Tess Gallagher – Paro de escrever o poema

Paro de escrever o poema*
para dobrar as roupas. Não importa quem vive
ou quem morre, continuo sendo mulher.
Sempre terei muito o que fazer.
Cinjo as mangas da camisa dele
unindo-as. Nada pode deter
nosso afeto. Voltarei a ser
uma mulher. Mas por enquanto
há uma camisa, uma enorme camisa,
em minhas mãos, e, em algum lugar, uma garotinha
ao lado de sua mãe
observando para aprender como se faz.

Trad.: Nelson Santander

*N. do T.: O poema “I Stop Writing the Poem”, de Tess Gallagher, foi escrito em 1992 e faz parte de seu livro de poemas Moon Crossing Bridge. Embora sujeito a interpretações variadas, algumas fontes sugerem uma conexão entre este poema e a perda do marido de Gallagher, Raymond Carver (contista e poeta consagrado, já publicado no blog). Gallagher, através de sua poesia, estaria expressando o luto pela partida de Carver. Em uma resenha de Moon Crossing Bridge da Publishers Weekly, alguns poemas desta coleção são apontados por causarem um impacto no leitor “mais por causa do que está por trás deles do que por causa do que mostra”. Esse parece ser o caso de “I Stop Writing the Poem”, onde Gallagher aborda a continuidade das atividades cotidianas enquanto transmite a dor subjacente à normalidade dessas ações.

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I stop writing the poem

I stop writing the poem
to fold the clothes. No matter who lives
or who dies, I’m still a woman.
I’ll always have plenty to do.
I bring the arms of his shirt
together. Nothing can stop
our tenderness. I’ll get back to being
a woman. But for now
there’s a shirt, a giant shirt
in my hands, and somewhere a small girl
standing next to her mother
watching to see how it’s done.

Joseph Stroud – Lendo Kaváfis sozinho na cama

Eu também me lembro do passado, meu quarto à luz de velas,
e da noite em que ela entrou e tocou meu rosto com o dela
com boca, língua e lábios,
da noite no pomar, do aroma das frutas,
seus seios – lembra, corpo?* – aquele quarto,
lembra? – nossos gritos, as velas bruxuleantes?

Trad.: Nelson Santander

* N. do T.: “Reading Cavafy Alone In Bed” faz referência ao poema “Lembra, corpo…” de Konstantinos Kaváfis, um dos mais conhecidos poetas gregos modernos. A citação é uma evocação lírica do tema da memória e da intimidade, presente tanto na obra de Kaváfis quanto na de Stroud.

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 23/06/2019

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Reading Cavafy Alone In Bed

I, too, remember the past, my room lit by candles,
and the night she entered and touched my face
with her face, with mouth and tongue and lips,
in the orchard night, in the odor of fruit,
her breasts — remember, body? — that room,
remember? — our cries, the flickering candles?

Sharon Olds — Amor verdadeiro

No meio da noite, quando nos levantamos
depois de fazer amor, nos olhamos
em completa sintonia, sabemos plenamente
o que o outro tem feito. Ligados um ao outro
como alpinistas descendo uma montanha,
atados pelo vínculo da sala de partos,
vagamos pelo corredor até o banheiro, mal
conseguindo andar, cambaleio pelo ar granulado
e sem sombra, e de olhos fechados
sei onde você está, unidos por enormes
fios invisíveis, nossos sexos
silenciados, exaustos, esmagados, o corpo
inteiro um sexo — certamente este
é o momento mais abençoado de minha vida,
nossos filhos dormindo em suas camas, cada destino
como um veio mineral duradouro
ainda não descoberto. Na noite,
sento-me no vaso sanitário, você em algum lugar no quarto,
abro a janela e a neve caiu em um
monte íngreme contra a vidraça,
olho para cima, para ela,
uma parede de cristais congelados, silenciosa
e cintilante, chamo-o discretamente,
você vem, segura minha mão e eu digo
que não consigo ver além dela. Não consigo ver além dela.

Trad.: Nelson Santander

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True love

In the middle of the night, when we get up
after making love, we look at each other in
complete friendship, we know so fully
what the other has been doing. Bound to each other
like mountaineers coming down from a mountain,
bound with the tie of the delivery-room,
we wander down the hall to the bathroom, I can
hardly walk, I wobble through the granular
shadowless air, I know where you are
with my eyes closed, we are bound to each other
with huge invisible threads, our sexes
muted, exhausted, crushed, the whole
body a sex — surely this
is the most blessed time of my life,
our children asleep in their beds, each fate
like a vein of abiding mineral
not discovered yet. I sit
on the toilet in the night, you are somewhere in the room,
I open the window and snow has fallen in a
steep drift, against the pane, I
look up, into it,
a wall of cold crystals, silent
and glistening, I quietly call to you
and you come and hold my hand and I say
I cannot see beyond it. I cannot see beyond it.

Konstantinos Kaváfis – Lembra, corpo…

Lembra, corpo, não só o quanto foste amado,
não só os leitos onde repousaste,
mas também os desejos que brilharam
por ti em outros olhos, claramente,
e que tornaram a voz trêmula – e que algum
obstáculo casual fez malograr.
Agora que isso tudo perdeu-se no passado,
é quase como se a tais desejos
te entregaras – e como brilhavam,
lembra, nos olhos que te olhavam,
e como por ti na voz tremiam, lembra, corpo.

Trad.: José Paulo Paes

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 22/06/2019

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Dorianne Laux — A travessia

Os alces de Orick aguardam para atravessar a pista pacientemente,
e meu marido de seis meses, que pensa ser

o próprio São Francisco, desce do carro para ajudar.
Espírito de São Francisco, camiseta esvoaçante, pisa

o asfalto delicadamente e eles começam sua jornada,
cabeças erguidas, narinas dilatadas, cada passo

um testemunho do momentum interrompido, graciosamente
hesitantes, enquanto dois caminhões, alinhados, zumbindo,

ajustam o ar em seus freios. Eles cruzam as quatro pistas
como uma coroação, lentos como um friso grego, com o vento

que vem do rio agitando o capim sob suas caudas.
Mas meu marido fica ali para conversar com aquela

que não se movimenta, alheia a suas parentes,
com um longo talo de erva-doce rodopiando entre os dentes.

Vá em frente, ele suplica, Prossiga, mas a alce solitária
se mantém firme, seus narizes a menos de um metro de distância.

Uma criatura teimosa encarando a outra.
É assim que sei que o casamento vai durar.

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The Crossing

The elk of Orick wait patiently to cross the road
and my husband of six months, who thinks

he’s St. Francis, climbs out of the car to assist.
Ghost of St. Francis, his T-shirt flapping, step

tenderly onto the tarmac and they begin their trek,
heads lifted, nostrils flared, each footfall

a testament to stalled momentum, gracefully
hesitant, as a brace of semis, lined up, humming,

adjust the air in their brakes. They cross the four-lane
like a coronation, slow as a Greek frieze, river

wind riffling the wheat grass of their rumps.
But my husband stays on, to talk to the one

who won’t budge, oblivious to gher sisters,
a long stalk of fennel gyrating between her teeth.

Go on, he beseeches, Get going, but the lone elk
stands her ground, their noses less than a yard apart.

One stubborn creature staring down another.
This is how I know the marriage will last.

Wislawa Szymborska – Mapa

Plano como a mesa
na qual está colocado.
Debaixo dele nada se move
nem busca vazão.
Sobre ele – meu hálito humano
não cria vórtices de ar
e deixa toda a sua superfície
em silêncio.

Suas planícies, vales, são sempre verdes,
os planaltos, montanhas, amarelos e marrons
e os mares, oceanos, de um azul delicado
nas margens fendidas.

Tudo aqui é pequeno, próximo, acessível.
Posso tocar os vulcões com a ponta da unha,
acariciar os polos sem luvas grossas.
Com um olhar posso
abarcar cada deserto
junto com o rio logo ali ao lado.

Selvas são assinaladas com arvorezinhas
entre as quais seria difícil se perder.

No Ocidente e Oriente
acima e abaixo do equador –
assentou-se um manso silêncio.
Pontinhos pretos significam
que ali vivem pessoas.
Valas comuns e súbitas ruínas
não cabem nesse quadro.
As fronteiras dos países mal são visíveis
como se hesitassem entre ser e não ser.

Gosto dos mapas porque mentem.
Porque não dão acesso à dura verdade.
Porque, generosos e bem-humorados,
estendem-me na mesa um mundo
que não é deste mundo.

Trad.: Regina Przybycien

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 20/06/2019

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Linda Gregg – Perdida

Poderíamos ter sido confundidos como casados
no trem de Manhattan para Chicago
na última vez que estivemos juntos. Lembro-me de
olhar pela janela e elogiar a beleza
do banal: os entre sítios, o mundo
de costas para nós, as pequenas e negligenciadas
estações de nossa história. Adormeci sobre seu
peito e ventre sem pedir licença,
pois eram nossas derradeiras horas. Havia
um aroma no forro de pele de ovelha do seu novo
colete chinês que não reconheci. Eu o senti
deliberadamente. Acordei cedo e pedi-lhe que
viesse tomar café comigo. Você disse, durma mais um pouco,
e eu respondi que só tínhamos uma hora, e você veio.
Não trocamos muitas palavras depois disso. Na estação,
você recolheu seus pertences e me entregou o colete,
depois se foi, como havíamos planejado. Assim, teria
dez minutos para encontrar sua família e seguir adiante.
Fiquei ao lado do assento, aturdida pela exaustão
e pela inevitabilidade do fim, tão imóvel que percebia
minha própria respiração. Coloquei o colete
e o casaco, peguei minha bolsa e, ao me virar, vi você
através da janela suja, do lado de fora, olhando
para mim. Fitamo-nos sem expressão
alguma. Invisíveis, despercebidos, imóveis.
Esse momento é o que citarei como prova
de que você definitivamente me amava. Depois disso, eu era
uma mulher só, carregando minha própria bolsa, perguntando
a um atendente em que direção caminhar para encontrar um táxi.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: Optei por traduzir o título Asking for Directions para Perdida visando a preservar o duplo sentido presente no original em inglês. Esta escolha reflete não apenas a busca literal por orientações para encontrar um táxi, conforme os versos finais do poema, mas também evoca a busca por novos rumos do eu lírico diante da separação do amante casado. Além disso, a palavra ‘perdida’ carrega uma conotação social, especialmente no contexto brasileiro, associada à reprovação moral das mulheres envolvidas em relacionamentos extraconjugais, adicionando uma terceira camada de significado à tradução.

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Asking for Directions

We could have been mistaken for a married couple
riding on the train from Manhattan to Chicago
that last time we were together. I remember
looking out the window and praising the beauty
of the ordinary: the in-between places, the world
with its back turned to us, the small neglected
stations of our history. I slept across your
chest and stomach without asking permission
because they were the last hours. There was
a smell to the sheepskin lining of your new
Chinese vest that I didn’t recognize. I felt
it deliberately. I woke early and asked you
to come with me for coffee. You said, sleep more,
and I said we only had one hour and you came.
We didn’t say much after that. In the station,
you took your things and handed me the vest,
then left as we had planned. So you would have
ten minutes to meet your family and leave.
I stood by the seat dazed by exhaustion
and the absoluteness of the end, so still I was
aware of myself breathing. I put on the vest
and my coat, got my bag and, turning, saw you
through the dirty window standing outside looking
up at me. We looked at each other without any
expression at all. Invisible, unnoticed, still.
That moment is what I will tell of as proof
that you loved me permanently. After that I was
a woman alone carrying her bag, asking a worker
which direction to walk to find a taxi.

Jorge Sousa Braga – Litania

Estava sentado numa sala anexa ao bloco operatório
e uma enfermeira passou com o teu útero num saco de plástico transparente
Com o teu útero com a minha primeira casa e a de meus irmãos
ainda escorrendo sangue
Uma pequena construção toda em pedra
com divisões de tijolo e cal hidráulica
e janelas abrindo para o vale
Com o teu útero
Com a memória do pão depois de levedado e da tua saia comprida cheia de farinha
Com a memória de uma gema de ovo
Com o teu útero
Com a memória de uns sapatos demasiado apertados
Com a memória do giz e do ferro a carvão e dos alinhavos
Na minha alma antes de ser posta à prova
Com o teu útero
Com a memória de uma véspera de Natal das rabanadas e da aletria
E das águas que de súbito inundaram o soalho da cozinha
Com a memória agitada dessas águas
Com o teu útero
Com a memória de uma explosão de mimosas
Com a memória do cheiro a flor de laranjeira e a neroli
Com o teu útero
Que o anátomo-patologista dentro em pouco se encarregaria de retalhar
Com a lâmina do bisturi

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 19/06/2019

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Nathan McClain — Nighthawks, de Edward Hopper

Nighthawks*, de Edward Hopper

Notou como ela se senta perto do homem
de terno azul? Viu como as mãos deles
quase se tocam? Como ela me lembra
minha mãe? — uma mulher de vermelho

tomando café. Viu?
Hopper obviamente era solitário.
Por que mais pintaria ela, minha mãe,
sentada ali assim?

E isso me faria o quê?
O balconista de avental branco?
Estou bastante ansioso. Quero ajudar.
Mesmo que isso signifique apenas esperar

para acender o cigarro de cada homem.
Minha mãe passava as
noites sozinha, limpando a poeira
das canecas de café. Como as linhas

de sua boca se aprofundavam…
Você viu? E se ela morresse
assim — triste, intocada?
Digo que quero ajudar,

mas é como se minha voz fosse uma torneira
gotejante, o zumbido de um refrigerador vazio.
Hopper era obviamente solitário.
Por que outro motivo pintaria o homem de terno cinza

no balcão, meu pai, de costas?

Trad.: Nelson Santander

*N. do T.: A pintura “Nighthawks” de Edward Hopper, concluída em 1942, retrata uma cena noturna em uma lanchonete urbana. Hopper captura a solidão e a desconexão entre as pessoas, refletindo a atmosfera de isolamento na vida urbana moderna. O título, “Nighthawks” (literalmente “Falcões Noturnos”), alude aos frequentadores assíduos desses estabelecimentos, semelhantes a pássaros noturnos em suas vigílias e observação passiva. O quadro transmite melancolia, solidão e mistério, características do estilo introspectivo e observacional de Hopper.

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Nighthawks by Edward Hopper

See how closely she sits to the man
in the blue suit? See how their hands
almost touch? How she reminds me
of my mother — a woman in red

drinking coffee. See?
Hopper was obviously lonely.
Why else would he paint her, my mother,
sitting there like this?

Which would make me what?
The soda jerk in white?
I’m eager enough. I want to help.
Even if it means simply waiting

to light each man’s cigarette.
My mother spent
nights alone, wiping coffee mugs
clean of dust. How the lines

that her mouth deepened…
See? And what if she died
this way — sad, untouched?
I say, I want to help

but it’s as if my voice is a faucet
running, a refrigerator’s empty hum.
Hopper was obviously lonely.
Why else paint the gray-suited man

at the counter, my father, his back turned?

Nuno Júdice – Nostalgia de setembro

Quando vinham as nuvens de setembro, já
os pássaros tinham emigrado para além dos mares,
o campo ficava em longos silêncios
que só a passagem dos rebanhos, a caminho
do matadouro, cortava num tropel que ecoava
ainda, depois da paisagem, com os gritos
do pastor e o ladrar dos cães. Eu gostava dessas nuvens
quando começavam as primeiras chuvas, e podia
ouvir o bater dos pingos na janela, empurrados
pelo vento, e o ruído da água a correr nas goteiras,
e a inundar as valetas, arrastando o lixo
e as memórias do verão. Porém, ainda te vejo,
com o vestido encharcado e os cabelos a escorrerem
água para os ombros, como se não te importasses
com a chuva. Nunca soube quem eras, nem
porque passeavas no campo como se estivesse
um dia de sol. Talvez fosses uma sobrevivente do
verão; e ainda hoje me arrependo de não te
ter seguido, para lá da curva do caminho em que
te perdi de vista, para que esse verão continuasse
comigo, para sempre, através da tua imagem.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 18/06/2019

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