Paulo Henriques Britto – Bálsamo

Seja hoje um dia igual a qualquer outro,
um dia besta, esvaziado e amorfo,

o tipo de data que é esquecida
antes mesmo de virada a folhinha,

e esteja você completamente imerso
neste dia, como um peixe dessas espécies

das regiões abissais, isentas de luz,
longe do ar e seus azuis,

que nas funduras de silêncio e noite
falta não sente do que nunca soube —

pois nesse dia insosso e timorato
esteja você, absorto, atarefado,

imune a tudo que é êxtase ou angústia.
Seja isso a sua vida. O seu mundo.

BRITTO, Paulo Henriques.”Bálsamo”. In:_ Fim de Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022

Paulo Henriques Britto – Sobre o real

Há motivos bem sérios para não
se acreditar em nada de específico,
quanto mais em geral. Pois se a razão
tem algum valor, é ponto pacífico

que conclusões geradas pela mente
só podem validar ulteriores
conclusões, porém rigorosamente
nada nas regiões inferiores,

menos nefelibatas, da suposta
realidade, em que as coisas têm peso
e consistência. Aqui tudo é uma aposta

mais ou menos às cegas. Sim. Bem-vindo
ao mundo do que há. Ficou surpreso?
É estranho? Assustador? Eu acho lindo.

BRITTO, Paulo Henriques.”Sobre o real”. In:_ Fim de Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022

Manuel António Pina – Luz

Talvez que noutro mundo, noutro livro,
tu não tenhas morrido
e talvez nesse livro não escrito
nem tu nem eu tenhamos existido

e tenham sido outros dois aqueles
que a morte separou e um deles
escreva agora isto como se
acordasse de um sonho que

um outro sonhasse (talvez eu),
e talvez então tu, eu, esta impressão
de estranhidão, de que tudo perdeu
de súbito existência e dimensão,

e peso, e se ausentou,
seja um sonho suspenso que sonhou
alguém que despertou e paira agora
como uma luz algures do lado de fora.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 18/05/2018

Paulo Henriques Britto – de “Ao Leitor”

V

Sofro dos nervos, como se dizia
antigamente — ou, mais antigamente
ainda, mergulho (mesmo de dia)
numa “noche oscura del alma” (ou “mente”,

para aliviar o peso asfixiante
de dois milênios de neura cristã),
estado em que a existência por um instante
(que às vezes dura toda uma manhã)

é um mal desnecessário, uma arrastada
(talvez interrompível) epopeia
sem herói — e que, no entanto, não é nada

que não se renda (quase) por completo
às armas novas da farmacopeia
ou ao rigor secular do soneto.

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X

É a velha história de sempre,
com este ou aquele acréscimo:
você fingindo que entende,
sem entender um centésimo.

E no entanto segue em frente,
irresponsável, intrépido,
se entregando simplesmente
ao mero acaso e seu séquito

de implicações impensadas,
catando coisas bonitas,
chegando a uma espécie de termo.

Aí confere as pepitas
amealhadas. Não é nada,
Não é nada — não é nada, mesmo.

BRITTO, Paulo Henriques.”Ao leitor – V”. In:_____ Fim de Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

Marina Colasanti – Rota de Colisão

De quem é esta pele
que cobre a minha mão
como uma luva?
Que vento é este
que sopra sem soprar
encrespando a sensível superfície?
Por fora a alheia casca
dentro a polpa
e a distância entre as duas
que me atropela.
Pensei entrar na velhice
por inteiro
como um barco
ou um cavalo.
Mas me surpreendo
jovem velha e madura
ao mesmo tempo.
E ainda aprendo a viver
enquanto avanço
na rota em cujo fim
a vida
colide com a morte.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 17/05/2018

Marina Colasanti – Sexta-feira à noite

Sexta-feira à noite
Os homens acariciam o clitóris das esposas
Com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
Contam dinheiro, papéis, documentos
E folheiam nas revistas
A vida dos seus ídolos.

Sexta-feira à noite
Os homens penetram suas esposas
Com tédio e pénis.
O mesmo tédio com que todos os dias
Enfiam o carro na garagem
O dedo no nariz
E metem a mão no bolso
Para coçar o saco.

Sexta-feira à noite
Os homens ressonam de borco
Enquanto as mulheres no escuro
Encaram seu destino
E sonham com o príncipe encantado.

Inês Dias – Lei Sálica

As mulheres da família sempre
tiveram um jeito quase póstumo
de existir: guardar o lume
em silêncio, comer depois de
servir os outros, morrer primeiro.

Saíam à hora de ponta do destino
para lerem os caminhos perdidos
e coleccionavam a abdicação
em caixinhas de folha, entre bilhetes
caducados ou dentes de infâncias alheias.

Esperavam a vida toda por uma vida
próxima, de alma presa a alfinetes
no vestido preferido para o enterro,
os passos medidos nas suas varandas
a dar para o fim do mundo.

Retomo-lhes às vezes os gestos
neste meu exílio inventado,
mas acaba aqui: vou encher de corpo
a sombra, mesmo que nem tempo
me reste já para a pesar.

Republicação: poema publicado no blog originalmente em 13/05/2018

Manuel António Pina – Relatório

É um mundo pequeno,
habitado por animais pequenos
– a dúvida, a possibilidade da morte –
e iluminado pela luz hesitante de

pequenos astros – o rumor dos livros,
os teus passos subindo as escadas,
o gato brincando na sala
com o último raio de sol da tarde.

Dir-se-ia antes uma casa,
um pouco mais alta que um império
e um pouco mais indecifrável
que a palavra “casa”; não fulge.

Em certas noites, porém,
sai de si e de mim
e fica suspensa lá fora
entre a memória e o remorso de outra vida.

Então, com as luzes apagadas,
ouço vozes chamando,
palavras mortas nunca pronunciadas
e a agonia interminável das coisas acabadas.

Republicação: poema publicado no blog originalmente em 09/05/2018

Vitor Nogueira – Sementes

É claro que me lembro. Havia dois atalhos
pelo meio do pinhal, direcções espantosamente
precisas, animais que não voltei a ver.

Enquanto as colheitas amadureciam nos campos,
havia talismãs pendurados nas árvores e mercúrio
para tratar certas lesões, uma peça vital
do equipamento. Havia girassóis à volta da casa
e as palavras imortais dos espantalhos, uma forma
de evitar que endoidecêssemos. E havia um muro
que era preciso saltar, a manhã gloriosa
da escalada, a ciência das grandes migrações.

Mas não vale a pena entrar em mais detalhes.
Este é o meu corpo. Esta é a minha mente.
Conhecem-se desde a infância e cumpriram pena juntos.

Do futuro nada sei. Apenas que vem aí.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 08/05/2018

Ana Martins Marques – de “Três Postais”

São Paulo

Depois de um tempo
todas as coisas ficam marcadas
como se estivessem
impregnadas de veneno

Há um tempo em que os lugares
são limpos e novos
abertos como clareiras
mas já não é este o tempo

Sobre cada lugar se sobrepõe
a experiência do lugar
como um selo
num cartão postal

Por exemplo
hoje sempre que sobrevoo
São Paulo
penso que em algum apartamento
desta cidade interminável
você
fumando
de óculos
exerce seu direito
inalienável
de não mais pensar
em mim

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 06/05/2018