Emmanuel Santiago – Lembro-me das Madrugadas

Lembro-me das madrugadas
de Minas, quando o frio
era vidro moído na carne
e, lívido, o orvalho lustrava
o gume das estrelas, que
luziam no brilho sombrio
do céu noturno (negro veludo).

Através da neblina, em dança
imóvel e milenar, tremulava
o vulto oblíquo das montanhas.
E aquilo era tudo que eu sabia
do horizonte e suas promessas
de se espraiar em lugares, pessoas
e acontecimentos, pois o mar de Minas
é o lençol de suas sombras, o linho de sua
neblina, e suas montanhas, e suas insônias.

O tempo ainda não havia fincado
sua árvore de cadáveres na soleira
de minha porta, suas raízes de ruínas,
mas os esqueletos no armário já eram
matéria-prima da memória, desde sempre.

Lembro-me das madrugadas
de Minas, quando o frio
era fagulha na pele, e eu
era apenas um moleque
melancólico. Então, o vento
espalha aquela velha melodia
que oscila no silêncio.

Mario Cesariny – Os Pássaros de Londres

Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres

quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos

Ruy Espinheira Filho – Canção de Depois de Tanto

                    a Roniwalter Jatobá 

Vamos beber qualquer coisa,
que a vida está um deserto
e o coração só me pulsa
sombras de Ido e do Incerto.

Vamos beber qualquer coisa,
que a lua avança no mar
e há salobros fantasmas
que não quero visitar.

Vamos beber qualquer coisa
amarga, rascante, rude,
brindando sobre o já frio
cadáver da juventude.

Vamos beber qualquer coisa.
O que for. Vamos beber.
Mesmo porque não há mais
o que se possa fazer.

Ricardo Silvestrin – Sem Título

Lá no horizonte,
o ar frio.
Mais perto de você,
a saudade.
Fotografias.
Um quadro completo.
Vale a pena ver
só.
A verdade é uma escultura,
se você quiser anunciar.

Ruy Espinheira Filho – Canção

Morri de pena de ti
porque foi tudo outra história
– não a que hoje poderias
viver em minha memória.

Coisas da vida. Outro conto
se contou então. E, enfim,
vejo que foste feliz.
Morro de pena de mim.

Hilda Hilst – Poemas aos homens do nosso tempo III

homenagem a
Natalia Gorbanievskaya

Sobre o vosso jazigo
— Homem político —
Nem compaixão, nem flores.
Apenas o escuro grito
Dos homens.

Sobre os vossos filhos
 — Homem político —
A desventura
Do vosso nome.

E enquanto estiverdes
À frente da Pátria
Sobre nós, a mordaça.
E sobre as vossas vidas
— Homem político —
Inexoravelmente, nossa morte.

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Carlos Drummond de Andrade – O Retrato Malsim

O inimigo maduro a cada manhã se vai formando
no espelho de onde deserta a mocidade.
Onde estava ele, talvez escondido em castelos escoceses,
em cacheados cabelos de primeira comunhão?
Onde, que lentamente grava sua presença
por cima de outra, hoje desintegrada?

Ah, sim: estava na rigidez das horas de tenência orgulhosa,
no morrer em pensamento quando a vida queria viver.
Estava primo do outro, dentro,
era o outro que não se sabia liquidado,
verdugo expectante, convidando a sofrer;
cruz de carvão, ainda sem braços.

Afinal irrompe dono completo.
Instalou-se, a mesa é sua,
cada vinco e reflexão madura ele é quem porta,
e esparrama na toalha sua matalotagem:
todas as flagelações, o riso mau,
o desejo de terra destinada
e o estar ausente em qualquer terra.
3 em 1, 1 em 3:
ironia, passionaridade morbidez.

No espelho ele se faz a barba amarga.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Instante

Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes

Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio

Sophia de Mello Breyner Andresen – Fundo do Mar

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

José Paulo Paes – Epitáfio para um banqueiro

José Paulo Paes – Epitáfio para um baqueiro

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