Cassiano Ricardo – Vociferação

  I

 Homem
 em Adão.
 Homem
em Cristo.
 Homem
 em globo.

  II

como salvar
  Deus?
nós faremos
  d’Ele
novamente o
 Autor de
 tudo:
do peixe, da
 ave, da
  cobra,
 da maçã,
do sapo, do
 rouxinol
 do sol.

 O
obrigaremos
  contudo
a suar san-
gue conosco,
  na guerra,
  na fome
  na peste
  na
  terra suja;

a engolir
    fogo
  como nós,
   no circo
  queimando
    boca
e estômago.

  Um Deus
que nos
   socorra.
Que não fuja;
  que morra
em nós.
   Quando
  qualquer
   de nós
  morra.

À semelhança
de qualquer
   de nós.

Deus mal-me-
  quer
Deus bem-me-
  quer

)horizontal
 vertical(

 no leito
na forca
  ou num
batiscafo.

  III

 Um Deus
de cabeça
 pra baixo

  Morcego
pendurado
  no teto
da igreja.

 Um Deus
antiazul.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Cassiano Ricardo – Gramática Visual de Cristo

1

“Cristo, terá sido
em vão teu sacri-
fício?
vê, o sangue escorre,
acre, no massacre
das ruas.”

Cristo espalmou a
mão
cobrindo os olhos
horizontalmente
pra não ver
a destruição
do ser

2

“Cristo,
vê os pequeninos
que tanto amaste
agora garotos
nos becos
como ratos dentro
de sapatos
rotos.”

Cristo escondeu,
de novo, a face,
como se chorasse
não querendo
que o vissem
chorar.

Gramática visual
a de Cristo;
“Não ver
é não ser visto.“

3

“Cristo,
ouve a imprecação
que sai da boca
dos famintos,
dos nus,
caídos na sarjeta
fria por onde
ninguém passa
mesmo por graça.”

Cristo se mantém
mudo
cotovelo ossudo
posto
em ângulo agudo
ocultando as rugas
do rosto.

Mudo, dizia tudo
cobrindo o olhar
verde
(Ver – ser cúmplice
Não ver – igual
a não ser visto.
Gramática visual
de Cristo)

4

Como se dissesse:
“Pudesse, arranca-
ria os olhos pelo
vídeo
(como Édipo)
à hora dos robôs
regougando
invadirem a furna-
urna-noturna
prá morte dupla:
(o suicídio/
deicídio)

“Que restará
do ‘amai-vos
uns aos outros’?
Só os laivos nos
lábios
dos que se beijam
hoje
de coração trocado.”

“Desço a persiana
da pálpebra
mas fica incendia-
do em mim o olho
d’alva interior
vendo tudo,”

“Deus e o Homem
comidos pelo fogo
de fulgorídeo
no mesmo ato
exato,
execrando.”

5

Nisto Cristo
parou de falar
vendando o rosto
e a barba
já hirsuta
braço em ângulo
agudo
sobre o olhar
verde.

Já fora do ar.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Cassiano Ricardo – Etc.

Para que o mundo exista, existimos.
Pois seja.

Sem os nossos olhos, sem o que somos,
que adiantaria haver mundo?
Seria a árvore dos dourados pomos, etc.

O que é ignorado não existe.
O que é eterno também não existe.
A eternidade é uma forma de não existência.

Ao menos para nós o mundo não existiria
se não fosse existirmos.
Para mim, por exemplo, o mundo existe
porque ora estou alegre, ora sou triste.
Mas no fim vem a morte e… nos leva.
O seu poder é bem maior que o nosso;
porque é o da treva, e o nosso, esse não passa
de só dar existência ao que claramente já existe,
ao que só existe em razão dos nossos frágeis sentidos.
Que podemos ouvir, olhar, tocar, etc.

Agora mesmo, não faz senão um minuto,
no banco do jardim… que foi? Um homem suicidou-se.
O dedo lhe está preso, ainda, no gatilho,
rígido como uma hora certa. Sem nenhum
arrependimento.

Muita gente reunida em redor do seu corpo.
Muitos rostos examinando o seu rosto.

Mas ele suicidou-se, apenas? Não é, isso, bem menos
do que ele fez?

Ele desceu violentamente a cortina da noite
sobre nossos rostos, que só continuam vivos
para nós.

O seu corpo ali está, presente a todos,
mas nós — que somos todos — já estamos ausentes.

Ele nos suprimiu.
Ele nos destruiu também, simbolicamente.
Que destruir a si mesmo importou, para ele,
em destruir o mundo físico,
que só existia em razão dos seus frágeis sentidos
principalmente em razão dos seus olhos, etc.
Como dizer-se apenas: suicidou-se?

Ele desceu violentamente a cortina da noite.
Jogou ao chão a sua própria estátua.
Não aceitou a explicação da vida.
Fez qualquer coisa de mais belo e mais monstruoso.
Pois nem Deus (e Deus é Deus)
conseguirá, jamais, fazer o que ele fez: suicidar-se.

Ah, ele conserva ainda
na mão a arma com que apagou o sol e as estrelas.

Como dizer-se apenas: suicidou-se?

Agora virá a mulher e essa mulher o abraçará loucamente.
A esposa, e um anjo, a filha, lhe dirão palavras estranguladas.

Virá a ambulância. Alguém já chamou a polícia,
e haverá autópsia, etc.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

 

 

Cassiano Ricardo – Missa de Corpo Presente

O seu corpo tão alvo, o seu corpo presente
é a coisa mais ausente, é uma ilusão
pensar que a rosa ou o fruto já colhidos
ainda soluçam desprendidos da haste.

O seu corpo é já um fruto neutro e frio.
Não obstante jovem, tem a mesma idade
de todos os que morreram antes, ou mesmo
na mais remota origem babilônica.

Todos os mortos tem a mesma idade.
Que me adiante chorar sobre a argila ainda tenra,
que esfriou não faz, senão, apenas um minuto?
Todo cadáver é uma coisa já longínqua.

Embora tenha esfriado apenas há um minuto
é algo que regressou súbita e automaticamente
à noite que existiu antes de Deus.
Todo cadáver é anterior ao sol e a Deus.

Mas por que sofro tanto? Não será justamente
por estar sendo vista, ser um corpo presente
aquela que voltou ao nunca ter nascido
e me deixou ausente, eternamente?

Aquela que voltou à fonte, ao horizonte
de quando antes de tudo e me deixou ausente
para que eu vá matando em mim sua presença
até morrê-la quanto o dia morre a estrela?

Se eu fosse Júpiter me converteria
em chuva de ouro sobre sua imagem.
Se eu fosse Glauco me transformaria
num peixe azul no índico da imemória.

De “João Torto e a Fábula”, nova edição, 1963, Livraria José Olympio Editora

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 21/02/2016

Cassiano Ricardo – O Festim Terrestre

O olho de Polifemo
já depois de arrancado
ao gigante bêbado,
foi posto,
entre rosas carnosas
e lírios agudos,
sobre a alva mesa.

Tinha ainda a pupila
acesa.

E os doze convivas,
— doze fomes irmãs, —
todos ao mesmo tempo,
simultâneos como
figuras de uma orquestra,
vieram, graves, comer
o olho
de Polifemo,
em dourado molho.

Eram só matéria
exigindo a matéria.
Bocas rubras de vinho
num banquete com algo
de mágico
e de antropofágico.
Ah, era tanta a fome
que nem perceberam,
um minuto após,
pousar-lhes sobre o ombro
a mão de um anjo torto
que os fez diferentes
do que eram,
no banquete feroz.

De modo
que se olhassem pra dentro
do seu próprio ser,
não se conheceriam:
“quem são?”
de tão desfigurados
pela deformação.

E ao mesmo tempo iguais
uns aos outros,
era como se olhassem
num espelho morto.
Tão iguais de rosto
que já não poderiam
distinguir quais deles
eram eles mesmos
(se todos
tinham um só rosto).

Todos deformados
pela angústia, desnudos,
reduzidos a ângulos
agudos,
no instante decomposto
em que a fome era o fruto
do absoluto.

Fruto do chão bruto.

Fruto que tinha o gosto
do suor e da lágrima
que a língua bebe ao rosto.

Mas, o olho redondo,
comido alegremente,
entre rosas carnosas
e lírios agudos,
em campo de prata
(Pã ergue um brinde a Ulisses)
como comer se come
numa mesa de doidos,
continuou olhando
a todos.
Como se olhasse um bando
de doidos.

Não lhes matou a fome.

Então, na manhã clara,
como enormes figuras,
iguais e repetidas
de um baralho humano,
os doze convivas
repentinos e feéricos,
todos ao mesmo tempo,
automaticamente,
comeram — verdes potros —
uns os olhos dos outros.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 21/02/2016

Cassiano Ricardo – Evocação dos Mortos

Um dia conversarei com os meus mortos.
E todos os que morri (os muitos eus que eu fui)
reunidos inquietos sôfregos cada qual com um meu rosto na mão,
me contarão (sua) a minha história.
Não obstante a tua gélida memória.
Ah, os defuntos que ficaram atrás de mim fotograficamente,
agora juntos.
Não acredito que aquele menino fui eu…
Nem acreditarei que um dia fui menino, a não ser
[que a minha dúvida se desfaça numa lágrima de identidade.

Um dia conversarei com os meus mortos.
Com todos os que fui sucessivos.
Tão mortos que não os sinto mais, nem reconheço
senão por uma cicatriz.
Mas todos presos ao meu ainda estar vivo.
Como uma estranha multidão de mim mesmo.
Como figuras trágicas de uma comitiva obrigatória.
Como comparsas de uma mesma cena continuada
que os faz um só quando uns atrás dos outros,
cinematicamente.

Cemitério de plena e rútila perspectiva
por onde espio o outro lado das coisas.
Por onde me vejo, e vejo as coisas que conversam
atrás de mim, que estou defronte do teu horizonte.

Há uma hora em que o teu refúgio é o meu subterfúgio.
O meu desesperado subterfúgio.
Não só a certeza límpida que me dás de que ninguém me agredirá pelas costas.

A dor que sinto é de hoje
não as que senti ontem e morreram comigo.
O meu lamento de ontem é histórico e desbotado.
Um pássaro empalhado, ou um couro curtido.
Uma dor que passou cristaliza-se, por arte
da natureza, passou a ser um simples material para espelho.
Uma fotografia não sente a mais mínima dor.
Mesmo que doa em nós quando mais dói…
Os meus mortos já se esqueceram destas coisas.
Prova de que estão mortos e pra sempre enterrados
No teu cemitério que só é mais frio do que os outros
por ser de cristal.

(De cristal como é o copo onde a água é mais pura
porque adquire uma cintilação de estrela)

Abismo de onde vim, deixando atrás de mim
os outros que virão conversar comigo, mas de frente,
na tua inversão prodigiosa.

Não me será preciso o ritual que Ulisses observou
quando para invocar as cabeças dos mortos
degolou suas rezes e fez o sangue rubro escorrer numa cova
desembainhando a espada para conter tantas sombras
que lhe queriam falar a um só tempo.

(O primeiro foi Elpenor que ainda não tinha sido sepultado)
Antes, diante do teu cemitério,
não sou mais que Elpenor – um corpo por chorar e insepulto.

Dia virá em que a ciência cristalizará certo pranto para
[a fabricação de um espelho.
Então o parentesco lágrima com espelho
terá sua explicação.

Os mortos me trazem, cada um (sua) a cabeça,
que foi minha, na mão.
A multidão está reunida agora, como peixes
no fundo de uma primavera sub-marinha.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 21/02/2016

Ferreira Gullar – Galo Galo

O galo
no saguão quieto.

Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.

De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.

Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio:
— que faço entre coisas ?
— de que me defendo ?

Anda

No saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.

Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e o duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura ?

Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora ?

Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório ?

Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa

Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.

Vê-se: o canto é inútil.

O galo permanece — apesar
de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!

Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,

não seria tão rouco

e sangrento

Grito, fruto obscuro

e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Carlos Drummond de Andrade – A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

José Paulo Paes – Revisitação

Cidade, por que me persegues?

Com os dedos sangrando
já não cavei em teu chão
os sete palmos regulamentares
para enterrar meus mortos?
Não ficamos quites desde então?

Por que insistes
em acender toda noite
as luzes de tuas vitrinas
com as mercadorias do sonho
a tão bom preço?

Não é mais tempo de comprar.
Logo será tempo de viajar
para não se sabe onde.
Sabe-se apenas que é preciso ir
de mãos vazias.

Em vão alongas tuas ruas
como nos dias de infância,
com a feérica promessa
de uma aventura a cada esquina.
Já não as tive todas?

Em vão os conhecidos me saúdam
do outro lado do vidro,
desse umbral onde a voz
se detém interdita
entre o que é e o que foi.

Cidade, por que me persegues?
Ainda que eu pegasse
o mesmo velho trem,
ele não me levaria
a ti, que não és mais.

As cidades, sabemos,
são no tempo, não no espaço,
e delas nos perdemos
a cada longo esquecimento
de nós mesmos.

Se já não és e nem eu posso
ser mais em ti, então que ao menos
através do vidro
através do sonho
um menino e sua cidade saibam-se afinal

intemporais, absolutos.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Nelson Santander – Quatro poemas sobre o tempo

RELIGIO1

o tempo me fascina
o tempo (os ponteiros fascistas)
de horas assassinas
suas facetas, seus lados

cegos
surdos
mudos me atraem
seus mundos

passados/
presentes/
futuros me traem

subtraem
(o tempo perdido
a perda de tempo:
pretextos para a vida

e a morte)
os relógios de hoje são tão

belos
táteis
frágeis
mesmo nas horas mais negras

brilham
glaciais
antiga-
mente, as horas fluíam enferrujadas

sujas
ocas
foscas
opacas
hoje, no ir

e vir elétrico

e silencioso dos pêndulos-dias,
os galos já não mais anunciam a aurora:
com a precisão digital

do sol,
meu coração bate

e observa os anos
que es-
correm, rapidamente
horas
abaixo

05/1988

TEMPO, TEMPO

SINGULARIDADE

LIMIAR

  1. Notas:
    Os poemas acima foram escritos em fases distintas da minha vida: Religio e Tempo, Tempo, aos 21 anos; Singularidade, por volta dos 40; e Limiar, como indicado no próprio texto, no dia em que completei 49 anos.

    O tempo sempre fez parte das minhas reflexões, ainda que, muitas vezes, de forma inconsciente — como uma sombra persistente que molda não apenas o ritmo da minha existência, mas também o pensamento sobre o que significa ser finito em um universo que parece infinito. Essa presença constante, oscilando entre fascínio e resignação, se revela de modos distintos em cada poema, acompanhando a mudança da minha percepção ao longo dos anos.

    Em Religio, escrito na juventude, o tempo emerge como uma entidade mecânica e opressora, personificada no relógio — ou “religio” (palavra latina do qual deriva religião, e que significava originalmente respeito, reverência ou culto a algo divino), trocadilho que tenta fundir o sagrado e o cronológico. O fascínio inicial (“o tempo me fascina”) logo dá lugar à inquietação diante da efemeridade, em imagens de horas “assassinas” e anos que “escorrem/correm” rapidamente em direção à última volta do ponteiro. Com a diagramação fragmentária, com versos e palavras isolados, eu quis criar um fluxo visual que imita o tique-taque de um relógio. O poema presta tributo ao concretismo e neoconcretismo (minha porta de entrada para a poesia), organizando o texto como se escorresse pela página — feito de areia de ampulheta. Curiosamente, a inspiração do poema não veio de especulações metafísicas, mas da troca de um velho despertador de corda, tiquetaqueante, por um silencioso e compacto relógio a pilha. Às vezes, a beleza e o silêncio são aliados da poesia.

    Em Tempo, Tempo, também aos 21, a reflexão se expande para o cósmico: as pegadas humanas na Lua — aparentemente eternas — tornam-se metáfora de uma permanência ilusória. São comparadas a uma “velha fotografia”, imóveis e imunes ao tempo ou ao vento, até que o verso final afirma: “a eternidade inexiste”. Aqui, o tempo não é mais pessoal, mas uma força estéril que congela o movimento, revelando um temor implícito diante da insignificância humana no vazio espacial. A estrutura em três blocos pretende emprestar ao texto ritmo de silogismo poético, e o espaço em branco aqui não é apenas pausa, mas vazio físico — ecoando o próprio vácuo lunar.

    Singularidade, gestado por volta dos meus 43, é um dos poemas de que mais gosto, dentre os poucos que escrevi. Nele, tempo e espaço se entrelaçam, inspirados na cosmologia: Big Bang, expansão do universo, o nada que contém o tudo. A existência surge reduzida a um “sopro” ou “espasmo” infinitesimal no meio de “tanto tempo / tanto espaço”. É um momento de escala relativística e de aceitação filosófica da brevidade e da insignificância, em que a ansiedade juvenil se transforma em meditação sobre o absurdo — e também a beleza — da vida como “um curto espaço de tempo”. No plano formal, a palavra “expandindo” literalmente se expande pela página, emulando a expansão do espaço-tempo; já “in- / finite- / si- / mal” — que designa uma existência de extrema pequenez, infinitamente pequena; mínima, ínfima; e que, na matemática, é uma quantidade mais próxima de zero do que qualquer número real, mas diferente de zero — se fragmenta para revelar sentidos ocultos: in (palavra inglesa polissêmica que significa, dentre outras coisas, o que vive dentro e dentrofinite (finito ou limitado, em inglês), si (o eu), mal (no contexto do poema, imperfeição, dor ou limite inerente à vida). O branco e o preto participam ativamente da narrativa visual: a página simula tanto uma explosão cósmica quanto um mapa do universo, com o tempo à esquerda, o espaço à direita e, no centro, a existência — minúscula, como um náufrago em mar aberto. É o poema mais explicitamente visual da série e herdeiro direto das vanguardas concretas.

    Por fim, Limiar, aos 49, traz o tempo de volta ao plano íntimo, agora filtrado pelo humor e pela ironia. A epígrafe de Woody Allen lembra que a vida é mais obra do acaso do que do controle, e o poema registra, com simplicidade, o instante entre o “quase” e o “ocaso”. Aqui, a angústia inicial se converte em resignação bem-humorada, como se, depois de tanto refletir sobre o tempo, restasse apenas celebrá-lo — mesmo sabendo que ele é finito. ↩︎