Mário Quintana – Pequeno Poema Didático

O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!

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Carlos Drummond de Andrade – Carta

Bem quisera escrevê-la
com palavras sabidas,
as mesmas, triviais,
embora estremecessem
a um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
canais de argila e sombra,
ela iria contando
que vou bem, e amo sempre
e amo cada vez mais
a essa minha maneira
torcida e reticente,
e espero uma resposta,
mas que não tarde; e peço
um objeto minúsculo
só para dar prazer
a quem pode ofertá-lo;
diria ela do tempo
que faz do nosso lado
as chuvas já secaram,
as crianças estudam,
uma última invenção
(inda não é perfeita)
faz ler nos corações,
mas todos esperamos
rever-nos bem depressa.
Muito depressa, não.
Vai-se tornando tempo
estranhamente longo
à medida que encurta.
O que ontem disparava,
desbordado alazão,
hoje se paralisa
em esfinge de mármore,
e até o sono, o sono
que era grato e era absurdo
é um dormir acordado
numa planície grave.
Rápido é o sonho, apenas,
que se vai, de mandar
notícias amorosas
quando não há amor
a dar ou receber;
quando só há lembrança
ainda menos, pó,
menos ainda, nada,
nada de nada em tudo,
em mim mais do que em tudo,
e não vale acordar
quem acaso repousa
na colina sem árvores.
Contudo, esta é uma carta.

Nelson Santander – Pontuação

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Nelson Santander – Beijo

beijo

Nelson Santander – Chuva

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Nelson Santander – Religio

o tempo me fascina
o tempo (os ponteiros fascistas)
de horas assassinas
suas facetas, seus lados

cegos
surdos
mudos me atraem
seus mundos

passados/
presentes/
futuros me traem

subtraem
(o tempo perdido
a perda de tempo:
pretextos para a vida

e a morte)
os relógios de hoje são tão

belos
táteis
frágeis
mesmo nas horas mais negras

brilham
glaciais
antiga-
mente, as horas fluíam enferrujadas

sujas
ocas
foscas
opacas
hoje, no ir

e vir elétrico

e silencioso dos pêndulos-dias,
os galos já não mais anunciam a aurora:
com a precisão digital

do sol,
meu coração bate

e observa os anos
que es-
correm, rapidamente
horas
abaixo

05/1988

Amadeu Amaral – Névoa

Tudo isto há de passar, decerto, muito em breve…
Branca névoa sutil, ir-se-á quando o sol nasça;
branco sonho de amor, passará, como passa
pelas ondas em fúria uma garça de neve.

Passará dentro em pouco, imitando a fumaça
que se evola e se esvai nas curvas que descreve.
Fumaça de ilusão, força é que o vento a leve,
força é que o vento a leve, e disperse, e desfaça.

Que importa! Uma ilusão que nos alegra e afaga
há de ser sempre assim, no mar bravo da vida,
como a espuma que fulge e morre sobre a vaga.

Esta me há de fugir, esta que hoje me inflama!
E antes vê-la fugir como uma luz perdida
que possuí-la na mão como um pouco de lama …

Lêdo Ivo – Epitalâmio

A terra cessa de girar, para que eu te ame.
Não há mais Dia e Noite, meu amor.
Somos hóspedes do impossível. Tudo é verdade
e as horas irrompem como vulcões.
O mar não clama, embora ainda exista.

Para os que amam, como nós, as rotações foram

abolidas,

os séculos assumem a forma de um instante,
e os corpos giram, planetas nas almas imóveis.

Domingos Carvalho da Silva – Mensagem

Longe, muito longe, um país nos contempla.
Um país de silício e saibro, de água salgada e sol
Onde os peixes não chegam, os corvos não assistem.
Onde os náufragos se afogam no incêndio
do solitário dia
eterno.

Longe, muito longe, onde a areia reflete
as escamas da lua;
onde só os mortos vão beijar a praia,
estaremos um dia.

Nas impassíveis furnas há de reinar o vácuo.
Nossa voz secará como crestada
haste de palha.

Lá estaremos, amiga, e, em odres de óleo ardente,
entraremos no mundo mineral. E então
a terra florescerá. E do teu corpo
germinarão gardênias e andorinhas
e o mundo ressurgirá da abolição da morte.

Thiago de Mello – O Morto

Qual a verdade que o morto
conheceu, além dos muros,
e lhe fez cerrar os lábios
estrangulando a palavra
porventura essencial?
Enfim livre da cegueira,
que paisagem contemplou
para que o rosto lhe turve
tão rude ruga de mágoa?
Soube talvez que melhor
fora mostrar-se de todo:
desvelar inteira a face,
seus amores e seus ódios,
e não (de medo) exilar-se
no recôncavo do sonho,
onde fundava universos
em que só fulgisse a luz
de fabulárias auroras.
Certo lhe amarga saber
que inútil fora o tormento
de escolher entre dois rumos;
que o soberbo privilégio
sobre a pedra, sobre o pássaro,
de assombrar-se antes si mesmo,
está proscrito. Que agora
irmanados inexistem.
Dói-lhe esta mágoa profunda:
a de perceber-se enigma
e não se ter decifrado.
Talvez a mágoa do morto
seja mais funda: saber
ter sido apenas um erro
no pensamento de Deus.