Ferreira Gullar – Infinito Silêncio

    houve
       (há)
um enorme silencio
anterior ao nascimento das estrelas

   antes da luz

   a matéria da matéria

de onde tudo vem incessante e onde
     tudo se apaga
     eternamente

esse silencio
   grita sob a nossa vida
   e de ponta a ponta
   a atravessa
        estridente.

Nelson Santander – Limiar

LIMIAR

A maior parte de sua existência é mais
sorte do que você gostaria de admitir.
Woody Allen

quase
que
por
acaso

na casa
dos quarenta
e nove:

já é
quase
o ocaso

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Ferreira Gullar – A Propósito do Nada

sou
  para o outro
este corpo esta
  voz
sou o que digo
  e faço
  enquanto passo

mas
  para mim
só sou
  se penso que sou
enfim
se sou
  a consciência
  de mim

e quando
  vinda a morte
  ela se apague
serei o que alguém acaso
  salve
    do olvido

já que
  para mim
  (lume apagado)
nunca terei existido

Ferreira Gullar – Os Mortos

os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
   certas sinfonias
       algum bater de portas,
   ventanias

    Ausentes
    de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
    se de fato
    quando vivos
    acharam a mesma graça

Carlos Drummond de Andrade – Retrato de Família

Este retrato de família
Está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
Quanto dinheiro ele ganhou.

Nas mãos dos tios não se percebem
As viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
Sem memórias da monarquia.

Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranquilo,
Usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.

O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
É um oceano de névoa.

No semicírculo das cadeiras
Nota-se um certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
Mas sem barulho: é um retrato.

Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
Outra, sorrindo, se propõe.

Esses estranhos assentados,
Meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
Numa sala que se abre pouco.

Ficaram traços de família
Perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
Que um corpo é cheio se surpresas.

A moldura deste retrato
Em vão prende seus personagens.
Estão ali voluntariamente,
Saberiam – se preciso – voar.

Poderiam subtilizar-se
No claro-escuro do salão,
Ir morar no fundo dos móveis
Ou no bolso de velhos coletes.

A casa tem muitas gavetas
E papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
Quando a matéria se aborrece?

O retrato não me responde,
Ele me fita e se contempla
Nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam

Os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
Dos que restaram. Percebo apenas
A estranha ideia de família

viajando através da carne.

Ferreira Gullar – Redundâncias

Ter medo da morte
é coisa dos vivos
o morto está livre
de tudo o que é vida

Ter apego ao mundo
é coisa dos vivos
para o morto não há
(não houve)
raios rios risos

E ninguém vive a morte
quer morto quer vivo
mera noção que existe
só enquanto existo

Ferreira Gullar – A Alegria

O sofrimento não tem
nenhum valor.
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).

Sofres tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?

        A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
            querem estar contentes.

Marcelo Tápia – a pedra volátil

A trombada do fim do mundo
(…) Um cometa baterá em Júpiter (…)
(…) Se fosse na Terra a vida acabaria –
e isso pode acontecer
revista Veja, 13 de julho de 1994

pedra de fogo furo do abismo
olho de soco projétil sísmico
pedra que voa sem ar sem nada
a esmo certo além da chegada

umbigo atômico elo infernal
bafo de satã vento do mal
vapor de pedra alma do avesso
dentro de fora fim do começo

começo do fim dias contados
destino volúvel do passado:
nosso dia chegará volátil
sem data sem dia inevitável?

a pedra do chão cairá do céu
um céu pesado enorme e cruel
crescendo de dentro do final —
um gérmen alheio original?

Antonio Cicero – Cidade

Para Arthur Nestrovsky

Lembro que o futuro era uma cidade
nebulosa da qual eu esperava
tudo e que, sendo uma cidade, nada
esperava de ninguém. Ah, cidade
sonhada de avenidas macadâmicas,
turbas febris e prédios de granito:
o que era que eu perdera e que, perdido
e em cacos, buscava nas tuas áridas
calçadas e esquinas? Hoje constato
que a névoa do futuro do passado
adensa-se dia a dia. De longe
teus contornos são mais arredondados.
Tu, cidade irreal, aos poucos somes:
já anseio te rever e já te escondes

Jorge Wanderley – Acerto de Contas

quando a geração de meu pai
batia na minha
a minha achava que era normal
que a geração de cima
só podia educar a de baixo
batendo 

quando a minha geração batia na de vocês
ainda não sabia que estava errado
mas a geração de vocês já sabia
e cresceu odiando a geração de cima 

aí chegou esta hora
em que todas as gerações já sabem de tudo
e é péssimo
ter pertencido à geração do meio 

tendo errado quando apanhou da de cima
e errado quando bateu na de baixo 

e sabendo que apesar de amaldiçoados
éramos todos inocentes.