Louise Glück – Scilla

Não eu, seu tolo, não eu-mesma, mas nós, nós – ondas
de céu azul como
uma crítica do firmamento: por que
vocês valorizam tanto suas vozes
quando ser algo
é ser quase nada?
Por que olham para cima? Para ouvir
um eco como a voz
de deus? Vocês são todos iguais para nós,
solitários, pairando acima de nós, planejando
suas vidas tolas: vocês vão
onde são levados, como todas as coisas,
onde os ventos os semeiam,
um ou outro sempre
olhando para baixo e vendo alguma imagem
da água, e ouvindo o quê? Ondas,
e sobre as ondas, pássaros cantando.

Trad.: Nelson Santander

Scilla

Not I, you idiot, not self, but we, we – waves
of sky blue like
a critique of heaven: why
do you treasure your voice
when to be one thing
is to be the next to nothing?
Why do you look up? To hear
an echo like the voice
of god? You are all the same to us,
solitary, standing above us, planning
your silly lives: you go
where you are sent, like all things,
where the wind plants you,
one or another of you forever
looking down and seeing some image
of water, and hearing what? Waves,
and over waves, birds singing.

Louise Glück – Matinas (4)

Percebo que com você é como com as bétulas:
não posso lhe falar
de maneira pessoal. Muito
se passou entre nós. Ou
sempre foi apenas de um lado? Eu
errei, eu errei, eu lhe pedi
para ser humano – não sou mais carente
do que as outras pessoas. Mas a ausência
de todo sentimento, da menor
preocupação por mim – poderia muito bem continuar
dirigindo-me às bétulas,
como em minha antiga vida: deixa-las
fazer o seu pior, deixa-las
enterrar-me com os Românticos,
suas folhas amarelas pontiagudas
caindo e me cobrindo.

Trad.: Nelson Santander

Matins

I see it is with you as with the birches:
I am not to speak to you
in the personal way. Much
has passed between us. Or
was it always only
on the one side? I am
at fault, at fault, I asked you
to be human — I am no needier
than other people. But the absence
of all feeling, of the least
concern for me – I might as well go on
addressing the birches,
as in my former life: let them
do their worst, let them
bury me with the Romantics,
their pointed yellow leaves
falling and covering me.

Louise Glück – Matinas (3)

Perdoe-me se eu disser que o amo: os poderosos
sempre são enganados, já que os fracos são sempre
guiados pelo pânico. Não posso amar
o que não consigo conceber, e você revela
praticamente nada: é como o espinheiro,
sempre a mesma coisa no mesmo lugar,
ou está mais para a dedaleira, inconstante, brotando primeiro
um espigão rosa na encosta atrás das margaridas,
e no ano seguinte, violeta no roseiral? Você precisa entender
que isso é inútil, esse silêncio que promove a crença
de que você deve ser todas as coisas, a dedaleira e o espinheiro,
a rosa vulnerável e a rija margarida – somos levados a pensar
que é impossível você existir. É isso
que você quer que acreditemos? É isso que explica
o silêncio das manhãs,
os grilos que não roçam as asas, os gatos
que não brigam no quintal?

Trad.: Nelson Santander

Matins

Forgive me if I say I love you: the powerful
are always lied to since the weak are always
driven by panic. I cannot love
what I can’t conceive, and you disclose
virtually nothing: are you like the hawthorn tree,
always the same thing in the same place,
or are you more the foxglove, inconsistent, first springing up
a pink spike on the slope behind the daisies,
and the next year, purple in the rose garden? You must see
it is useless to us, this silence that promotes belief
you must be all things, the foxglove and the hawthorn tree,
the vulnerable rose and the tough daisy – we are left to think
you couldn’t possibly exist. Is this
what you mean us to think, does this explain
the silence of the morning,
the crickets not yet rubbing their wings, the cats
not fighting in the yard?

Louise Glück – A íris selvagem

No fim do meu sofrimento
havia uma saída.

Ouça-me: aquilo que você chama de morte
eu me recordo.

Acima, ruídos, ramos de pinheiros se movendo.
Depois, nada. O sol fraco
cintilava sobre a superfície ressequida.

É terrível sobreviver
como consciência
enterrada na terra escura.

E então acabou: aquilo que você teme, sendo
uma alma e incapaz
de falar, terminando abruptamente, a terra dura
cedendo um pouco. E o que tomei por
pássaros se movendo nos arbustos rasteiros.

Você, que não se lembra
da passagem do outro mundo,
eu lhe digo o que poderia falar vezes sem conta: o que quer que
retorne do esquecimento retorna
para encontrar uma voz:

do cerne da minha vida jorrou
uma grande fonte, sombras azuis
profundas na água azul do mar.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: Sobre este poema, a poeta Fleda Brown diz:

“Aqui está o poema do título. Você sabe como é uma íris selvagem?
(…) Essa [flor de] íris está descrevendo como é sair debaixo da terra escura. Está descrevendo o quão terrível é permanecer enterrado durante todo o inverno, estar consciente de estar enterrado, esperando. Então o surgimento da terra, o falar com a única voz que uma flor tem, sua flor. É estranho como Glück nos faz sentir como se fossemos a íris e, na verdade, percebemos que SOMOS, como a íris, a consciência que espera para falar com nossa própria voz.(…)”

E referindo-se aos versos finais do poema:

“Eu acho que ninguém jamais descreveu a flor de íris melhor do que isso: uma grande fonte, sombras azuis profundas na água do mar azul. Não posso olhar para uma íris agora sem ver uma fonte.”

http://fledabrown.com/columnist/michigan-writers-on-the-air/louise-gluck/

Uma coincidência(?) curiosa: o poema de Glück se assemelha a um dos poemas mais estudados de Carlos Drummond de Andrade: o enigmático “Áporo“, de “A Rosa do Povo”, publicado pela primeira vez em 1945.

Apesar das diferenças de época, contexto e origem dos autores, os poemas apresentam algumas semelhanças notáveis, tais como:

1. Perspectiva não humana: ambos os poemas são narrados por uma entidade não humana – um inseto em “Áporo” e uma flor em “The Wild Iris”;

2. Ciclo da vida: os dois poemas retratam o ciclo da vida, morte e renascimento. Em “Áporo”, o inseto cava na terra, morre e renasce como uma orquídea. Em “The Wild Iris”, a flor passa pelo ciclo de vida, morte e renascimento várias vezes.

3. Metáfora para a experiência humana: os poemas, cada um a seu modo, usam suas respectivas entidades não humanas como metáforas para a experiência humana. Uma possível interpretação de “Áporo” é que o inseto simboliza o cidadão oprimido pela ditadura Vargas. Em “The Wild Iris”, a flor parece simbolizar a alma humana passando por um renascimento mental ou emocional.

O poema de Louise Glück não tem a mesma carga política do admirável texto de Drummond, mas os aspectos que os aproximam revelam muito sobre a universalidade da experiência humana e da própria natureza da poesia, com seu poder de expressar emoções profundas e explorar temas universais.

The wild iris

At the end of my suffering
there was a door.

Hear me out: that which you call death
I remember.

Overhead, noises, branches of the pine shifting.
Then nothing. The weak sun
flickered over the dry surface.

It is terrible to survive
as consciousness
buried in the dark earth.

Then it was over: that which you fear, being
a soul and unable
to speak, ending abruptly, the stiff earth
bending a little. And what I took to be
birds darting in low shrubs.

You who do not remember
passage from the other world
I tell you I could speak again: whatever
returns from oblivion returns
to find a voice:

from the center of my life came
a great fountain, deep blue
shadows on azure seawater.