Stephen Dunn – Sob a calçada

Sussurros ali se acumulam, más notícias
do nosso subconsciente,
lágrimas que escorreram
pelo interior das faces,
desculpas que ficaram presas
em nossas gargantas.

Tanto foi reprimido,
tanto se infiltrou pelas
solas dos nossos sapatos,
que metade de nossas vidas está sob a calçada.
Sente-se o profundo tumulto
que está sempre em curso.

Na primavera, pequenas explosões.
Sinais. É por isso que
a calçada precisa ser repavimentada.
Contratamos alguém para fazê-lo por nós,
nossos corpos tensos observando das janelas.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Beneath the Sidewalk

Whispers collect there, the bad news
from our subconscious,
tears that have dripped down
the inside of faces,
apologies that have gotten lost
in all of our throats.

So much has been held in,
so much has seeped through
the soles of our shoes,
that half our lives are beneath the sidewalk.
We sense the deep riot
that is always going on.

In spring there are small explosions.
Signs. This is why
the sidewalk must be repaved.
We hire someone to do it for us,
our tight bodies watching from windows.

Paulo Henriques Britto – de “Vers de circonstance”

I. Imunidade de Rebanho

A estupidez é sua própria recompensa.
Graças a ela, o mundo faz sentido,
um só, que é fácil de identificar.
E só o fácil satisfaz a quem não pensa.

Pensar é coisa trabalhosa. A ignorância
é o sumo bem dos cidadãos de bem,
é a verdadeira marca dos eleitos.
Ter sucesso é não ter que saber. Saber cansa,

e o objetivo central de qualquer existência
só pode ser não se cansar. Olhai
as vacas do campo: não lhes faz falta a ciência,

pastam em plena bem-aventurança,
sem que nenhuma antevisão do matadouro
perturbe a santa paz da ruminança.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 10/07/2020

Maria do Rosário Pedreira – [Quem se afasta do mundo deixa a quem fica]

                                                          para José Luís Peixoto

Quem se afasta do mundo deixa a quem fica
um rasto de perguntas. Mas eu vi a morte dançar
tantas vezes no lago dos teus olhos que não pergunto
pelos teus passos à lama dos caminhos nem
pelos teus sonhos ao côncavo da cama. Quando

partiste, a solidão ficou nas coisas todas – no prato
que ia por vício para a mesa mas voltava vazio;
nas roupas escuras; nas sardinheiras secas; na dor
embrutecida do cão cego a ganir toda a noite à porta
do teu quarto; na casa fria; no livro aberto

ao meio no tapete (e que ninguém lerá, porque divide
a tua vida entre o que foi e o que podia ter sido se deus
fosse mais deus do que diziam); e ainda neste rosto
que me deste – e que é o teu no meu envelhecido.

A tua morte foi como um espelho partido contra o verão;
e nenhum vento que atravessasse o mundo varreria
de mim os seus estilhaços. Por isso, perguntar não mais
seria do que tecer uma armadilha para as memórias

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Wendell Berry – De “Sabbaths” (2001)

[…]

III

Peça ao mundo que revele sua quietude —
não o silêncio das máquinas quando cessam,
mas a verdadeira quietude onde os cantos das aves,
as árvores, os sinos-das-sombras, os caracóis, as nuvens, as tempestades
se tornam o que são – e nada além disso.

[…]

V

O vento do outono chegou.
Está por toda parte. Move
cada folha de cada
árvore. É o único movimento
do rio. As folhas verdes
se cansam de sua cor.
Agora também o entardecer paira no ar.
Os falcões vívidos do dia
se recolhem. As corujas despertam.
Pequenas criaturas morrem porque
criaturas maiores têm fome.
Quão superior a esta
humana confusão de ganância
e fé cega, sangue e fogo.

VI

A pergunta diante de mim, agora que
estou velho, não é como estar morto,
– disso já sei o suficiente, por prática –
mas como estar vivo, como estas gastas
colinas ainda contam, e certas telas
de Cézanne, e esta humilde
curruíra cantante, que crê estar viva
para sempre, neste instante – e talvez esteja.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 08/07/2020

From “Sabbaths” (2001)

[…]

III

Ask the world to reveal its quietude —
not the silence of machines when they are still,
but the true quiet by which birdsongs,
trees, bellworts, snails, clouds, storms
become what they are, and are nothing else.

[…]

V

The wind of the fall is here.
It is everywhere. It moves
every leaf of every
tree. It is the only motion
of the river. Green leaves
grow weary of their color.
Now evening too is in the air.
The bright hawks of the day
subside. The owls waken.
Small creatures die because
larger creatures are hungry.
How superior to this
human confusion of greed
and creed, blood and fire.

VI

The question before me, now that I
am old, is not how to be dead,
which I know from enough practice,
but how to be alive, as these worn
hills still tell, and some paintings
of Paul Cézanne, and this mere
singing wren, who thinks he’s alive
forever, this instant, and may be.

Sharon Olds – Meu filho, o homem

De repente, seus ombros ficam muito mais largos,
como Houdini expandia seu corpo
enquanto o acorrentavam. Parece que foi ontem
que eu o ajudava a vestir o pijama,
guiava suas pernas para o interior dourado,
fechava o zíper e o jogava para cima,
pegando-o no ar. Não consigo imaginá-lo
não sendo mais criança, e sei que devo me preparar,
vencer meu medo dos homens agora que meu filho
vai se tornar um. Não era isso
que eu tinha em mente quando ele irrompeu de mim
como um baú selado atravessando o gelo do Hudson,
quebrou o cadeado, soltou as correntes,
e surgiu em meus braços. Agora ele me olha
do mesmo jeito que Houdini estudava uma caixa
em busca da saída, depois sorria e se deixava algemar.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

My Son the Man

Suddenly his shoulders get a lot wider,
the way Houdini would expand his body
while people were putting him in chains. It seems
no time since I would help him to put on his sleeper,
guide his calves into the gold interior,
zip him up and toss him up and
catch his weight. I cannot imagine him
no longer a child, and I know I must get ready,
get over my fear of men now my son
is going to be one. This was not
what I had in mind when he pressed up through me like a
sealed trunk through the ice of the Hudson,
snapped the padlock, unsnaked the chains,
and appeared in my arms. Now he looks at me
the way Houdini studied a box
to learn the way out, then smiled and let himself be manacled.

Eamon Grennan – Uma manhã

Procurando pedras raras, dei com a lontra morta
apodrecendo na linha da maré, e carreguei pelo resto do dia o odor desta brutal
despedida. Aquele som lancinante e agudo do ostraceiro
ecoava pela enseada rochosa
onde um cormorão se alimentava e submergia na baía
e de onde uma garça-real alçou voo de um rochedo onde estivera invisível,
pairou um tempo, e pousou outra vez – um hieróglifo
ou apenas a longevidade refletindo sobre si mesma
entre o céu se encobrindo e o mar levemente encapelado.

Foi na manhã seguinte ao seu sonho de morrer, de ser acolhido
e ouvir que não importava. Uma borboleta ziguezagueou sobre
as pedras acetinadas pelas ondas, e ao me virar
para subir de volta à estrada, um casal numa van azul estava
apreciando seus cigarros após o café da manhã (aroma
azul de fumaça, o denso aroma escuro de café fresco),
conversando em vozes baixas, um respondendo ao outro,
com o rádio dando as notícias do dia atrás deles. Fazia calor.
Tudo parecia em paz. Eu podia sentir o sol emergindo da água.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 06/07/2020

One Morning

Looking for distinctive stones, I found the dead otter
rotting by the tideline, and carried all day the scent of this savage
valediction. That headlong high sound the oystercatcher makes
came echoing through the rocky cove
where a cormorant was feeding and submarining in the bay
and a heron rose off a boulder where he’d been invisible,
drifted a little, stood again – a hieroglyph
or just longevity reflecting on itself
between the sky clouding over and the lightly ruffled water.

This was the morning after your dream of dying, of being held
and told it didn’t matter. A butterfly went jinking over
the wave-silky stones, and where I turned
to go up the road again, a couple in a blue camper sat
smoking their cigarettes over their breakfast coffee (blue
scent of smoke, the thick dark smell of fresh coffee)
and talking in quiet voices, first one then the other answering,
their radio telling the daily news behind them. It was warm.
All seemed at peace. I could feel the sun coming off the water.

Michael Donaghy – O presente

No presente, há apenas uma lua,
embora outra surja refletida em cada lagoa.

Mas reluzindo no lago escuro, o disco brilhante
percebido pelo astrofísico e pelo amante,

tem milissegundos de idade. E mesmo essa luz
é sete minutos mais antiga que sua fonte.

E as estrelas que julgamos ver em noites sem lua
há muito se extinguiram. E claro que

este exato momento, enquanto lê este verso,
literalmente se foi antes que você se dê conta.

Esqueça o aqui e agora. Não temos tempo
além deste artifício de prazer e engenho.

Dê-me então este presente: sua mão na minha,
e vivamos nossas vidas dentro delas.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Present

For the present there is just one moon,
though every level pond gives back another.

But the bright disc shining in the black lagoon,
perceived by astrophysicist and lover,

is milliseconds old. And even that light’s
seven minutes older than its source.

And the stars we think we see on moonless nights
are long extinguished. And, of course,

this very moment, as you read this line,
is literally gone before you know it.

Forget the here-and-now. We have no time
but this device of wantonness and wit.

Make me this present then: your hand in mine,
and we’ll live out our lives in it.

David Mourão-Ferreira – Soneto do cativo

Se é sem dúvida Amor esta explosão
De tantas sensações contraditórias;
A sórdida mistura das memórias,
Tão longe da verdade e da invenção;

O espelho deformante; a profusão
De frases insensatas, incensórias;
A cúmplice partilha nas histórias
Do que os outros dirão ou não dirão;

Se é sem dúvida Amor a cobardia
De buscar nos lençóis a mais sombria
Razão de encantamento e de desprezo;

Não há dúvida, Amor, que te não fujo
E que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
Tenho vivido eternamente preso!

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 04/07/2020

Sharon Olds – A promessa

Depois do segundo drinque no restaurante,
de mãos dadas sobre a mesa vazia,
estamos novamente nessa, renovando nossa promessa
de matar um ao outro. Vocês bebe gim,
bagas de zimbro azul-noturno
se dissolvendo em seu corpo, eu bebo Fumé1,
degustando seu aroma terroso e defumado, estamos
ocupando a terra, já somos parte do solo,
e onde quer que estejamos, também estamos em nossa
cama, encaixados, nus, colados
um ao outro, meio desfalecidos
depois do amor, flutuando
de um lado para o outro através da fronteira da consciência,
nossos corpos leves, abraçados. Sua mão
se contrai sobre a mesa. Você tem medo
de que eu me acovarde. O que você não quer
é ficar deitado em uma cama de hospital por um ano
depois de um derrame, sem conseguir
pensar ou morrer, você não quer
ficar preso a uma cadeira como uma avó empertigada,
praguejando. O salão está escuro ao nosso redor,
globos de marfim, cortinas rosa,
amarradas na cintura – e lá fora,
um crepúsculo de verão leve, luminoso e
altivo. Digo-lhe que você não
me conhece se pensa que não sou capaz
de matá-lo. Pense em como flutuamos juntos,
olho no olho, mamilos nos mamilos,
sexo no sexo, metades de uma criatura
subindo até a crista da matéria
e além – você me conhece da sala de partos brilhante
e salpicada de sangue, se um leão
tivesse você entre as mandíbulas, eu o atacaria, se os cordames
que atam sua alma são seus próprios pulsos, eu os cortarei.

Trad.: Nelson Santander

  1. A autora provavelmente se refere ao Pouilly-Fumé, um tipo de vinho branco seco, produzido na região de Pouilly-sur-Loire, no departamento de Nièvre, França. O nome “Pouilly” é uma abreviação de Pouilly-sur-Loire, a aldeia de onde os vinhos vêm, e “Fumé” é uma abreviação de Blanc Fumé, que é o apelido local para Sauvignon Blanc. ↩︎

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Promise

With the second drink, at the restaurant,
holding hands on the bare table,
we are at it again, renewing our promise
to kill each other. You are drinking gin,
night-blue juniper berry
dissolving in your body, I am drinking Fume,
chewing its fragrant dirt and smoke, we are
taking on earth, we are part soil already,
and wherever we are, we are also in our
bed, fitted, naked, closely
along each other, half passed out
after love, drifting back
and forth across the border of consciousness,
our bodies buoyant, clasped. Your hand
tightens on the table. You’re a little afraid
I’ll chicken out. What you do not want
is to lie in a hospital bed for a year
after a stroke, without being able
to think or die, you do not want
to be tied to a chair like a prim grandmother,
cursing. The room is dim around us,
ivory globes, pink curtains,
bound at the waist – and outside,
a weightless, luminous, lifted-up
summer twilight. I tell you you do not
know me if you think I will not
kill you. Think how we have floated together
eye to eye, nipple to nipple,
sex to sex, the halves of a creature
drifting up to the lip of matter
and over it – you know me from the bright, blood-
flecked delivery room, if a lion
had you in its jaws I would attack it, if the ropes
binding your soul are your own wrists, I will cut them.

William Butler Yeats – Leda e o cisne

Súbito, um baque: as grandes asas brancas
Pousam sobre a jovem, e a agarram com jeito,
As patas negras lhe afagam as ancas
E a estreitam, impotente, contra o peito.

Com dedos trêmulos, como afastar
Das coxas fracas o esplendor plumado?
E como não sentir a palpitar
O estranho coração, desabalado?

Um espasmo ― e eis que se gera um novo ser,
O muro rompido, a torre incendiadas
E Agamêmnon morto.
        Ali, fremente,
Pelo poder brutal aprisionada,
Terá ela apreendido o seu saber
Antes que a solte o bico indiferente?

Trad.: Paulo Henriques Britto

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 02/07/2020

Leda and the swan

A sudden blow: the great wings beating still
Above the staggering girl, her thighs caressed
By the dark webs, her nape caught in his bill,
He holds her helpless breast upon his breast.

How can those terrified vague fingers push
The feathered glory from her loosening thighs?
And how can body, laid in that white rush,
But feel the strange heart beating where it lies?

A shudder in the loins engenders there
The broken wall, the burning roof and tower
And Agamemnon dead.
        Being so caught up,
So mastered by the brute blood of the air,
Did she put on his knowledge with his power
Before the indifferent beak could let her drop?

1923