Não queiras ser mais vivo do que és morto.
As sempre-vivas morrem diariamente
Pisadas por teus pés enquanto nasces.
Não queiras ser mais morto do que és vivo.
As mortas-vivas rompem as mortalhas
Miram-se umas nas outras e retornam
(Seus cabelos azuis, como arrastam o vento!)
Para amassar o pão da própria carne.
Ó vivo-morto que escarnecem as paredes,
Queres ouvir e falas.
Queres morrer e dormes.
Há muito que as espadas
Te atravessando lentamente lado a lado
Partiram tua voz. Sorris.
Queres morrer e morres.
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Óssip Mandelstam – Pedra (excerto)
Não posso tocar, no escuro,
Teu vulto vago e sombrio.
“Senhor!”, por erro, murmuro,
Alheio ao que balbucio.
De mim, tal uma ave enorme,
O nome de Deus se evola.
À frente, um abismo informe,
Atrás, vazia, a gaiola.
Trad.: Augusto de Campos
John Keats – Ode sobre uma Urna Grega
I
Inviolada noiva de quietude e paz,
Filha do tempo lento e da muda harmonia,
Silvestre historiadora que em silêncio dás
Uma lição floral mais doce que a poesia:
Que lenda flor-franjada envolve tua imagem
De homens ou divindades, para sempre errantes.
Na Arcádia a percorrer o vale extenso e ermo?
Que deuses ou mortais? Que virgens vacilantes?
Que louca fuga? Que perseguição sem termo?
Que flautas ou tambores? Que êxtase selvagem?
II
A música seduz. Mas ainda é mais cara
Se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom;
Não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara,
O supremo saber da música sem som:
Jovem cantor, não há como parar a dança,
A flor não murcha, a árvore não se desnuda;
Amante afoito, se o teu beijo não alcança
A amada meta, não sou eu quem te lamente:
Se não chegas ao fim, ela também não muda,
É sempre jovem e a amarás eternamente.
III
Ah! folhagem feliz que nunca perde a cor
Das folhas e não teme a fuga da estação;
Ah! feliz melodista, pródigo cantor
Capaz de renovar para sempre a canção;
Ah! amor feliz! Mais que feliz! Feliz amante!
Para sempre a querer fruir, em pleno hausto,
Para sempre a estuar de vida palpitante,
Acima da paixão humana e sua lida
Que deixa o coração desconsolado e exausto,
A fronte incendiada e língua ressequida.
IV
Quem são esses chegando para o sacrifício?
Para que verde altar o sacerdote impele
A rês a caminhar para o solene ofício,
De grinalda vestida a cetinosa pele?
Que aldeia à beira-mar ou junto da nascente
Ou no alto da colina foi despovoar
Nesta manhã de sol a piedosa gente?
Ah, pobre aldeia, só silêncio agora existe
Em tuas ruas, e ninguém virá contar
Por que razão estás abandonada e triste.
V
Ática forma! Altivo porte! em tua trama
Homens de mármore e mulheres emolduras
Como galhos de floresta e palmilhada grama:
Tu, forma silenciosa, a mente nos torturas
Tal como a eternidade: Fria Pastoral!
Quando a idade apagar toda a atual grandeza,
Tu ficarás, em meio às dores dos demais,
Amiga, a redizer o dístico imortal:
“A beleza é a verdade, a verdade a beleza”
— É tudo o que há para saber, e nada mais.
Trad.: Augusto de Campos
William Shakespeare – do Macbeth (excerto)
Amanhã
amanhã amanhã amanhã
Rasteja em passo parco dia a dia
Até a última sílaba do Tempo.
E os ontens, todos, só nos alumiam
O fim no pó. Apaga, apaga, vela
Breve!
A vida é só uma sombra movel.
Pobre ator
Que freme e treme o seu papel no palco
E logo sai de cena. Um conto tonto
Dito por um idiota – som e fúria, signi-
Ficando nada.
Trad.: Augusto de Campos
Omar Khayyan/Edward Fitzgerard – do Rubaiyat
Omar Khayyam/Edward Fitzgerard – do Rubaiyat
Omar Khayyam/Edward Fitzgerard – do Rubayat
John Donne – Em despedida: proibindo o pranto
Como esses santos homens que se apagam
Sussurrando aos espíritos: “Que vão…”,
Enquanto alguns dos amigos amargos
Dizem: “Ainda respira.” E outros: “Não.” —
Nos dissolvamos sem fazer ruído.
Sem tempestades de ais, sem rios de pranto,
Fora profanação nossa ao ouvido
Dos leigos descerrar todo este encanto.
O terremoto traz terror e morte
E o que ele faz expõe a toda a gente,
Mas a trepidação do firmamento,
Embora ainda maior, é inocente.
O amor desses amantes sublunares
(Cuja alma é só sentidos) não resiste
A ausência, que transforma em singulares
Os elementos em que ele consiste.
Mas a nós (por uma afeição tão alta,
Que nem sabemos do que seja feita,
Interassegurado o pensamento)
Mãos, olhos, lábios não nos fazem falta.
As duas almas, que são uma só,
Embora eu deva ir, não sofrerão
Um rompimento, mas uma expansão,
Como ouro reduzido a aéreo pó.
Se são duas, o são similarmente
Às duas duras pernas do compasso:
Tua alma é a perna fixa, em aparente
Inércia, mas se move a cada passo
Da outra, e se no centro quieta jaz,
Quando se distancia aquela, essa
Se inclina atentamente e vai-lhe atrás,
E se endireita quando ela regressa.
Assim serás para mim que pareço
Como a outra perna obliquamente andar.
Tua firmeza faz-me, circular,
Encontrar meu final em meu começo.
Tradução: Augusto de Campos
John Donne – Elegia: indo para o leito
Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
Deixa que a minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.
Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.
Tradução: Augusto de Campos
Vladimir Maiakovski – O Amor
Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zôo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo,
a mãe,
pelo menos a Terra.
Trad.: Augusto de Campos e Boris Schnaiderman


