Pedro Salinas – Não quero que te vás

Não quero que te vás
dor, última maneira
de amar. Sinto-me vivo
quando me martirizas
não em ti, nem aqui,
além: no chão, no ano
de onde tu vieste,
naquele amor por ela
e tudo o que foi.
Nessa realidade
submersa que nega
a si mesma e se empenha
em nunca ter havido,
que só foi um pretexto
que achei para viver.
Se tu não fosses minha,
ó dor, irrefutável,
até creria nisso;
porém, és o que eu tenho.
Tua lei me assegura
que nada foi mentira.
E enquanto eu te sentir,
Tu serás pra mim, dor,
a prova de outra vida
em que não me doías.
A prova indiscutível
De que ela me amou,
Sim, de que ainda a amo.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 15/10/2017

Pedro Salinas – No quiero que te vayas

No quiero que te vayas
dolor, última forma
de amar. Me estoy sintiendo
vivir cuando me dueles
no en ti, ni aquí, más lejos:
en la tierra, en el año
de donde vienes tú,
en el amor con ella
y todo lo que fue.
En esa realidad
hundida que se niega
a sí misma y se empeña
en que nunca ha existido,
que sólo fue un pretexto
mío para vivir.
Si tú no me quedaras,
dolor, irrefutable,
yo me lo creería;
pero me quedas tú.
Tu verdad me asegura
que nada fue mentira.
Y mientras yo te sienta,
tú me serás, dolor,
la prueba de otra vida
en que no me dolías.
La gran prueba, a lo lejos,
de que existió, que existe,
de que me quiso, sí,
de que aún la estoy queriendo.

Carlos Drummond de Andrade – Romaria

Romaria

A Milton Campos

Os romeiros sobem a ladeira
cheia de espinhos, cheia de pedras,
sobem a ladeira que leva a Deus
e vão deixando culpas no caminho.

Os sinos tocam, chamam os romeiros:
Vinde lavar os vossos pecados.
Já estamos puros, sino, obrigados,
mas trazemos flores, prendas e rezas.

No alto do morro chega a procissão.
Um leproso de opa empunha o estandarte.
As coxas das romeiras brincam no vento.
Os homens cantam, cantam sem parar.

Jesus no lenho expira magoado.
Faz tanto calor, há tanta algazarra.
Nos olhos do santo há sangue que escorre.
Ninguém não percebe, o dia é de festa

No adro da igreja há pinga, café,
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros
e um sol imenso que lambuza de ouro
o pó das feridas e o pó das muletas.

Meu Bom Jesus que tudo podeis,
humildemente te peço uma graça.
Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,
do amor que eu tenho e que ninguém me tem.

Senhor, meu amo, dai-me dinheiro,
muito dinheiro para eu comprar
aquilo que é caro mas é gostoso
e na minha terra ninguém não possui.

Jesus meu Deus pregado na cruz,
me dá coragem pra eu matar
um que me amola de dia e de noite
e diz gracinhas a minha mulher.

Jesus Jesus piedade de mim.
Ladrão eu sou mas não sou ruim não.
Por que me perseguem não posso dizer.
Não quero ser preso, Jesus ó meu santo.

Os romeiros pedem com os olhos,
pedem com a boca, pedem com as mãos.
Jesus já cansado de tanto pedido
dorme sonhando com outra humanidade

Octavio Paz – Irmandade

          Homenagem a Claudio Ptolomeo

Sou homem: duro pouco
e enorme é a noite.
Mas olho para cima:
as estrelas escrevem.
Sem entender, compreendo:
também sou escrita
e neste exato instante
alguém me soletra.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: Poema publicado no blog originalmente em 07/10/2017 – agora traduzido por mim

Hermandad

Homenaje a Claudio Ptolomeo

Soy hombre: duro poco
y es enorme la noche.
Pero miro hacia arriba:
las estrellas escriben.
Sin entender comprendo:
también soy escritura
y en este mismo instante
alguien me deletrea.

Joan Margarit – Cumprimentar-se

Aprendeste o gesto com os anos.
Encontras o vizinho, vos cumprimentais,
lado a lado, dois velhos na calçada
cada um fechando a própria porta.
As casas. E a convenção generosa
de algumas palavras na rua.
Para além, já nada mais resta
que esta paixão final, a calma
solitária e feroz das recordações
sob um pedaço de azul nítido como um cálculo.
Em seu quintal, cada qual
se transforma em uma porta.
Abre-se pela manhã. Fecha-se ao cair da noite.

Trad.: Nelson Santander

Saludarse

Has aprendido el gesto con los años.
Te encuentras al vecino, os saludáis,
uno al lado del otro, dos viejos en la acera
cerrando cada uno su portal.
Las casas. Y el convenio generoso
de unas palabras en la calle.
Más allá ya no queda nada más
que esta pasión final, la calma
solitaria y feroz de los recuerdos
bajo un trozo de azul nítido como un cálculo.
En su patio trasero, cada uno
convirtiéndose en puerta.
Se abre por la mañana. Se cierra al caer la noche.

Ferreira Gullar – Digo Sim

Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos de meu país,
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
e que meu coração
é um sol de esperança entre pulmões
e nuvens

Poderia dizer que meu povo
é uma festa só na voz
de Clara Nunes
no rodar
das cabrochas no Carnaval
da Avenida.
Mas não. O poeta mente.

A vida nós a amassamos em sangue
e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
em meio à fome
e dizendo sim
– em meio à violência e a solidão dizendo
sim –
pelo espanto da beleza
pela flama de Thereza
pelo meu filho perdido
neste vasto continente
por Vianinha ferido
pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
pelo que virá enfim,
não digo que a vida é bela
tampouco me nego a ela:
– digo sim

Ada Limón – O que eu quero lembrar

Logo antes da casa do general Vallejo,
com suas imponentes pedras e paredes amarelas,

há um campo ao longo do caminho
para o qual as chuvas de primavera conduzem os sapos,

toda uma sinfonia deles, inaugurando
as horas logo após o sol

afundar no Oceano Pacífico, a apenas
uma hora de distância. Por que estou colocando

você aqui? Estou em um avião indo para o oeste
e todos os humanos são tão barulhentos

que chega a doer o sangue. Mas houve uma vez em que
me sentei próxima a um caminho que ainda estava quente

do calor do dia, pernas cruzadas,
com meu amigo chamado Eco que me ensinou

a amplificar o estranho som que os sapos
faziam simplesmente cobrindo meus ouvidos.

Eu preciso manter isso fechado dentro de mim,
quando as notícias do dia estão cheias de crianças mortas,

seus rostos abrindo suas bocas para o ar
que não virá. Uma vez eu também fui uma criança

e meu amigo e eu nos sentamos por talvez uma hora,
os olhos se ajustando ao céu noturno, cobrindo

e descobrindo nossos ouvidos para ouvir
a canção que os animais mais ternos faziam.

Trad.: Nelson Santander

What I Want to Remember

Right before General Vallejo’s home,
with its stately stone and yellow walls,

there’s a field along the footpath
where spring rains bring the frogs,

a whole symphony of them, breaking
open the hours just after the sun

sinks into the Pacific Ocean only
an hour away. Why am I placing

you here? I’m on a plane going west
and all the humans are so loud

it hurts the blood. But once I sat
next to a path that was still warm

from the day’s heat, cross-legged
with my friend named Echo who taught

me how to amplify the strange sound
the frogs made by cupping my ears.

I need to hold this close within me,
when today’s news is full of dead children,

their faces opening their mouths for air
that will not come. Once I was a child too

and my friend and I sat for maybe an hour,
eyes adjusting to the night sky, cupping

and un-cupping our ears to hear
the song the tenderest animals made.

Mário Chamie – Cervo, Servo

1.
E vem: som em torno,
rumorações de margem, várzea vagido
entre o mato
de onde o mato cerca       rinha menor
de vinda.

Refém: já muxoxo,
convocações de talos, talhos rangidos
entre o pasto
de onde o pasto fecha       largo maior
de lida.

Também: alto vôo,
movemenções de asas, vácuos movidos
entre o vasto
de onde o vasto cobre       casa menor
de vista.

Contém: surdo gemer,
inquietações de choro, tosco pedido
entre o salto
de onde o salto abre       fuga maior
de chispa.

Fuga: mulo correr,
cabritações de gamo, ganho corrido
entre o casco
de onde o casco toca       corpo motor
de vida.

2.

Pára: antes do cerco
indo, vinha fechando
o cervo, círculo do medo.

Anda: então o cerco
vindo, ia mirando
o alvo, trêmulo no erro.

Volta: e logo o cervo
vendo, move correndo
os cornos, garras de lenho.

Fica: mas sem defesa
deixa o corpo à vista
o servo, perdida presa.

3.

Chifres, move-se a cabeça:
varas e luz no crânio, olhos marca
na testa
porque a testa mostra         liso gesto
de nesga.

Galhos, une-se o feixe:
nervos e veios na anca, fibra óssea
na coxa
porque a coxa invoca         pulo salto
de mola.

Olhos, trinca-se a fenda:
claros sóis na vista, vítreo pátio
na treva
porque a treva ensombra         fero golpe
de fera.

Listas, risca-se o corpo:
linhas e véu na pele, mancha nódoa
no peito
porque o peito enverga         malho risco
de relho.

Tiros, chumba-se o lombo:
ecos e voz no campo, sangue poça
no mato
porque o mato marca         pista passo
de pata.

Laços, prende-se a presa:
suor e dó na cara,         cacto lasca
na cerca
porque a cerca espinha        prego farpa
de lenha.

Queda, queda-se o servo:
chifres e mé na tarde, trégua baque
do corpo
porque o cervo tomba         fardo peso
de morto.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 21/09/2017

Hart Crane – Louvor a uma urna

Louvor a uma urna

In Memoriam: Ernest Nelson

Era do norte o rosto terno
De falso exilado, juntando
De Pierrô o olhar eterno
E a gargalhada de Gargantua.

Os sonhos que me confiava
Do travesseiro branco, insone,
Agora eu sei, eram heranças –
Corcéis suaves do ciclone.

No monte oblíquo a lua oblíqua
Nos deu presságios indistintos
Do que ainda vivo o morto abriga,
Questões da alma e dos instintos,

Iguais às que, no crematório,
Do alto o relógio remoía
Sem poupar nosso obrigatório
Louvor às glórias desse dia.

Mas ao lembrar a mecha de ouro,
Já não suporto o rosto baço
Nem as abelhas, surdo coro,
Atravessando a luz do espaço.

Espalha a cinza destes versos
Pelos subúrbios, no arrebol
Onde se perderão, dispersos.
Estes não são troféus do sol.

Trad.: Augusto de Campos

Praise for an urn

In memorian: Ernest Nelson

It was a kind and northern face
That mingled in such exile guise
The everlasting eyes of Pierrot
And, of Gargantua, the laughter.

His thoughts, delivered to me
From the white coverlet and pillow,
I see now, were inheritances —
Delicate riders of the storm.

The slant moon on the slanting hill
Once moved us toward presentiments
Of what the dead keep, living still,
And such assessments of the soul

As, perched in the crematory lobby,
The insistent clock commented on,
Touching as well upon our praise
Of glories proper to the time.

Still, having in mid gold hair,
I cannot see that broken brow
And miss the dry sound of bees
Stretching across a lucid space.

Scatter these well-meant idioms
Into the smoky spring that fills
The suburbs, where they will be lost.
They are to trophies of the sun.

1921-22

Elizabeth Bishop – A Arte de Perder

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

Trad.: Paulo Henriques Britto

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 21/09/2017

Lew Welch – Pequena oração para manter-se são