegria voltando:
caiu a doença como uma pele
suada, deixada ali na rua.
Nunca havia me sentido tão leve.
Olhei para trás, para minha varanda,
o corrimão como uma partitura.
Disse adeus ao meu pai e à minha mãe.

A vida me escolheu para o seu amor.
E a morte também.

Trad.: Nelson Santander

ÚLTIMO PASEO

Ya no comía. Se me caía el cabello.
Estaba todo el día con los ojos cerrados.
Pero salí al balcón de madrugada
y alguien desde la acera, bajo un árbol,
me habló con una voz como la de mi madre,
que dormía en su cama junto a mí.
De repente no estaba ya cansada
y bajé sin muletas a la calle.
Nunca había podido andar así.
Sentí que me volvía la alegría:
cayó la enfermedad como una piel
sudorosa, dejada allí en la calle.
Nunca pude sentirme tan ligera.
Miré hacia atrás, a mi balcón,
la baranda como una partitura.
Dije adiós a mi padre y a mi madre.

La vida me eligió para su amor.
También la muerte.

Joan Margarit – Mari

Ela te acompanhou por muito tempo,
todas as tardes, na natação e na escola.
Foi tua amiga e também a confidente
daquela dolorosa adolescência
de lua de hospital e das tardes azuis
da lenta juventude. Foi a tua Mari,
as últimas visitas, quando teus olhos
pesavam-te interiormente como a morte
que apagou todo o brilho por trás das frias
vidraças embaçadas de passado.
Tu e Mari, teu sorriso e o sorriso dela,
água morna, o odor dos vestiários,
tu nadando, nadando para a morte.
Agora Mari o sabe e despede-se de ti
olhando para suas duas filhas.
Mari que, grávida,
recusou-se a fazer qualquer exame
porque ela jamais se preocupou
em dar à luz uma criança como tu.

Trad.: Nelson Santander

MARI

Ella te acompañó durante mucho tiempo
a nadar y a la escuela cada tarde.
Fue tu amiga y también la confidente
de aquella dolorosa adolescencia
de luna de hospital y azules tardes
de lenta juventud. Era tu Mari,
sus últimas visitas, con tus ojos
pesándote hacia dentro por la muerte
que apagó todo el brillo tras los fríos
cristales empañados del ayer.
Tú y Mari, tu sonrisa y su sonrisa,
agua tibia, el olor de los vestuarios,
tú nadando, nadando hacia la muerte.
Ahora Mari lo sabe y te despide
mirando a sus dos hijas.
Mari, que, embarazada,
se negó a someterse a prueba alguna
porque a ella jamás le preocupó
dar a luz a una niña como tú.

Joan Margarit – Súplica

Desta manhã invernal, morna e aprazível,
por favor, não te vás.
Fica submersa neste pátio
como se houvesses naufragado
dentro de nossa vida.
Sob o loureiro, entre as aspidistras
de folhas românticas, verdes e largas,
por favor, não te vás, não te vás.

Tudo está preparado para ti.
Fica, por favor, e não te vás.
Diz-me se te lembras: preciso de
algumas palavras com a clara e profunda
voz da ausência para perguntar-te
sobre a fugacidade
de tua vitória sobre o nunca mais.
Mas te calas, descansas em teu ontem,
um leito de tristeza fulgurante.

Encerraste-te por oito meses
no casulo da escuridão,
e agora, horrorizada pela luz,
surge batendo as asas a furiosa
e pálida mariposa da morte.
Mas, se estás morrendo, ainda vives,
e faço irromper a última alegria
em teu rosto cansado enquanto tomo
entre as minhas tuas pequenas mãos.
E repito para mim mesmo:
morrer ainda é viver.
Desta manhã invernal, morna e aprazível,
por favor, não te vás, não te vás.

Trad.: Nelson Santander

SÚPLICA

De esta invernal mañana, amable y tibia,
por favor, no te vayas.
Quédate sumergida en este patio
como si hubieses naufragado
dentro de nuestra vida.
Bajo el laurel, entre las aspidistras
de románticas, verdes y anchas hojas,
por favor, no te vayas, no te vayas.

Todo está preparado para ti.
Quédate, por favor, y no te vayas.
Dime si lo recuerdas: necesito
unas palabras con la clara y honda
voz de la ausencia para preguntarte
por la fugacidad
de tu victoria sobre el nunca más.
Pero callas, descansas en tu ayer,
un lecho de tristeza fulgurante.

Te has ido encerrando durante ocho meses
en el capullo de la oscuridad,
y ahora, horrorizada por la luz,
surge aleteando la furiosa,
pálida mariposa de la muerte.
Pero, si estás muriéndote, aún vives,
y hago estallar la última alegría
de tu rostro cansado mientras tomo
entre las mías tus pequeñas manos.
Y me repito:
morirse todavía es vivir.
De esta invernal mañana, amable y tibia,
por favor, no te vayas, no te vayas.

Joan Margarit – Pilhagem

Hoje és outra.
A morte, como um vento do deserto,
sopra e abandona teu rosto
ressecado pela morfina.
Passa uma andorinha com seu rápido voo
e reluz ao cruzar a luz laranja
da janela aberta de teu quarto.
Talvez com teu voo também chegues
ao claro terraço onde tua voz risonha
prateava o crepúsculo. Foste-te e só resta
um corpo que uma pilhagem devastou
e que eu amo agora, assim como amei a ti.

Trad.: Nelson Santander

SAQUEO

Hoy eres otra.
La muerte, como un viento del desierto,
sopla y te deja el rostro
seco por la morfina.
Pasa una golondrina con su rápido vuelo
y reluce al cruzar la luz naranja
de la ventana abierta de tu cuarto.
Puede que con tu vuelo también llegues
a la clara terraza donde tu voz risueña
plateaba el crepúsculo. Te has ido y sólo queda
un cuerpo al que un saqueo ha devastado
y al que amo ahora, igual que te amé a ti.

Joan Margarit – Mãe e filha

Hoje tuas mãos são todo o passado dela:
há trinta anos de amor no fundo de tuas palmas.
Velaste-a durante toda a noite:
deitas-te na cama ao lado dela,
teu peito quente contra suas costas,
seus cansados cabelos em teu rosto.
Tu a abraças murmurando em seu ouvido
e, enquanto isso, a acaricias.
São as últimas noites, e sentes o calor
de seu esgotado corpo que conheces tão bem.
Aprenderás a cuidar dela na morte.
Ela sempre foi uma menina: deves velar seu sono,
que se parece cada vez mais com
a profunda sombra da alegria
para onde escorre entre tuas mãos.

Trad.: Nelson Santander

MADRE E HIJA

Hoy tus manos son todo su pasado:
hay treinta años de amor al fondo de tus palmas.
La has velado a lo largo de la noche:
te tiendes en la cama junto a ella,
tu pecho cálido contra su espalda,
sus cansados cabellos en tu rostro.
La abrazas murmurándole al oído
y, mientras, la acaricias.
Son las últimas noches, y sientes el calor
de su cuerpo agotado que conoces tan bien.
Aprenderás a cuidarla en la muerte.
Siempre ha sido una niña: debes velar su sueño,
que se va pareciendo, más y más,
a la profunda sombra de alegría
por donde se desliza entre tus manos.

Joan Margarit – Água

Poderíamos falar da água ou da menina,
porque a água e a menina permanecem
juntas na minha memória.
A menina é a água, é a liberdade
de um dorso que tem,
sob a pele, a rigidez de um tirante.
A ternura da água salvou suas pernas débeis:
vejo novamente o azul das piscinas
na temperatura de sua alma,
tão distantes agora nos invernos
que se vão desfazendo na memória.
Piscinas onde nadam suas lembranças.
Resta-me o mar de ferro em S’Aucanada,
com conchas brancas como joias perdidas
em uma luz de pedras sob a água.
E o mar definitivo, tempestuoso. Olhos vermelhos
por trás dos óculos escuros, dizendo:
a água foi sua liberdade, e agora
é o espelho que no-la devolve.

Trad.: Nelson Santander

AGUA

Podríamos hablar del agua o de la chica,
porque el agua y la chica permanecen
juntas en mi memoria.
La chica es agua, es la libertad
de una espalda que tiene,
bajo la piel, la rigidez de un ancla.
La ternura del agua salvó sus piernas débiles:
vuelvo a ver el azul de las piscinas
a la temperatura de su alma,
tan lejanas ahora en los inviernos
que se van deshaciendo en la memoria.
Piscinas donde nada su recuerdo.
Me queda el mar de hierro en S’Aucanada,
con caracoles blancos como joyas perdidas
en una luz de piedras bajo el agua.
Y el mar final, ventoso. Ojos enrojecidos
tras las gafas de sol, que van diciendo:
el agua fue su libertad, y ahora
es el espejo que nos la devuelve.