Katia Kapovich – Retrato de um cão como um homem mais velho

Quando o dono dele morreu em 2000 e uma nova família
se mudou para o apartamento de Moscou,
ele foi viver com os vira-latas do parque.
No verão, havia muita comida, as crianças
jogavam fora sanduíches, cachorros-quentes e outras sobras.
Ele não tinha um grande apetite,
e ainda sentia saudades do seu dono.
Ele também estava velho, as fêmeas já não o atraíam,
e ele não tinha mais energia para correr atrás delas.
Então veio o inverno e os pequeninos abandonaram o parque.
A ideia de comer do lixo lhe ocorreu
mas no minuto em que ele começou a revirar a
lixeira virada, uma voz
em sua cabeça disse: “Não, Rex!”
Os vestígios de uma boa educação diminuem
nossas habilidades naturais de sobrevivência.

Eu o encontrei novamente no início da primavera de 2001.
Ele parecia ótimo. O tom acinzentado lhe caía muito bem.
Seus olhos escuros de pastor eram perfeitamente brilhantes,
como os de um filhote.
Perguntei-lhe sobre como ele estava se mantendo
nesta nova ordem econômica
em que até a espécie humana sofria com a fome.
Em resposta, ele me contou a sua história:
a de como no começo ele pensou que a vida sem seu dono
não valia a pena, como aqueles
que o acariciavam quando ele era um pet
se afastaram dele, e de como uma noite
ele teve uma epifania.

Seu dono apareceu para ele em um sonho,
deu-lhe um tapinha em seu pescoço magro e disse:
“Vamos às compras!” Então, na manhã seguinte, ele pegou o metrô
e seguiu para o mercado de rua
onde costumava ir todos os domingos, onde
os vendedores o reconheceram e o alimentaram,
até à saciedade.
“Talvez você devesse se mudar para perto daquela região…”
sugeri. —“Não, vou ficar aqui”, ele suspirou,
“os velhos não devem alterar seu território. Foi
o que meu humano me disse.”
De fato, ele mesmo soava como um.

Trad.: Nelson Santander

A Portrait of a Dog as an Older Guy

When his owner died in 2000 and a new family
moved into their Moscow apartment,
he went to live with mongrels in the park.
In summer there was plenty of food, kids
often left behind sandwiches, hotdogs and other stuff.
He didn’t have a big appetite,
still missing his old guy.
He too was old, the ladies no longer excited him,
and he didn’t burn calories chasing them around.
Then winter came and the little folk abandoned the park.
The idea of eating from the trash occurred to him
but the minute he started rummaging in the
overturned garbage container, a voice
in his head said: “No, Rex!”
The remnants of a good upbringing lower
our natural survival skills.

I met him again in the early spring of 2001.
He looked terrific. Turning gray became him.
His dark shepherd eyes were perfectly bright,
like those of a puppy.
I asked him how he sustained himself
in this new free-market situation
when even the human species suffered from malnutrition.
In response he told me his story;
how at first he thought that life without his man
wasn’t worth it, how those
who petted him when he was a pet
then turned away from him, and how one night
he had a revelation.

His man came to him in his sleep,
tapped him on his skinny neck and said:
“Let’s go shopping!” So the next morning he took the subway
and went to the street market
where they used to go together every Sunday and where
vendors recognized him and fed him
to his heart’s content.
“Perhaps you should move closer to that area?”
I ventured.—“No, I’ll stay here,” he sighed,
“oldies shouldn’t change their topography. That’s
what my man said.”
Indeed, he sounded like one himself.

Manuel António Pina – Forma, só Forma

Brincarei ainda na infância
lembrando-me agora?
E que recordação
me pensa a esta hora?
O que sou passou
pela minha existência,
tenho uma presença
mas já lá não estou:
sou também lembrança
de alguém em algum sítio,
onde não alcança
o que, lembrado, sinto.
E aí repousa já
tornado esquecimento
um dia que virá
há muito, muito tempo

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 03/07/2018

Ferreira Gullar – Manhã

As portas batem as toalhas voam
o dia se esbaqueia como um pássaro dentro da casa
(ou uma lembrança
dentro da casa)

Véspera do dia em que de repente enlouquecerei.

Joan Margarit – Não jogues fora as cartas de amor

Elas não te abandonarão.
O tempo passará, o desejo se apagará
— esta seta da sombra —
e os rostos sensuais, belos e inteligentes
se ocultarão em ti, no fundo de um espelho.
Passarão os anos. Os livros te cansarão.
Cairás ainda mais
e inclusive perderás a poesia.
O ruído da cidade nas vidraças
acabará sendo tua única música,
e as cartas de amor que houveres guardado
serão tua última literatura.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 01/07/2018

No tires las cartas de amor

Ellas no te abandonarán.
El tiempo pasará, se borrará el deseo
-esta flecha de sombra-
y los sensuales rostros, bellos e inteligentes,
se ocultarán en ti, al fondo de un espejo.
Caerán los años. Te cansarán los libros.
Descenderás aún más
e, incluso, perderás la poesía.
El ruido de ciudad en los cristales
acabará por ser tu única música,
y las cartas de amor que habrás guardado
serán tu última literatura.

Richard Siken – Mundo visível

A luz do sol derramando-se sobre a sua pele, sua sombra
                                                                    plana na parede.
          O amanhecer partia os ossos do seu coração como gravetos.
Você não esperava por isso,
                        o quarto se tornando branco, a luz astronômica
                                                             golpeando-o em uma torrente de punhos.
          Você levou a mão ao rosto como se para
                         escondê-lo, os dedos cor-de-rosa se tornaram dourados enquanto a luz
fluía diretamente para o osso,
         como se você estivesse dentro do pequeno quarto fechado em vidro
                                                       com cada partícula de poeira iluminada.
         A luz não é nenhum mistério,
o mistério é haver algo que obstrui
                                                              a passagem da luz.

Trad.: Nelson Santander

Em: Refletions Journal – Yale Divinity School, 2005

Visible World

Sunlight pouring across your skin, your shadow
                                                                    flat on the wall.
          The dawn was breaking the bones of your heart like twigs.
You had not expected this,
                        the bedroom gone white, the astronomical light
                                                             pummeling you in a stream of fists.
          You raised your hand to your face as if
                         to hide it, the pink fingers gone gold as the light
streamed straight to the bone,
         as if you were the small room closed in glass
                                                       with every speck of dust illuminated.
         The light is no mystery,
the mystery is that there is something to keep the light
                                                                                   from passing through.

Linda Gregg – Redução

Sem nem mesmo abrir o álbum
percebi de repente, dois meses depois,
que você havia roubado uma foto minha,
aquela colorida, nas ondas gregas.
Depois de ter me machucado tanto,
como você pode também subtrair-me uma foto
de um tempo em que eu ainda não o conhecia?
Do tempo em que eu estava com Jack?
Roubar a pequena prova de que um dia
eu tive uma vida feliz, era amada
e bela?

Trad.: Nelson Santander

Lessening

Without even looking in the album
I realized suddenly, two months later,
you had stolen the picture of me,
The one in color in the Greek waves.
After you had hurt me so much,
how could you also take the picture
from me of a time before I knew you?
When I was with Jack.
Steal the small proof that once
I lived well, was loved
and beautiful.

Patrizia Cavalli – Agora que

Agora que o tempo parece ser todo meu
e ninguém me chama para almoçar ou jantar,
agora que posso ficar observando
como uma nuvem desbota e se desfaz,
como um gato atravessa o telhado
no imenso luxo de uma aventura, agora
que todos os dias me espera
a duração ilimitada de uma noite,
onde não há mais apelos e nem razão
para me despir apressadamente e repousar dentro
da ofuscante doçura de um corpo que me espera,
agora que a manhã nunca chega
e silenciosamente me abandona aos meus planos
em todas as nuances da voz, agora,
de repente, eu desejaria a prisão.

Trad.: Nelson Santander

Adesso che

Adesso che il tempo sembra tutto mio
e nessuno mi chiama per il pranzo e per la cena,
adesso che posso rimanere a guardare
come si scioglie una nuvola e come si scolora,
come cammina un gatto per il tetto
nel lusso immenso di una esplorazione, adesso
che ogni giorno mi aspetta
la sconfinata lunghezza di una notte
dove non c’è richiamo e non c’è piú ragione
di spogliarsi in fretta per riposare dentro
l’accecante dolcezza di un corpo che mi aspetta,
adesso che il mattino non ha mai principio
e silenzioso mi lascia ai miei progetti
a tutte le cadenze della voce, adesso
vorrei improvvisamente la prigione.

Emily Dickinson – “Morrer por ti era pouco…”

Morrer por ti era pouco.
Qualquer grego o fizera.
Viver é mais difícil —
É esta a minha oferta —

Morrer é nada, nem
Mais. Porém viver importa
Morte múltipla — sem
O Alívio de estar morta.

Trad.: Augusto de Campos

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 29/06/2018

Too scanty ’twas to die for you,
The merest Greek could that.
The living, Sweet, is costlier —
I offer even that —

The Dying, is a trifle, past,
But living, this include
The dying multifold — without
The Respite to be dead.

Tishani Doshi – Poema de Amor

No fim, perderemos um ao outro
para alguma coisa. Espero que seja algo
grandioso – morte ou desastre.
Mas pode não ser assim.
Pode ser que você saia
uma manhã para comprar cigarros,
depois de fazermos amor,
e nunca mais volte,
ou eu me apaixone por outro homem.
Pode ser um lento distanciamento em direção à indiferença.
Seja como for, teremos que aprender
a suportar a possibilidade de que eventualmente
perderemos um ao outro para alguma coisa.
Por que então não começar agora, enquanto sua cabeça
repousa como uma lua perfeita em meu colo,
e os cães na praia estão uivando lá fora?
Por que não buscar a sutura que nos une nesta
noite indiana e rompê-la, só um pouco, para que a queda
possa começar? Porque mais tarde, quando cruzarmos
um com o outro nas ruas, e tivermos que desviar os olhos,
quando tivermos atirado
as partes desprezadas de nossa vida comum
nas gavetas do quarto e o cheiro
de nossos corpos estiver desaparecendo como o doce
definhar dos lírios – do que chamaremos isso,
quando não for mais amor?

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 30/06/2018

Tishani Doshi – Love Poem

Ultimately, we will lose each other
to something. I would hope for grand
circumstance — death or disaster.
But it might not be that way at all.
It might be that you walk out
one morning after making love
to buy cigarettes, and never return,
or I fall in love with another man.
It might be a slow drift into indifference.
Either way, we’ll have to learn
to bear the weight of the eventuality
that we will lose each other to something.
So why not begin now, while your head
rests like a perfect moon in my lap,
and the dogs on the beach are howling?
Why not reach for the seam in this South Indian
night and tear it, just a little, so the falling
can begin? Because later, when we cross
each other on the streets, and are forced
to look away, when we’ve thrown
the disregarded pieces of our togetherness
into bedroom drawers and the smell
of our bodies is disappearing like the sweet
decay of lilies — what will we call it,
when it’s no longer love?

Antonia Pozzi – Novembro

E depois – quando eu partir
restará alguma coisa
de mim
no meu mundo –
restará um fino rasto de silêncio
no meio das vozes –
um ténue sopro de branco
no coração do azul –

E numa noite de Novembro
uma menina frágil
à esquina de uma rua
venderá braçadas de crisântemos
e lá estarão as estrelas
gélidas verdes distantes –
Alguém chorará
em algum lugar – em algum lugar –
Alguém irá procurar crisântemos
para mim
no mundo
quando sem regresso
eu tiver de partir.

Trad.: Inês Dias

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 28/06/2018

Antonia Pozzi – Novembre

E poi – se accadrà ch’io me ne vada –
resterà qualchecosa
di me
nel mio mondo –
resterà un’esile scìa di silenzio
in mezzo alle voci –
un tenue fiato di bianco
in cuore all’azzurro –

Ed una sera di novembre
una bambina gracile
all’angolo d’una strada
venderà tanti crisantemi
e ci saranno le stelle
gelide verdi remote –
Qualcuno piangerà
chissà dove – chissà dove –
Qualcuno cercherà i crisantemi
per me
nel mondo
quando accadrà che senza ritorno
io me ne debba andare.