Chad Frame – Área de Fumantes

Área de fumantes

VA Medical Center em Wilkes Barre, Pennsylvania: lado de fora da enfermaria

Páscoa, e o recinto de vidro está embaçado
como um olho remelento. Os velhos fumam,
ofegantes em seus bonés e cadeiras de rodas.

Trouxemos o cachorro do meu pai. Eu sei que não é
um cachorro de homem, anuncia ele, o chihuahua
repousando na colcha azul cobrindo seu colo.

De qualquer forma, é um ótimo cachorro, diz Cecil,
com seu baixo ronco rouco e catarrento.
Ele parece ter o tamanho certo para uma bola de futebol.

Perdemos a última. O que começa como uma risada
em ambas as gargantas se transforma em tosse áspera e depois úmida,
ecos de um poço profundo. Meu pai diz:

Ouvi dizer que em outubro não poderemos
mais fumar aqui. Ele olha para mim.
Você vai me tirar daqui antes disso, certo?

Mas antes que eu possa responder, outro
homem sentado em uma cadeira se aproxima lentamente,
e diz ao meu pai: Você se parece com Jesus.

Acho que consigo ver. O cabelo, a barba,
o ar faminto, a pele pálida, pergaminho
estirado finamente sobre ornamentos de madeira.

Você sofre como ele, o homem continua.
Mas eu não posso curar vocês, meu pai responde.
Queria poder. Outro acesso de tosse.

Precisa de alguma coisa? minha mãe pergunta, pegando
sua bolsa. Sim, ele diz, limpando a boca
com a mão trêmula. Um comprimido de Enditol.

Eu me pergunto: Qual será seu último prazer?
A vista do estacionamento, algumas tragadas, a brisa quente,
o cheiro de frango de um posto de combustível?

Ele se levanta e anda, e percebo que cada coisa
se abre em seu próprio ritmo — nossos corações, as primeiras
flores da primavera, mulheres indo à igreja com chapéus amarelos.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Smoking Shelter

Outside the hospice ward of the VA Medical Center in Wilkes Barre, Pennsylvania

Easter, and the glass enclosure’s clouded
like a rheumy eye. Old men are smoking,
wheezing in their service hats and wheelchairs.

We’ve brought my father’s dog. I know it’s not
a man’s dog, he announces, chihuahua
resting on the blue quilt draped on his lap.

That’s a great dog anyway, says Cecil,
his rumbling basso hoarse with settled phlegm.
Looks about the right size for a football.

We lost our last one. What starts as laughter
in both throats turns to rasping, then wet coughs,
echoes from a deep well. My father says,

I hear come October we’re not allowed
to smoke here anymore. He looks at me.
You’ll get me out of here before then, right?

But before I can answer, another
chair-bound man slowly scoots over to us,
tells my father, You look just like Jesus.

I guess I can see it. The hair, the beard,
the starvation, sallow skin, scroll parchment
stretched thinly over wooden finials.

You suffer like he did, he continues.
But I can’t heal you guys, my father says.
I wish I could. Another coughing fit.

You need something? my mother asks, reaching
in her purse. Yeah, he says, wiping his mouth
with a trembling hand. An Enditol pill.

I wonder, What will be your last pleasure?
A parking lot view, a few puffs, warm breeze,
smelling secondhand gas station chicken?

He is risen, and I realize each thing
opens at its own pace—our hearts, the first
spring blooms, church-bound women in yellow hats.

Vicente Gaos – Esquecei

Esquece, homem…

Esquece que és cinzas
e em cinzas te tornarás.

Esquece esta quarta-feira
e o in pulvis reverteris.

Pois embora sejas cinza e pó,
há vida, amor, beleza ao redor.

É verdade: beleza, amor, vida,
fugazes flores de um dia.

Mas flores, sim. Enquanto durar
a magia verdadeira de seu perfume,

esquece o pó e a morte.
É melhor não lembrar

do que, com ou sem memória,
baterá algum dia à tua porta.

Por ora, fecha-a. Abre a varanda,
que te penetre e embriague o sol.

Olha-o bem: fecha as pálpebras,
e que o sol te salve do caos.

No final, verás que tanto faz
viver e morrer, seja domingo

ou quarta-feira. Quando chegar
fria e borralheira a morte,

acolhe-a satisfeito, tranquilo,
com a certeza de haver vivido.

Com a lembrança de uma vida
que ignorou a profecia

funeral, que não se perdeu
em medo e dúvida de Deus.

Quando sentires o gosto amargo
da cinza na boca, sorve-o,

apura-o. Quando a morte chegar,
abre a porta e deita-te, dorme.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 01/04/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Olvidaos

Olvida, hombre…

Olvida que eres ceniza
y has de convertirte en ceniza.

Olvídate de ese miércoles
y del in pulvis reverteris.

Pues aunque seas ceniza y polvo,
hay vida, amor, belleza en torno.

Es verdad: belleza, amor, vida,
fugitivas flores de un día.

Pero flores, sí. Mientras dure
la magia cierta de su perfume,

olvidate del polvo y la muerte.
Más vale que no recuerdes

lo que con memoria o sin ella
llamará algún día a tu puerta.

Ahora ciérrala. Abre el balcón
que te penetre y embriague el sol.

Míralo bien: cierra los párpados,
y que el sol te salve del caos.

Al final verás que es lo mismo
vivir y morir, el domingo

que el miércoles. Cuando llegue
cenicienta y fría la muerte,

acógela conforme, tranquilo,
seguro de haber vivido.

Con la memoria de una vida
que desoyó la profecía

funeral, que no se perdió
en el miedo y duda de Dios.

Cuando sientas el gusto amargo
de la ceniza en la boca, trágalo,

apúralo. Al llegar la muerte,
abre la puerta y tiéndete, duérmete.

Manuel António Pina – Sexta-feira Santa

A conversa era sobre Deus,
embora o teólogo estivesse inclinado
a pensar que fosse sobre outra coisa,
pois era hora de jantar.
Pegou num cigarro e perguntou às senhoras se podia fumar.
Tinha devorado o pargo com honesto apetite
e elogiava as virtudes do cozinheiro.
Só Deus, algures, chorava sobre
os despojos da sua pequena criatura na travessa
a caminho da copa, antes da sobremesa.

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Helena Zelic – Bem-vinda

em uma casa desconhecida
é preciso observar os movimentos das coisas:

o gás se vem da rua ou botijão
as árduas relações entre tomadas e eletrodomésticos
botões de liga e desliga
a política da limpeza
se toda sujeira é política.
as cores das chaves, as trancas trocadas
encaixar, tirar e encaixar de novo
na busca do que é espontâneo.
entrar na casa como se sempre fosse.
sair como quem volta ao pôr do sol.

conhecer as gavetas, os tacos soltos
os insetos que invadem o verão
a hora da caminhonete de frutas
o dia do lixo para fora
a vizinha, e a outra, e a outra.
as vizinhas são sempre muitas.

compreender a linguagem do cão
quando pede, quando avisa,
quando, cão, espanta os gatos do telhado.
aí descobres que há gatos no telhado
e os barulhos deixam de assustar.

em uma casa desconhecida
tudo o que se move é sinal
conversa intermediada
entre objetos e combinados.
em uma casa desconhecida
é preciso chegar manso
e apoderar-se.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 31/03/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Adélia Prado – Os lugares comuns

Quando o homem que ia casar comigo
chegou a primeira vez na minha casa,
eu estava saindo do banheiro, devastada
de angelismo e carência. Mesmo assim,
ele me olhou com olhos admirados
e segurou minha mão mais que
um tempo normal a pessoas
acabando de se conhecer.
Nunca mencionou o fato.
Até hoje me ama com amor
de vagarezas, súbitos chegares.
Quando eu sei que ele vem,
eu fecho a porta para a grata surpresa.
Vou abri-la como o fazem as noivas
e as amantes. Seu nome é:
Salvador do meu corpo.

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Raymond Carver – Esta manhã

Esta manhã foi especial. Um pouco de neve
cobria o chão. O sol flutuava num claro
céu azul. O mar estava azul, e verde-azulado,
até onde o olho podia enxergar.
Calmo. Quase sem ondas. Eu me vesti
e saí para caminhar – decidido a não voltar
até receber o que a Natureza tivesse a oferecer.
Passei perto de algumas árvores velhas, curvadas.
Atravessei um campo com pedras espalhadas
onde a neve se acumulara. Segui em frente
até chegar ao penhasco.
De onde fitei o mar, o céu e
as gaivotas revoando sobre a areia branca,
lá embaixo. Tudo adorável. Tudo banhado numa pura
luz fria. Mas, como sempre, meus pensamentos
começaram a vagar. Tive de me esforçar
para ver só o que estava vendo,
e nada mais. Tive que dizer a mim mesmo que aquilo
era o que importava, não o resto. (E de fato consegui,
por um ou dois minutos!) Por um ou dois minutos
consegui afastar as velhas ruminações
sobre o que é certe e o que é errado – deveres,
doces memórias, ideias de morte, como lidar
com minha ex-mulher. Todas as coisas
que eu esperava esquecer esta manhã.
As coisa com que vivo todos os dias. Tudo
o que superei para poder continuar vivo.
Mas, por um ou dois minutos, eu realmente esqueci
de mim e de tudo o mais. Sei que esqueci.
Pois quando me virei já não sabia
onde estava. Até que alguns pássaros emergiram
das árvores retorcidas – e voaram
na direção em que eu precisava seguir.

Trad.: Cide Piquet

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 25/03/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Raymond Carver – This morning

This morning was something. A little snow
lay on the ground. The sun floated in a clear
blue sky. The sea was blue, and blue-green,
as far as the eye could see.
Scarcely a ripple. Calm. I dressed and went
for a walk — determined not to return
until I took in what Nature had to offer.
I passed close to some old, bent-over trees.
Crossed a field strewn with rocks
where snow had drifted. Kept going
until I reached the bluff.
Where I gazed at the sea, and the sky, and
the gulls wheeling over the white beach
far below. All lovely. All bathed in a pure
cold light. But, as usual, my thoughts
began to wander. I had to will
myself to see what I was seeing
and nothing else. I had to tell myself this is what
mattered, not the other. (And I did see it,
for a minute or two!) For a minute or two
it crowded out the usual musings on
what was right, and what was wrong — duty,
tender memories, thoughts of death, how I should treat
with my former wife. All the things
I hoped would go away this morning.
The stuff I live with every day. What
I’ve trampled on in order to stay alive.
But for a minute or two I did forget
myself and everything else. I know I did.
For when I turned back i didn’t know
where I was. Until some birds rose up
from the gnarled trees. And flew
in the direction I needed to be going.

W. S. Merwin – Agradecimentos

Ouça
com o cair da noite nós agradecemos
paramos nas pontes e nos inclinamos sobre as grades
saímos às pressas das salas envidraçadas
com as bocas cheias de comida para olhar o céu
e agradecer
junto à água agradecemos a ela
de pé junto às janelas que olham
em nossa direção

de volta de uma série de hospitais de volta de um assalto
após funerais, agradecemos
após as notícias sobre os mortos
quer os conhecêssemos ou não, agradecemos

por telefone, agradecemos
nas portas, nos bancos traseiros dos carros e nos elevadores
lembrando das guerras e da polícia à porta
e das surras nas escadas, agradecemos
nos bancos, agradecemos
nos rostos dos funcionários e dos abastados
e de todos que nunca mudarão
continuamos agradecendo

com os animais morrendo à nossa volta
e nossa perda de sensibilidade, agradecemos
com as florestas ficando menores mais rápido que os minutos
de nossas vidas, agradecemos
com as palavras se dissipando como células de um cérebro
com as cidades crescendo sobre nós
agradecemos cada vez mais rapidamente
com ninguém escutando, agradecemos
agradecemos e acenamos
por mais escuro que esteja

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Thanks

Listen
with the night falling we are saying thank you
we are stopping on the bridges to bow from the railings
we are running out of the glass rooms
with our mouths full of food to look at the sky
and say thank you
we are standing by the water thanking it
standing by the windows looking out
in our directions

back from a series of hospitals back from a mugging
after funerals we are saying thank you
after the news of the dead
whether or not we knew them we are saying thank you

over telephones we are saying thank you
in doorways and in the backs of cars and in elevators
remembering wars and the police at the door
and the beatings on stairs we are saying thank you
in the banks we are saying thank you
in the faces of the officials and the rich
and of all who will never change
we go on saying thank you thank you

with the animals dying around us
our lost feelings we are saying thank you
with the forests falling faster than the minutes
of our lives we are saying thank you
with the words going out like cells of a brain
with the cities growing over us
we are saying thank you faster and faster
with nobody listening we are saying thank you
we are saying thank you and waving
dark though it is

Paulo Henriques Britto – Da irresolução

Por não se estar preparado
perde-se a vida inteira.
A preparação, porém,
pra ser completa e certeira,

exigiria no mínimo
uma existência e meia.
Compreende-se, portanto,
aquele que titubeia

ao se ver face a face
com tamanho compromisso
e termina decidindo
viver mesmo de improviso.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 24/03/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

James Wright – Deitado em uma rede na fazenda de William Duffy, em Pine Island, Minnesota

Sobre a minha cabeça, vejo a borboleta-acobreada,
Adormecida no tronco preto,
Balançando como uma folha na sombra verde.
Descendo a ravina atrás da casa vazia,
Os sinos das vacas seguem uns ao outros
Nas distâncias da tarde.
À minha direita,
Em um campo de luz solar entre dois pinheiros,
Os dejetos dos cavalos do ano passado
Transformaram-se em rochas douradas.
Eu me inclino para trás, enquanto a noite escurece e se aproxima.
Um gavião-galinha sobrevoa o local, procurando abrigo.
Tenho desperdiçado minha vida.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Lying in a Hammock at William Duffy’s Farm in Pine Island, Minnesota

Over my head, I see the bronze butterfly,
Asleep on the black trunk,
Blowing like a leaf in green shadow.
Down the ravine behind the empty house,
The cowbells follow one another
Into the distances of the afternoon.
To my right,
In a field of sunlight between two pines,
The droppings of last year’s horses
Blaze up into golden stones.
I lean back, as the evening darkens and comes on.
A chicken hawk floats over, looking for home.
I have wasted my life.

Joan Margarit – Helena

O ontem é teu inferno. É cada instante
em que, sem sabê-lo, te perdeste
e também cada instante em que foste salvo.
Quando o jovem que foste está muito distante,
o amor é vingança do passado.
Vens de uma guerra em que foste vencido,
de armas e acampamentos abandonados
na Troia que levas dentro de ti.
Buscar-te-ão de noite os aqueos
e estreitarão o cerco. Voltarás,
por uma mulher, a perder a cidade.
Helena são todos os sonhos de que a vida
foi-se apropriando. Defende-a bravamente
pela última vez, desarmado.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 23/03/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Helena

El ayer es tu infierno. Es cada instante
en el que, sin saberlo, te has perdido
y también cada instante en el que te has salvado.
Cuando el joven que fuiste está muy lejos,
el amor es venganza del pasado.
Viene de una guerra donde fuiste vencido,
de armas y campamentos abandonados
en la Troya que llevas en ti mismo.
Te buscarán de noche los aqueos
y estrecharán el cerco. Volverás,
por una mujer, a perder la ciudad.
Helena es todos los sueños que la vida
se ha ido apropiando. Defiéndela con valor
por última vez, desarmado.