Inês Dias – Linhas de Torres

“But they never stood in the dark with you,
        love (…)”

O passado é um país estrangeiro,
só não sabíamos que o tinham ocupado
nalgum inverno ausente,
para nos exilarem da ternura
entretanto roída por um exército de traças.
.
Cruzando a fronteira,
a solidão tornou-se uma sala
de espera povoada por mais
calafrios além do nosso,
mas já não restam palavras
a essas conversas de fantasmas
entrincheiradas que ainda
temem a via-sacra da noite,
o sono a parar em cada estação.
.
A retirada terá de ser feita
de forma desordeira e irrecuperável,
dinamitando horizonte a horizonte.
E que a ilusão pague por fim
a sua dívida ao presente.

Manuel António Pina – M., A Última Palavra

Entre restos de vida passada
refugiava-se o coração de cada um de nós no seu covil,
uma gota de sangue, pequeno vitral de reflexos coloridos,
na orelha de M., a pistola no chão perto da mão, ainda quente a pistola.

O que quer que tivesse acontecido
fora em sítios inacessíveis às notícias dos jornais
e aos flashes das máquinas fotográficas
voando agora como aves cegas à sua volta.

Um grande mutismo cobrira tudo
gelando os nossos passos e o que disséssemos
ainda antes de pronunciado;
percebia-se, de quem sempre quis ter a última palavra.

Não se percebia era a falta de uma explicação ou de um sinal
(ao menos um sinal justificar-se-ia dadas as circunstâncias),
apenas um botão do casaco mal abotoado,
provavelmente sugerindo alguma impaciência.

Joan Margarit – Vozes de Crianças

O amanhã nos meus olhos é de um cinzento triste,
é uma teia de luz cansada
onde recordo quando iam dormir.
Ainda lhes leio naquele quarto,
debaixo da lâmpada ao lado da cama,
os contos com capas duras de cores brilhantes.
De súbito, em alguma madrugada,
ouço uma criança que me chama e incorporo-me,
mas não há ninguém, só um velho
que ouviu o rumor da memória,
um leve fragor de ar na escuridão
como se uma bala atravessasse a casa.
Ao apagar a luz guardava um tesouro.

Trad.: Rita Custódio e Àlex Tarradellas

Jorge Luis Borges – James Joyce (em três traduções)

Primeira tradução: Carlos Nejar e Alfredo Jacques.
Revisão de trad.: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz

Em um dia do homem estão os dias
do tempo, desde o inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne a sua fonte,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no passado o que agora é meu.
Entre a aurora e a noite está a história
universal. Do fundo da noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

Cambridge, 1968.

Segunda tradução: Josely Vianna Baptista

Num só dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias
até o outro em que o rio ubíquo
do tempo secular torne à nascente,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no ontem, no que ora possuo.
Entre a aurora e a noite está a história
universal. E vejo desde o breu,
junto a meus pés, os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dai-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

(Cambridge, 1968)

Terceira Tradução: Augusto de Campos

Em apenas um dia estão os dias
Do tempo, desde aquele inconcebível
Dia inicial do tempo, em que o terrível
Deus prefixou os dias e agonias

Até aquele em que o ubíquo rio
Do tempo terrenal torne à nascente,
Que é o Eterno, e se apague no presente,
O futuro, o que foi e o que ora expio.

Entre a aurora e a noite está a história
Universal. Vejo, do fundo breu
A meus pés o caminho do hebreu,

Cartago aniquilada, Inferno e Glória
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
Para escalar a escarpa deste dia.

Cambridge, 1968

James Joyce

En un día del hombre están los días
Del tiempo, desde aquel inconcebible
Día inicial del tiempo, en que un terrible
Dios prefijó los días y agonías

Hasta aquel otro en que el ubicuo río
Del tiempo terrenal torne a su fuente,
Que es lo Eterno, y se apague en el presente,
El futuro, el ayer, lo que ahora es mío.

Entre el alba y la noche está la historia
Universal. Desde la noche veo
A mis pies los caminos del hebreo,

Cartago aniquilada, Infierno y Gloria.
Dame, Señor, coraje y alegría
Para escalar la cumbre de este día.

Cambridge, 1968

Emily Dickinson – “Senti um Féretro em meu Cérebro…”

Senti um Féretro em meu Cérebro,
E Carpideiras indo e vindo
A pisar — a pisar — até eu sonhar
Meus sentidos fugindo —

E quando tudo se sentou,
O Tambor de um Ofício —
Bateu — bateu — até eu sentir
Inerte o meu Juízo

E eu os ouvi — erguida a Tampa —
Rangerem por minha Alma com
Todo o Chumbo dos pés, de novo,
E o Espaço — dobrou,

Como se os Céus fossem um Sino
E o Ser apenas um Ouvido,
E eu e o Silêncio estranha Raça
Só, naufragada, aqui —

Partiu-se a Tábua em minha Mente
E eu fui cair de Chão em Chão —
E em cada Chão achei um Mundo
E Terminei sabendo — então —

Trad.: Augusto de Campos

 

Emily Dickinson – I felt a Funeral, in my Brain

I felt a Funeral, in my Brain,
And Mourners, to and fro
Kept treading — treading — till it seemed
That Sense was breaking through —

And when they all were seated,
A Service like a Drum —
Kept beating — beating — till I thought
My Mind was going numb —

And then I heard them lift a Box
And creak across my Soul
With those same Boots of Lead, again,
Then Space — began to toll,

As all the Heavens were a Bell,
And Being, but an Ear,
And I, and Silence, some strange Race
Wrecked, solitary, here —

And then a Plank in Reason, broke,
And I dropped down, and down —
And hit a World, at every plunge,
And Finished knowing — then —

Herberto Helder – A Paixão Grega

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objetos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável, apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.

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Manuel de Freitas – Pompe Inutili

a Silvina Rodrigues Lopes

Ninguém nasce; seria descabido
chamar alguém aos resíduos
de placenta que envolvem
um conjunto de órgãos
a tudo ou quase tudo predispostos.

Só os mortos, verdadeiramente,
existem. Escreveram ou não
escreveram livros, cartas de amor,
diários. Não importa: cruzaram-se
connosco, sentaram-se por vezes
à mesma mesa, acreditaram até
no terno suplício do amor.
E tinham mãos reais, ao tocarem
o rosto imberbe de que se despediam.
Um beijo, sobre rugas apenas,
conseguia tornar menos frias as manhãs.

Despedem-se muito mal, os mortos.
Embora, por uma vez, sejam
exactos e sinceros – no momento
em que descem à terra e nos impedem
de partilhar com eles um cigarro,
o último copo, uma espécie de destino.

São terrivelmente reais, os mortos.
A vida inteira não chega
para que possamos matá-los a todos,
um a um, como decerto aconselharia
a mais elementar higiene metafísica.
Dão-nos, contudo, a força necessária
para morrer cada vez mais, tolerando
dias de aluguer, casas ligeiramente
inabitáveis. Porque os outros, na
verdade, não passam de mortos imperfeitos.
Estão, como nós, um pouco demasiado vivos.

Talvez um dia, porém, venham a
assinar um poema assim (e pode até não ser
um poema, muito menos assim), em que se note,
além das influências óbvias, uma certa
– digamos – especialização no horror.
Pois é disso apenas que se trata.

Os mortos sabem-no.
A sabedoria é inútil.
A poesia também.

Carlos Alberto Machado – Mapa de Desencontros

I

Abrigo-te
mais uma vez
há muito tempo
disseste aqui
hei-de morrer
voltas sempre
a esta morada
ris-te e partes
no telhado frágil
caem as primeiras
águas de Inverno.

II

Deus encontrou-te
eu sei
apaixonou-se pelos teus olhos verdes
(há fados assim)
à sombra das velhas árvores
dás-lhe a mão e passeiam
deve ser em calmos fins de tarde como este
que Deus se indispõe contra os homens
dizes-lhe não está descansado
não tenhas medo
aqui ninguém te reconhece.

III

Olhamos o amor e a morte
desdobrando-se no tempo
nas rugas das suas estações
demasiado tempo mantemos
a ilusão de uma diferença
mas o tempo comprime-se
naquele momento breve
em que a nossa vontade
julga poder prescindir dele.

IV

Chegaste à idade da morte
dos teus amigos também agora
começas a distingui-los
cai um e depois outro
e tu apressas o passo
desta vez vais discutir
o terreno palmo a palmo
não saberias o que fazer
se a solidão se despovoasse.

V

Vagarosas as mãos tocam
uma vez mais o teu rosto
é um desemprego de mim
um despovoamento ainda
inseguro e pouco a pouco
alongam-se os silêncios
as palavras esmorecem
escrevo nas águas
a última jornada
uma árvore
ensombra
apenas
mais
uma
vez.

VI

Afastas por momentos a mão que te afaga o rosto
tacteando como costumavas dizer
nas peles enrugadas o amor é mais lento a atingir
a emoção talvez se perca nos seus meandros
se detenha em cada um a antever alegrias
ou a recear os desencontros
agora é a tua mão que procura
a outra finge um esquecimento breve
as mãos há muito que se conhecem
e a tua quer mais uma vez desafiar
o desejo que a um rosto cansado a tua mão pode levar
antes que o desalento progredindo se instale
e feche todos os caminhos do seu mapa de encontros.

VII

É forçoso Maria sabes como é a barca do amor
hei-de lá estar uns metros depois do cruzamento
talvez primeiro o corpo talvez depois a cabeça
talvez afinal fiquem pertinho
vou-me embora já sabes não são precisas desculpas
está na hora este comboio não costuma atrasar-se.

VIII

Disseste que os meus olhos eram tristes
ou com aquela ternura dos tristes não sei banalidades o que aconteceu
a tempestade e tanta chuva e vento na cidade quente
fugimos para o teatro e tu deixaste cair os olhos para dentro
está quase a passar e depois fiquei mesmo triste
e tu disseste tens os olhos mais tristes do mundo é mentira foi do vento
soube-me bem nesta cidade de tantos lamentos
isso leva-me mais depressa e o vento ajuda
o condutor do táxi nunca saberá se foi da ventania
ou se um tipo voou mesmo rasante para debaixo dele esmagado
não chores a tempestade já passou.

IX

A meio do caminho pensaste
não há nada importante
para vos dizer agora
(um salto longo e sem gritos,
não há hipótese de Deus pensei)
depois só os teus restos no chão
tiveram alguma eloquência.

X

Coisas soltas como o dia
chegas daqui a pouco olá
descarregas o corpo à toa
perguntas não tens frio
a tv dispara gritos e tiros
folhetins notícias perigosas
acendo mais um cigarro
pões-me o duche a correr sim
e a toalha que a tua mão me deu
a felpuda com desenhos do mar
o cão do 3º ataca inúteis coelhos
talvez morra lá mais para o Verão
telefonaram de um jornal querem
não te oiço não deixes o gaz merda
já está podes recomeçar tudo sim
pouco a pouco a sombra.

Edna St. Vincent Millay – Objeção de Consciência

Eu vou morrer, mas
isso é tudo o que farei pela Morte.
Eu a ouço tirar seu cavalo da baia;
Eu ouço pisadas no chão do celeiro.
Ela tem pressa; ela tem negócios em Cuba e
nos Bálcãs, muitas ligações a fazer na manhã.
Mas eu não vou segurar a rédea
enquanto ela ajusta a cilha.
Ela que monte sozinha:
não darei pé na subida.

Embora ela estrale meus ombros no chicote,
não direi a ela para onde a raposa correu.
Com os cascos em meu peito, não direi onde
o garoto negro se esconde no pântano.
Eu vou morrer, mas isso é tudo que farei pela Morte.
Eu não estou em sua folha de pagamentos.

Não direi a ela o paradeiro dos amigos,
nem o dos meus inimigos.
Ainda que ela me prometa muito,
não mapearei o endereço de ninguém.
Acaso sou uma espiã na terra dos vivos
para entregar pessoas à Morte?
Irmã, senha e as plantas de nossa cidade estão
seguras comigo; a depender de mim, nunca serás derrotada.

Trad.: Mariana Basílio

Edna St. Vincent Millay – Conscientious Objector

I shall die, but
that is all that I shall do for Death.
I hear him leading his horse out of the stall;
I hear the clatter on the barn-floor.
He is in haste; he has business in Cuba,
business in the Balkans, many calls to make this morning.
But I will not hold the bridle
while he clinches the girth.
And he may mount by himself:
I will not give him a leg up.

Though he flick my shoulders with his whip,
I will not tell him which way the fox ran.
With his hoof on my breast, I will not tell him where
the black boy hides in the swamp.
I shall die, but that is all that I shall do for Death;
I am not on his pay-roll.

I will not tell him the whereabout of my friends
nor of my enemies either.
Though he promise me much,
I will not map him the route to any man’s door.
Am I a spy in the land of the living,
that I should deliver men to Death?
Brother, the password and the plans of our city
are safe with me; never through me shall you be overcome.

Manuel António Pina – Forma, só Forma

Brincarei ainda na infância
lembrando-me agora?
E que recordação
me pensa a esta hora?
O que sou passou
pela minha existência,
tenho uma presença
mas já lá não estou:
sou também lembrança
de alguém em algum sítio,
onde não alcança
o que, lembrado, sinto.
E aí repousa já
tornado esquecimento
um dia que virá
há muito, muito tempo