Anne Sexton – A noite estrelada

A noite estrelada

Isso não me impede de ter uma terrível necessidade de — devo dizer a palavra — religião. Então, saio à noite para pintar as estrelas.

– Vincent Van Gogh, em uma carta ao seu irmão

A cidade não existe,
exceto onde uma árvore de cabelos negros desliza
como uma mulher afogada no ar abrasador.
A cidade está em silêncio. A noite fervilha com onze estrelas.
Ó, noite estrelada! É assim que
quero morrer.

Elas se movem. Todas estão vivas.
Até a lua incha em seus ferros laranja
para, como um deus, afastar as crianças de seu olho.
A antiga serpente invisível engole as estrelas.
Ó, noite estrelada! É assim que
quero morrer:

naquela fera veloz da noite,
sugada por aquele grande dragão, para me separar
de minha vida sem bandeira,
sem ventre,
sem grito.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 18/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The starry night

That does not keep me from having a terrible need of — shall I say the word — religion. Then I go out at night to paint the stars.

– Vincent Van Gogh in a letter to his brother

The town does not exist
except where one black-haired tree slips
up like a drowned woman into the hot sky.
The town is silent. The night boils with eleven stars.
Oh starry starry night! This is how
I want to die.

It moves. They are all alive.
Even the moon bulges in its orange irons
to push children, like a god, from its eye.
The old unseen serpent swallows up the stars.
Oh starry starry night! This is how
I want to die:

into that rushing beast of the night,
sucked up by that great dragon, to split
from my life with no flag,
no belly,
no cry.

Franz Wright – Caminhada Noturna

A loja de conveniências aberta 24 horas está vazia
e não tem ninguém atrás do balcão.
Abres e fechas a porta de vidro algumas vezes
fazendo um sino soar,
mas ninguém aparece. Vieste apenas
para comprar um maço de cigarros, e talvez
um exemplar do jornal de ontem —
por fim, escolhes um e partes,
deixando trinta e cinco cents no lugar.
Está congelando, mas é bom
sair novamente:
sentes-te menos só na noite,
com luzes acesas aqui e ali
entre os edifícios escuros e as árvores.
Dentre eles, o teu, em algum lugar.
Deve haver milhares de pessoas
nesta cidade que adorariam
receber-te em seus pequenos quartos trancados,
para se sentarem contigo e contar-te
o que aconteceu com as vidas deles.
E a noite tem o cheiro de neve.
Ao voltares para casa, por um momento,
quase acreditas que podes começar de novo.
E um amor intenso e a esperança invadem
teu coração. É insuportável. Insuportável.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: Optei por utilizar a segunda pessoa do singular na tradução de “Night Walk”, de Franz Wright, inspirado pela semelhança temática com o magistral “Voltas para Casa”, de Ferreira Gullar. Ambos os poemas, embora distintos em estilo e abordagem, revelam profundidade e riqueza na exploração de narrativas pessoais em forma poética. Ambos os poetas utilizam a caminhada como um cenário simbólico para explorar a solidão, a reflexão existencial e a busca por significado na vida cotidiana. É interessante observar como cada um chega a conclusões semelhantes por seu niilismo: Wright rejeita quase com verdadeiro asco a possibilidade de redenção (“É insuportável. Insuportável”), enquanto Gullar aceita resignadamente que o futuro não trará mudanças significativas (“Amanhã ainda não será outro dia”). Os dois poetas exemplificam, por meio de seus textos, como a poesia pode revelar as profundezas da existência humana, explorando temas universais com sensibilidade e introspecção.

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Night Walk

The all-night convenience store’s empty
and no one is behind the counter.
You open and shut the glass door a few times
causing a bell to go off,
but no one appears. You only came
to buy a pack of cigarettes, maybe
a copy of yesterday’s newspaper—
finally you take one and leave
thirty-five cents in its place.
It is freezing, but it is a good thing
to step outside again:
you can feel less alone in the night,
with lights on here and there
between the dark buildings and trees.
Your own among them, somewhere.
There must be thousands of people
in this city who are dying
to welcome you into their small bolted rooms,
to sit you down and tell you
what has happened to their lives.
And the night smells like snow.
Walking home for a moment
you almost believe you could start again.
And an intense love rushes to your heart,
and hope. It’s unendurable, unendurable.

James Elroy Flecker – A um poeta daqui a mil anos

Eu, que há mil anos concluí meu percurso,
E escrevi esta doce e arcaica canção,
Por arautos te envio este discurso
Por estradas que meus pés não trilharão.

Não me importa se os mares tu transpões,
Ou se galgas em segurança um céu mau,
Se eriges exímias fortificações
Feitas de alvenaria ou de metal.

Mas ainda tens canções e o hidromel,
E estátuas e amores de olhos brilhantes,
E tolas ideias sobre o bem e o mal
E as orações para seres arrogantes?

E como iremos triunfar? Como um vento
vespertino que nossos sonhos propala,
como o velho e cego Homero, agourento,
três mil anos antes já imaginara.

Ó amigo oculto, ignoto, não nascido,
da doce língua inglesa um estudante,
Lê à noite e sozinho o que eu digo:
Eu estava em meu auge, eu era um vate.

Como nunca poderei ver tua fronte,
E minha mão tu nunca apertarás,
Vai minh’alma além do tempo e do horizonte
Para cortejá-lo. Tu entenderás.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 16/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

To a poet a thousand years hence

I who am dead a thousand years,
And wrote this sweet archaic song,
Send you my words for messengers
The way I shall not pass along.

I care not if you bridge the seas,
Or ride secure the cruel sky,
Or build consummate palaces
Of metal or of masonry.

But have you wine and music still,
And statues and a bright-eyed love,
And foolish thoughts of good and ill,
And prayers to them who sit above?

How shall we conquer? Like a wind
That falls at eve our fancies blow,
And old Maeonides the blind
Said it three thousand years ago.

O friend unseen, unborn, unknown,
Student of our sweet English tongue,
Read out my words at night, alone:
I was a poet, I was young.

Since I can never see your face,
And never shake you by the hand,
I send my soul through time and space
To greet you. You will understand.

Lucille Clifton – [entardecer e meu falecido ex-marido]

entardecer e meu falecido ex-marido
se ergue do tabuleiro ouija
através do ar trêmulo eu resmungo
os nomes de nossos filhos rebeldes
e peço-lhe que explique por que
faço tanto alvoroço como uma peixeira por que
o câncer e a terrível solidão
e as guerras contra o nosso povo
e o quarto cintila como se lavado
em lágrimas e saindo da névoa uma das mãos
se torna carne e observo
enquanto seus dedos apontando soletram

saber não ajuda em nada

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

[evening and my dead once husband]

evening and my dead once husband
rises up from the spirit board
through trembled air i moan
the names of our wayward sons
and ask him to explain why
i fuss like a fishwife why
cancer and terrible loneliness
and the wars against our people
and the room glimmers as if washed
in tears and out of the mist a hand
becomes flesh and i watch
as its pointing fingers spell

it does not help to know

Augusto de Campos – Viv (1992)

Augusto de Campos - vivViv (1992), “viver é defender uma forma” (hoelderlin via Webern)

REPUBLICAÇÃO: poema concreto originalmente publicado na página em 15/05/2020

Sharon Olds – Ode à terra

Querida terra, peço desculpa por tê-la desprezado,
pensei que você fosse apenas o cenário
para os protagonistas — as plantas,
os animais e os animais humanos.
É como se eu amasse apenas as estrelas
e não o céu que deu a elas
espaço para brilhar. Sutil, variada,
sensível, você é a pele do nosso solo,
você é a nossa democracia. Quando compreendi
que nunca a havia honrado como uma igual
viva, senti vergonha de mim mesma,
como se não tivesse reconhecido
uma personagem que parecia tão diferente de mim,
mas agora posso ver-nos a todos, feitos dos
mesmos materiais básicos —
primos daquela primeira explosão do nada —
em nossa intrincada equação juntos. Ó terra,
ajude-nos a encontrar maneiras de servir à sua vida,
você que nos gerou e nos alimentou
e que, no final, vai nos acolher,
e girar conosco, e oscilar e orbitar.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Ode to Dirt

Dear dirt, I am sorry I slighted you,
I thought that you were only the background
for the leading characters—the plants
and animals and human animals.
It’s as if I had loved only the stars
and not the sky which gave them space
in which to shine. Subtle, various,
sensitive, you are the skin of our terrain,
you’re our democracy. When I understood
I had never honored you as a living
equal, I was ashamed of myself,
as if I had not recognized
a character who looked so different from me,
but now I can see us all, made of the
same basic materials—
cousins of that first exploding from nothing—
in our intricate equation together. O dirt,
help us find ways to serve your life,
you who have brought us forth, and fed us,
and who at the end will take us in
and rotate with us, and wobble, and orbit.

Juan Vicente Piqueras – Oração do incrédulo

O importante é rezar, não importa a quem,
que as perguntas sejam as orações
do pensamento, plantem sua semente
em nossa solidão, e que não exista paz
que, à força de insistir, seja capaz
de não existir, não tenha remédio
senão atender à voz de quem a chama.

Que deus não exista, acaso
é razão para nele não crer?

Deus é o nome da sede, a sina
e a querência desta solidão
em que ambos consistimos.

De ninguém falo com deus, de deus com ninguém.
Escrevo-o com cuidado e em minúscula.
Sou ateu e laico todos os dias.
Mas há noites amnióticas
em que minha alma reza de joelhos,
não importa a quem,
pergunta, espera, pede.

E minha alma ajoelhada é uma vela
à luz da qual, em cuja noite, escrevo.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 14/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Plegaria del descreído

Lo importante es rezar, no importa a quién,
que las preguntas sean las plegarias
del pensamiento, planten su semilla
en nuestra soledad, y no haya paz
que, a fuerza de insistir, sea capaz
de no existir, no tenga más remedio
que acudir a la voz de quien la llama.

Que dios no exista, ¿acaso
es razón para no creer en él?

Dios es el nombre de la sed, el sino
y la querencia de esta soledad
en que ambos consistimos.

De nadie hablo con dios, de dios con nadie.
Lo escribo con cuidado y con minúscula.
Yo soy ateo y laico cada día.
Pero hay noches amnióticas
en que mi alma reza de rodillas
no importa a quién,
pregunta, espera, pide.

Y mi alma arrodillada es una vela
a cuya luz, en cuya noche, escribo.

Kim Addonizio – Poema da morte

Tenho que trazer isso à tona de novo, não há outro assunto?
Posso esquecer o pedaço achatado de pele de esquilo
agitando-se na estrada, posso esquecer a estrada
e como não consigo parar de dirigir, não importa o que aconteça,
nem mesmo para abastecer, ou por amor, posso por favor não pensar
no meu pai deixado em alguma cidade atrás de mim,
em seu terno azul, com as mãos cruzadas,
e na minha avó queixando-se da bexiga,
engolindo todas as pílulas, e nas cidades pelas quais estou passando agora,
posso tentar não vê-las, as crianças agachadas
nas valas, os orifícios em seus peitos e testas,
a mulher embalando seu tumor, o cão arrastando seus quadris aleijados?
Posso fechar os olhos e recostar se eu quiser,
posso me apoiar nos ombros dos meus amigos
e comer enquanto eles comem, e beber da garrafa
que está sendo passada de mão em mão; posso me animar,
não posso, Cristo? Posso? Deve ter outro assunto, em um minuto
vou pensar nele. Vou. E se você souber qual é, me ajude.
Ajude-me. Lembre-me por que estou aqui.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Death poem

Do I have to bring it up again, isn’t there another subject?
Can I forget about the scrap of flattened squirrel fur
fluttering on the road, can I forget the road
and how I can’t stop driving no matter what,
not even for gas, or love, can I please not think
about my father left in some town behind me,
in his blue suit, with his folded hands,
and my grandmother moaning about her bladder
and swallowing all the pills, and the towns I’m passing now
can I try not to see them, the children squatting
by the ditches, the holes in their chests and foreheads,
the woman cradling her tumor, the dog dragging its crippled hips?
I can close my eyes and sit back if I want to,
I can lean against my friends’ shoulders
and eat as they’re eating, and drink from the bottle
being passed back and forth; I can lighten up, can’t I,
Christ, can’t I? There is another subject, in a minute
I’ll think of it. I will. And if you know it, help me.
Help me. Remind me why I’m here.