Kim Moore – Para minha filha

E mais tarde, quando ela perguntar,
direi que algumas partes foram belas –
como, em seu brilho
e súbita abertura,
os rostos dos vizinhos
passaram a parecer flores.
Contarei como começamos
a revisitar fotos
de nossos eus mais jovens,
abraçados a um estranho
ou apoiados nos ombros
de amigos, e vimos que o toque
sempre foi uma espécie de santidade,
uma forma de adoração que nos foi prometida.
Direi a ela que, de certa forma,
nossos dias se reduziram a nada,
sendo ao mesmo tempo tão longos quanto um ano
e tão velozes quanto o virar de uma página.
Vou contar como ela aprendeu a engatinhar
naqueles dias, naqueles tempos
em que não podíamos sair,
em que os corpos eram retirados
das casas e não eram contabilizados,
que ela falou sua primeira palavra
enquanto a morte rondava as ruas,
que, embora eu estivesse com medo,
nunca vi o medo em seus olhos.

Trad.: Nelson Sanander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

For my daughter

And later, when she asks,
I’ll say some parts of it were beautiful –
how in their brightness
and sudden opening
the faces of the neighbours
began to look like flowers.
I’ll tell her how we began
to look back at photos
of our younger selves
with our arms around a stranger
or leaning on the shoulders
of friends, and saw that touch
had always been a kind of holiness,
a type of worship we were promised.
I’ll tell her that in some ways
our days shrunk to nothing,
being both as long as a year
and as quick as the turning of a page.
I’ll tell her how she learned to crawl
in those days, in those times
when we could not leave,
when bodies were carried
from homes and were not counted,
that she began to say her first word
while death waited in the streets,
that though I was afraid,
I never saw fear in her eyes.

Andreia C. Faria – [Tenho a pedir-vos que não reutilizeis mais nada]

Tenho a pedir-vos que não reutilizeis mais nada.
Este edifício junto à praia, deixai-o
entregue à ruína,
às folhas do milho,
ao ar salgado.

Que as crianças possam tropeçar nas lajes soltas
e no átrio ecoe, como uma pedreira,
o desejo de muitas mãos.

Deixai dormir as mariposas dentro de lâmpadas partidas
e as formigas engrossarem pelos cantos
como sal.

Não inventeis mais nada,
nem formas eloquentes de evitar que o bronze oxide.
Aceitai o suor do tempo.

Que algumas coisas apodreçam.
Que os elefantes atravessem a planície.
Que as veias rebentem
do esforço de permanecer em pé.

E que nem tudo se sustente como a rosa
se sustenta de florir.

Deixai, deixai os vários pisos incomunicáveis,
o desvão ser cortejado pelo giz dos aviões,
que a lua pouse ali aberto o crânio,
que lhe bata o sol.

Ainda são precisos os templos
onde o pó seja gentil
e incensado
como os pés pela caruma dos pinhais.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 04/02/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Marge Piercy – Canção de amor matinal

Estou cheia de amor como um melão
com sementes, madura e gotejando doces sumos.
Se você tocar levemente em meu ventre,
ele ressoará maduro, maduro.

É o auge de um verão verdejante, com os morangos
quase no fim e as amoras colorindo-se,
enquanto as rosas desabam como gordos gatinhos
persas, as hastes douradas da abóbora se dilatando.

No dia seguinte a um temporal, as folhas brilham.
O mundo está claro como uma janela recém-lavada.
O ar passa sua seda fina pelas mãos.
Cada último pássaro tem uma ideia para insistir.

Estou tentando trabalhar e, em vez disso,
escorro de amor por você como um favo de mel.
Estou vazia de fantasias, limpa como água da chuva
esperando fluir por toda sua pele.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Morning Love Song

I am filled with love like a melon
with seeds, I am ripe and dripping sweet juices.
If you knock gently on my belly
it will thrum ripe, ripe.

It is high green summer with the strawberries
just ending and the blueberries coloring
with the roses tumbling like fat Persian
kittens, the gold horns of the squash blowing.

The day after a storm the leaves gleam.
The world is clear as a just washed picture window.
The air whips its fine silk through the hands.
Every last bird has an idea to insist on.

I am trying to work and instead
I drip love for you like a honeycomb.
I am devoid of fantasies clean as rainwater
waiting to flow all over your skin.

Ian Hamilton – Despertar

Sua cabeça, tão enferma, repousa junto à minha.
Tão sensível. Você não consegue lembrar
Por que está aqui, nem reconhece
Estas mãos prestativas.
Meu amor,
O mundo nos encurrala. Estamos perdendo terreno.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 02/02/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Awakening

Your head, so sick, is leaning against mine,
So sensible. You can’t remember
Why you’re here, nor do you recognize
These helping hands.
My love,
The world encircles us. We’re losing ground.

Dan Gerber – Dia da marmota

para Emmylou

Ouço um ganido abafado no corredor.
Nossa velha cadela, Eudora, fez um movimento errado
e deslocou os discos desgastados de sua coluna.

De resto, ela está feliz, eu acho.
Ela ofega e bate sua incansável calda
em minha perna

quando fazemos uma pausa em nossa caminhada leve
pelas colinas e ainda
cede ao seu faro acima de qualquer outro apelo.

Não acredito que ela saiba que vai morrer.
Não acredito que ela se preocupe
com o que pode ter que suportar

amanhã ou depois de amanhã, ou que
daqui a um mês ela possa me perder
ou a mulher com quem vivemos, que

interpreta o olhar dela e fala
com a cadela em um idioma cujo tom
só ela entende. E é o bastante

que ela sinta o cheiro dos coiotes e pneus de caminhões
e daqueles prestes a morrer, igualmente
sem pesar,

como essa pena marrom encaracolada
que acabou de cair
de um pássaro que não avistamos.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Groundhog Day

for Emmylou

I hear a muffled yelp from the hallway.
Our old dog, Eudora, has made a wrong move
and tweaked the crumbling disks in her spine.

Otherwise she’s happy I think.
She pants and thumps her indefatigable
tail against my leg

when we pause on our gentle walk
over the hills and still
defers to her nose above all other callings.

I don’t think she knows she will die.
I don’t think she suffers concern
over what she may have to endure

tomorrow or the day after or that
a month from now she may lose me
or the woman we live with who

reads the look in her eyes and speaks
for her in a language only the tone
of which she understands. And it’s enough

that she smells coyotes and truck tires and
the soon-to-be-dead, equally
without regret,

like this curly brown feather
just fallen
from a bird we didn’t see.

José María Cumbreño – Identidade

Durante anos, a roupa que usei foi herdada de meu irmão mais velho.
Meu nome me foi dado em homenagem ao meu avô.
O primeiro carro que conduzi era de segunda mão.
A primeira mulher que me beijou já havia beijado outros.
A casa em que habito é alugada.
Tudo o que escrevo já foi escrito por alguém há muito tempo, e muito melhor.
O irmão de minha filha não é meu filho.
Seu pai age como se não o fosse, e quem não é o pai
esforça-se para aprender a sê-lo.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 31/01/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

José María Cumbreño – Identidad

Durante años, la ropa que me he puesto la he heredado de mi hermano mayor.
Mi nombre me lo pusieron por mi abuelo.
El primer coche que conduje era de segunda mano.
La primera mujer que me besó ya había besado a otros.
La casa en la que vivo es de alquiler.
Todo lo que escriba ya lo habrá escrito alguien mucho antes y mucho mejor.
El hermano de mi hija no es hijo mío.
Su padre hace como si no lo fuera y quien no es su padre
se esfuerza por aprender a serlo.

Dorianne Laux – Eu te desafio

É outono, e estamos nos livrando
dos livros, nos preparando para aposentar e
mudar para um lugar menor, mais
gerenciável. Vivendo ao contrário,
na nova casa à prova de idade, nada
no chão para tropeçar, nenhum obstáculo
para os vagarosos mecanismos de nossos corpos,
uma mesinha para dois. Nosso mundo está
encolhendo, nossos armários, quase vazios,
se foram as saias justas e os sapatos de dança,
os badulaques e bugigangas. Agora, quando
alguém nos visita e admira
nossas obras completas de Shakespeare,
a pena de falcão no dicionário aberto,
o anjo de ferro na estante, dizemos:
leve-os. Este é o momento mais importante
de todos, a era do desapego,
sabendo que o que deixamos para trás é
como o aroma das árvores em flor
que se intensifica depois
que as atravessamos, inspirando-as
por um instante antes de
exalá-las. Uma terça-feira
comum em que um de vocês diz
eu te desafio, e o outro
apenas ri.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

I Dare You

It’s autumn, and we’re getting rid
of books, getting ready to retire,
to move some place smaller, more
manageable. We’re living in reverse,
age-proofing the new house, nothing
on the floors to trip over, no hindrances
to the slowed mechanisms of our bodies,
a small table for two. Our world is
shrinking, our closets mostly empty,
gone the tight skirts and dancing shoes,
the bells and whistles. Now, when
someone comes to visit and admires
our complete works of Shakespeare,
the hawk feather in the open dictionary,
the iron angel on a shelf, we say
take them. This is the most important
time of all, the age of divestment,
knowing what we leave behind is
like the fragrance of blossoming trees
that grows stronger after
you’ve passed them, breathing
them in for a moment before
breathing them out. An ordinary
Tuesday when one of you says
I dare you, and the other one
just laughs.

Billy Collins – As cadeiras em que ninguém se senta

Vêem-se em varandas e em relvados
mesmo à beira do lago,
geralmente dispostas em pares indicando que um casal

se poderá sentar ali e olhar para
a água ou para as grandes árvores frondosas.
O problema é que nunca se vê ninguém

sentado nessas cadeiras abandonadas
embora a dada altura deva ter parecido
um bom lugar para parar e não fazer nada por um momento.

Às vezes há uma pequena mesa
entre as cadeiras onde ninguém
deixou um copo pousado ou um livro com a capa para baixo.

Posso não ter nada com isso,
mas suponhamos haver um dia
em que todos os que colocaram essas cadeiras vagas

numa varanda ou num cais se sentariam nelas
nem que fosse para se lembrarem
daquilo que achavam que valia a pena

ser contemplado das duas cadeiras
lado a lado com uma mesa pelo meio.
As nuvens estariam altas e imponentes nesse dia.

A mulher descola o olhar do seu livro.
O homem toma um gole da sua bebida.
E ouve-se apenas o som do seu olhar,

o marulhar da água do lago, e o canto de um pássaro
depois de outro, gritos de alegria ou de aflição —
o tempo vai passando enquanto se percebe quais.

Trad.: Ricardo Marques

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 30/01/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Billy Collins – The Chairs That No One Sits In

You see them on porches and on lawns
down by the lakeside,
usually arranged in pairs implying a couple

who might sit there and look out
at the water or the big shade trees.
The trouble is you never see anyone

sitting in these forlorn chairs
though at one time it must have seemed
a good place to stop and do nothing for a while.

Sometimes there is a little table
between the chairs where no one
is resting a glass or placing a book facedown.

It might be none of my business,
but it might be a good idea one day
for everyone who placed those vacant chairs

on a veranda or a dock to sit down in them
for the sake of remembering
whatever it was they thought deserved

to be viewed from two chairs
side by side with a table in between.
The clouds are high and massive that day.

The woman looks up from her book.
The man takes a sip of his drink.
Then there is nothing but the sound of their looking,

the lapping of lake water, and a call of one bird
then another, cries of joy or warning—
it passes the time to wonder which.

Terence Winch – Aquele navio já partiu

Em nossa antiga vida, comíamos sorvete e pudim
de pão. Bebíamos copo após copo de
Grand Marnier até ficarmos enjoados.
Nossa libido era grande como um outdoor.
Nossa libido era maior do que a tela
de um cinema drive-in no meio do nada,
exibindo intermináveis clássicos pornográficos
adolescentes. Tínhamos um apetite insaciável.
Derramávamos banha derretida sobre nossa
pipoca, que então cobríamos
com uma tempestade de sal. Fumávamos,
cheirávamos e nos divertíamos com pessoas
com quem era melhor não se envolver. Falávamos
a noite inteira ao telefone. Líamos
Keats e Yeats e todos os grandes
dia e noite. Brigávamos
em bares. Bebíamos dezesseis xícaras
de café todos os dias. Fingíamos estar doentes
e passávamos o dia em mistérios, dúvidas e
incertezas. Desprezávamos nossas
responsabilidades sem pensar duas
vezes. Comíamos comida chinesa
e pizza no café da manhã. Pegávamos
o ônibus para visitar os amigos onde quer
que estivessem. Roubávamos livros.
Enganávamos, mentíamos, chorávamos.
Dançávamos a noite toda na sala
ao redor da árvore de natal.

Em nossa nova vida, tentamos lembrar
os nomes das pessoas com quem pensamos
ter dormido. Tiramos
as embalagens de brócolis congelados do
freezer. Acendemos uma vela
para comemorar a travessia
da grande divisão entre
a ilha esmeralda dos jovens
e as canções em nossos ossos
que ficaram sem ser cantadas.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

That Ship Has Sailed

In our old life, we ate ice cream and bread
pudding. We drank glass after glass of
Grand Marnier until it made us sick.
Our libido was as big as a billboard.
Our libido was larger than a drive-in
theater screen in the middle of nowhere
playing endless adolescent pornographic
classics. We had an appetite for appetite.
We poured melted lard all over our
popcorn which we then covered
with a snowstorm of salt. We smoked,
we snorted, we cavorted with people
who were best left alone. We talked
all fucking night on the phone. We read
Keats and Yeats and all the greats
day and night. We got into fights
in pubs. We drank sixteen cups
of coffee every day. We called in sick
and spent the day in mysteries, doubts,
uncertainties. We shirked our
responsibilities without a second
thought. We ate Chinese food
and pizza for breakfast. We rode
the bus to visit friends wherever
they might be. We stole books.
We cheated, we lied, we cried.
We danced all night in the living
room around the Christmas tree.

In our new life, we try to remember
the names of the people we think
we might have slept with. We haul
the bags of frozen broccoli out
of the freezer. We light a candle
to commemorate crossing
the great divide between
the green island of the young
and the songs in our bones
that have come unsung.

Ursula K. Le Guin – Prece de uma Noite de Janeiro

Sinos badalam, excêntricos ventos
assobiam gelados vindos das terras desérticas
sobre as montanhas. Janus, Senhor
do inverno e dos começos, fendido
e abalado, com duas faces,
sentinela dos portões dos ventos e das cidades,
deus dos insones:
livra-me da gélida inveja
e da ira mesquinha. Abre
minha alma para os vastos
lugares escuros. Diz-me, e diz de novo:
nada nos é tomado, só ofertado.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

January Night Prayer

Bellchimes jangle, freakish wind
whistles icy out of desert lands
over the mountains. Janus, Lord
of winter and beginnings, riven
and shaken, with two faces,
watcher at the gates of winds and cities,
god of the wakeful:
keep me from coldhanded envy
and petty anger. Open
my soul to the vast
dark places. Say to me, say again,
nothing is taken, only given.